O
Martelo das Feiticeiras
Malleus
Maleficarum
Escrito
em 1484 pelos inquisidores
Heinrich Kramer e James Sprenger
Breve
Introdução Histórica
ROSE
MARIE MURARO
Para
compreendermos a importância do Malleus é preciso termos uma
visão ao menos mínima da história da mulher no interior da história
humana em geral.
Segundo
a maioria dos antropólogos, o ser humano habita este planeta há
mais de dois milhões de anos. Mais de três quartos deste tempo a
nossa espécie passou nas culturas de coleta e caça aos pequenos
animais. Nessas sociedades não havia necessidade de força física
para a sobrevivência, e nelas as mulheres possuíam um lugar
central.
Em
nosso tempo ainda existem remanescentes dessas culturas, tais como
os grupos mahoris (Indonésia), pigmeus e bosquímanos (África
Central). Estes são os grupos mais primitivos que existem e ainda
sobrevivem da coleta dos frutos da terra e da pequena caça ou
pesca. Nesses grupos, a mulher ainda é considerada um ser
sagrado, porque pode dar a vida e, portanto, ajudar a fertilidade
da terra e dos animais. Nesses grupos, o princípio masculino e
o feminino governam o mundo juntos. Havia divisão de trabalho
entre os sexos, mas não havia desigualdade. A vida corria mansa
e paradisíaca.
Nas
sociedades de caça aos grandes animais, que sucedem a essas mais
primitivas, em que a força física é essencial, é que se inicia
a supremacia masculina. Mas nem nas sociedades de coleta nem nas
de caça se conhecia função masculina na procriação. Também
nas sociedades de caça a mulher era considerada um ser sagrado,
que possuía o privilégio dado pelos deuses de reproduzir a espécie.
Os homens se sentiam marginalizados nesse processo e invejavam as
mulheres. Essa primitiva inveja do útero” dos homens é a
antepassada da moderna “inveja do pênis” que sentem as
mulheres nas culturas patriarcais mais recentes.
A
inveja do útero dava origem a dois ritos universalmente
encontrados
nas sociedades de caça pelos antropólogos e observados em partes
opostas do mundo, como Brasil e Oceania. O primeiro é o fenômeno
da couvade, em que a mulher começa a trabalhar dois dias depois
de parir e o homem fica de resguardo com o recém-nascido,
recebendo visitas e presentes... O segundo é a iniciação dos
homens. Na adolescência, a mulher tem sinais exteriores que
marcam o limiar da sua entrada no mundo adulto. A menstruação
a torna apta à maternidade e representa um novo patamar em sua
vida. Mas os adolescentes homens não possuem esse sinal tão óbvio.
Por isso, na puberdade eles são arrancados pelos homens às suas
mães, para serem iniciados na “casa dos homens”. Em quase
todas essas iniciações, o ritual é semelhante: é a imitação
cerimonial do parto com objetos de madeira e instrumentos
musicais. E nenhuma mulher ou criança pode se aproximar da casa
dos homens, sob pena de morte. Desse dia em diante o homem pode
“parir” ritualmente e, portanto, tomar seu lugar na cadeia das
gerações...
Ao
contrário da mulher, que possuía o “poder biológico”, o
homem
foi desenvolvendo o “poder cultural” à medida que a
tecnologia foi avançando. Enquanto as sociedades eram de coleta,
as mulheres mantinham uma espécie de poder, mas diferente das
culturas patriarcais. Essas culturas primitivas tinham de ser
cooperativas, para poder sobreviver em condições hostis, e
portanto não havia coerção ou centralização, mas rodízio
de lideranças, e as relações entre homens e mulheres eram
mais fluidas do que viriam a ser nas futuras sociedades
patriarcais.
Nos
grupos matricêntricos, as formas de associação entre homens e
mulheres não incluíam nem a transmissão do poder nem a da herança,
por isso a liberdade em termos sexuais era maior. Por outro lado,
quase não existia guerra, pois não havia pressão populacional
pela conquista de novos territórios.
E
só nas regiões em que a coleta é escassa, ou onde vão se
esgotando
os recursos naturais vegetais e os pequenos animais, que se inicia
a caça sistemática aos grandes animais. E aí começam a se
instalar a supremacia masculina e a competitividade entre os
grupos na busca de novos territórios. Agora, para sobreviver, as
sociedades têm de competir entre si por um alimento escasso. As
guerras se tornam constantes e passam a ser mitificadas. Os
homens mais valorizados são os heróis guerreiros. Começa a se
romper a harmonia que ligava a espécie humana à natureza. Mas
ainda não se instala definitivamente a lei do mais forte. O homem
ainda não conhece com precisão a sua função reprodutora e crê
que a mulher fica grávida dos deuses. Por isso ela ainda conserva
poder de decisão. Nas culturas que vivem da caça, já existe
estratificação social e sexual, mas não é completa como nas
sociedades que se lhes seguem.
E
no decorrer do neolítico que, em algum momento, o homem começa a
dominar a sua função biológica reprodutora, e, podendo controlá-la,
pode também controlar a sexualidade feminina. Aparece então o
casamento como o conhecemos hoje, em que a mulher é propriedade
do homem e a herança se transmite através da descendência
masculina. Já acontece assim, por exemplo, nas sociedades
pastoris descritas na Bíblia. Nessa época, o homem já tinha
aprendido a fundir metais. Essa descoberta acontece por volta de
10000 ou 8000 a.C. E, à medida que essa tecnologia se aperfeiçoa,
começam a ser fabricadas não só armas mais sofisticadas como
também instrumentos que permitem cultivar melhor a terra (o
arado, por ex.).
Hoje
há consenso entre os antropólogos de que os primeiros humanos
a descobrir os ciclos da natureza foram as mulheres, porque podiam
compará-los com o ciclo do próprio corpo. Mulheres também devem
ter sido as primeiras plantadoras e as primeiras ceramistas, mas
foram os homens que, a partir da invenção do arado,
sistematizaram as atividades agrícolas, iniciando uma nova era, a
era agrária, e com ela a história em que vivemos hoje.
Para
poder arar a terra, os grupamentos humanos deixam de ser nômades.
São obrigados a se tornar sedentários. Dividem a terra e formam
as primeiras plantações. Começam a se estabelecer as primeiras
aldeias, depois as cidades, as cidades-estado, os primeiros
Estados e os impérios, no sentido antigo do termo. As sociedades,
então, se tornam patriarcais, isto é, os portadores dos
valores e da sua transmissão são os homens. Já não são mais
os princípios feminino e masculino que governam juntos o mundo,
mas, sim, a lei do mais forte. A comida era primeiro para o dono
da terra, sua família, seus escravos e seus soldados. Até ser
escravo era privilégio. Só os párias nômades, os sem-terra, é
que pereciam no primeiro inverno ou na primeira escassez.
Nesse
contexto, quanto mais filhos, mais soldados e mais mão-de-obra
barata para arar a terra. As mulheres tinham a sua sexualidade
rigidamente controlada pelos homens. O casamento era monogâmico
e a mulher era obrigada a sair virgem das mãos do pai para as mãos
do marido. Qualquer ruptura desta norma podia significar a morte.
Assim também o adultério: um filho de outro homem viria ameaçar
a transmissão da herança que se fazia através da descendência
da mulher. A mulher fica, então, reduzida ao âmbito doméstico.
Perde qualquer capacidade de decisão no domínio público, que
fica inteiramente reservado ao homem. A dicotomia entre o
privado e o público torna-se, então, a origem da dependência
econômica da mulher, e esta dependência, por sua vez, gera, no
decorrer das gerações, uma submissão psicológica que dura até
hoje.
E
nesse contexto que transcorre todo o período histórico até os
dias de hoje. De matricêntrica, a cultura humana passa a
patriarcal.
E
o Verbo Veio Depois
“No
principio era a Mãe, o Verbo veio depois.” l~ assim que Marilyn
French, uma das maiores pensadoras feministas americanas, começa
o seu livro Beyond Power (Summit Books, Nova York, 1985). E não
é sem razão, pois podemos retraçar os caminhos da espécie através
da sucessão dos seus mitos. Um mitólogo americano, em seu livro
The Masks of God: Occidental Mythology (Nova York, 1970), citado
por French, divide em quatro grupos todos os mitos conhecidos da
criação. E, surpreendentemente, esses grupos correspondem às
etapas cronológicas da história humana.
Na
primeira etapa, o mundo é criado por uma deusa mãe sem auxílio
de ninguém. Na segunda, ele é criado por um deus andrógino ou
um casal criador. Na terceira, um deus macho ou toma o poder da
deusa ou cria o mundo sobre o corpo da deusa primordial.
Finalmente, na quarta etapa, um deus macho cria o mundo sozinho.
Essas
quatro etapas que se sucedem também cronologicamente são
testemunhas eternas da transição da etapa matricêntrica da
humanidade para sua fase patriarcal, e é esta sucessão que dá
veracidade à frase já citada de Marilyn French.
Alguns
exemplos nos farão entender as diversas etapas e a frase de
French. O primeiro e mais importante exemplo da primeira etapa em
que a Grande Mãe cria o universo sozinha é o próprio mito
grego. Nele a criadora primária é Géia, a Mãe Terra. Dela
nascem todos as protodeuses: Urano, osTitãs e as protodeusas,
entre as quais Réia, que virá a ser a mãe do futuro dominador
do Olimpo, Zeus. Há também o caso do mito Nagô, que vem dar
origem ao candomblé. Neste mito africano, é Nanã Buruquê que dá
à luz todos os orixás, sem auxílio de ninguém.
Exemplos
do segundo caso são o deus andrógino que gera todos os deuses,
no hinduísmo, e o yin e o yang, o principio feminino e o
masculino que governam juntos na mitologia chinesa.
Exemplos
do terceiro caso são as mitologias nas quais reinam em primeiro
lugar deusas mulheres, que são, depois, destronadas por deuses
masculinos. Entre essas mitologias está a sumeriana, em que
primitivamente
a deusa Siduri reinava num jardim de delícias e cujo poder foi
usurpado por um deus solar. Mais tarde, na epopéia de Gilgamesh,
ela é descrita como simples serva. Ainda, os mitos primitivos dos
astecas falam de um mundo perdido, de um jardim paradisíaco
governado por Xoxiquetzl, a Mãe Terra. Dela nasceram os
Huitzuhuahua, que são os Titâs e os Quatrocentos Habitantes do
Sul (as estrelas). Mais tarde, seus filhos se revoltam contra ela
e ela dá à luz o deus que iria governar a todos, Huitzilopochtli.
A
partir do segundo milênio a.C., contudo, raramente se registram
mitos em que a divindade primária seja mulher. Em muitos deles,
estas são substituídas por um deus macho que cria o mundo a
partir de si mesmo, tais como os mitos persa, meda e,
principalmente e acima de todos, o nosso mito cristão, que é o
que será enfocado aqui.
Javé
é deus único todo-poderoso, onipresente, e controla todos os
seres humanos em todos os momentos da sua vida. Cria sozinho o
mundo em sete dias e, no final, cria o homem. E só depois cria a
mulher, assim mesmo a partir do homem. E coloca ambos no Jardim
das Delícias onde o alimento é abundante e colhido sem trabalho.
Mas, graças à sedução da mulher, o homem cede à tentação da
serpente e o casal é expulso do paraíso.
Antes
de prosseguir, procuremos analisar o que já se tem até aqui em
relação à mulher. Em primeiro lugar, ao contrário das culturas
primitivas, Javé é deus único, centralizador, dita rígidas
regras de comportamento cuja transgressão é sempre punida. Nas
primitivas mitologias, ao contrário, a Grande Mãe é permissiva,
amorosa e não coercitiva. E como todos os mitos fundantes das
grandes culturas tendem a sacralizar os seus principais valores,
Javé representa bem a transformação do matricentrismo em
patriarcado.
O
Jardim das Delícias é a lembrança arquetípica da antiga
harmonia
entre o ser humano e a natureza. Nas culturas de coleta não se
trabalhava sistematicamente. Por isso os controles eram frouxos e
podia se viver mais prazerosamente. Quando o homem começa a
dominar a natureza, ele começa a se separar dessa mesma
natureza em que até então vivia imerso.
Como
o trabalho é penoso, necessita agora de poder central que imponha
controles mais rígidos e punição para a transgressão. É
preciso
usar a coerção e a violência para que os homens sejam obrigados
a trabalhar, e essa coerção é localizada no corpo, na repressão
da sexualidade e do prazer. Por isso o pecado original, a culpa
máxima, na Bíblia, é colocado no ato sexual (é assim que,
desde milênios, popularmente se interpreta a transgressão dos
primeiros humanos).
E
por isso que a árvore do conhecimento é também a árvore do bem
e do mal. O progresso do conhecimento gera o trabalho e por isso o
corpo tem de ser amaldiçoado, porque o trabalho é bom. Mas é
interessante notar que o homem só consegue conhecimento do bem
e do mal transgredindo a lei do Pai. O sexo (o prazer) doravante
é mau e, portanto, proibido. Praticá-lo é transgredir a lei.
Ele é, portanto, limitado apenas às funções procriativas, e
mesmo assim é uma culpa.
Daí
a divisão entre sexo e afeto, entre corpo e alma, apanágio das
civilizações agrárias e fonte de todas as divisões e fragmentações
do homem e da mulher, da razão e da emoção, das classes...
Tomam
ai sentido as punições de Javé. Uma vez adquirido o
conhecimento, o homem tem que sofrer, O trabalho o escraviza. E
por isso o homem escraviza a mulher. A relação
homem-mulher-natureza não é mais de integração e, sim, de
dominação. O desejo dominante agora é o do homem. O desejo da
mulher será para sempre carência, e é esta paixão que será o
seu castigo. Daí em diante, ela será definida por sua
sexualidade, e o homem, pelo seu trabalho.
Mas
o interessante é que os primeiros capítulos do Gênesis podem
ser mais bem entendidos à luz das modernas teorias psicológicas,
especialmente a psicanálise. Em cada menino nascido no sistema
patriarcal repete-se, em nível simbólico, a tragédia
primordial. Nos primeiros tempos de sua vida, eles estão
imersos no Jardim das Delícias, em que todos os seus desejos são
satisfeitos. E isto lhes faz buscar o prazer que lhes dá o
contato com a mãe, a única mulher a que têm acesso. Mas a lei
do pai proíbe ao menino a posse da mãe. E o menino é expulso do
mundo do amor, para assumir a sua autonomia e, com ela, a sua
maturidade. Principalmente, a sua nudez, a sua fraqueza, os seus
limites. E à medida que o homem se cinde do Jardim das Delícias
proporcionadas pela mulher-mãe que ele assume a sua condição
masculina.
E
para que possa se tornar homem em termos simbólicos, ele precisa
passar pela punição maior que é a ameaça de morte pelo pai. Como
Adão, o menino quer matar o pai e este o pune, deixando-o só.
Assim,
aquilo que se verifica no decorrer dos séculos, isto é, a
transição
das culturas de coleta para a civilização agrária mais avançada,
é relembrado simbolicamente na vida de cada um dos homens do
mundo de hoje. Mas duas observações devem ser feitas. A primeira
é que o pivô das duas tragédias, a individual e a coletiva, é
a mulher; e a segunda, que o conhecimento condenado não é o
conhecimento dissociado e abstrato que daí por diante será o
conhecimento dominante, mas sim o conhecimento do bem e do mal,
que vem da experiência concreta do prazer e da sexualidade, o
conhecimento totalizante que integra inteligência e emoção,
corpo e alma, enfim, aquele conhecimento que é, especificamente
na cultura patriarcal, o conhecimento feminino por excelência.
Freud
dizia que a natureza tinha sido madrasta para a mulher porque
ela não era capaz de simbolizar tão perfeitamente como o homem.
De fato, para podermos entender a misoginia que daí por diante
caracterizará a cultura patriarcal, é preciso analisar a maneira
como as ciências psicológicas mais atuais apontam para uma
estrutura psíquica feminina bem diferente da masculina.
A
mesma idade em que o menino conhece a tragédia da castração
imaginária, a menina resolve de outra maneira o conflito que a
conduzirá á maturidade. Porque já vem castrada, isto é,
porque não tem pênis (o símbolo do poder e do prazer, no
patriarcado), quando seu desejo a leva para o pai ela não entra
em conflito com a mãe de maneira tão trágica e aguda como o
menino entra com o pai por causa da mãe. Porque já vem castrada,
não tem nada a perder. E a sua identificação com a mãe se
resolve sem grandes traumas. Ela não se desliga inteiramente
das fontes arcaicas do prazer (o corpo da mãe). Por isso,
também,
não se divide de si mesma como se divide o homem, nem de suas emoções.
Para o resto da sua vida, conhecimento e prazer, emoção e
inteligência são mais integrados na mulher do que no homem e,
por isso, são perigosos e desestabilizadores de um sistema que
repousa inteiramente no controle, no poder e, portanto, no
conhecimento dissociado da emoção e, por isso mesmo, abstrato.
De
agora em diante, poder, competitividade, conhecimento, controle,
manipulação, abstração e violência vem juntos. O amor, a
integração
com o meio ambiente e com as próprias emoções são os elementos
mais desestabilizadores da ordem vigente. Por isso é preciso
precaver-se de todas as maneiras contra a mulher, impedi-la de
interferir nos processos decisórios, fazer com que ela
introjete uma ideologia que a convença de sua própria
inferioridade em relação ao homem.
E
não espanta que na própria Bíblia encontremos o primeiro
indício
desta desigualdade entre homens e mulheres. Quando Deus cria o
homem, Ele o cria só e apenas depois tira a companheira da
costela deste. Em outras palavras: o primeiro homem dá à luz
(pare) a primeira mulher. Esse fenômeno psicológico de
deslocamento é um mecanismo de defesa conhecido por todos
aqueles que lidam com a psique humana e serve para revelar
escondendo. Tirar da costela é menos violento do que tirar do
próprio ventre, mas, em outras palavras, aponta para a mesma direção.
Agora, parir é ato que não está mais ligado ao sagrado e é,
antes, uma vulnerabilidade do que uma força. A mulher se
inferioriza pelo próprio fato de parir, que outrora lhe
assegurava a grandeza. A grandeza agora pertence ao homem, que
trabalha e domina a natureza.
Já
não é mais o homem que inveja a mulher. Agora é a mulher que
inveja o homem e é dependente dele. Carente, vulnerável, seu
desejo
é o centro da sua punição. Ela passa a se ver com os olhos do
homem, isto é, sua identidade não está mais nela mesma e sim
em outro. O homem é autônomo e a mulher é reflexa. Daqui em
diante, como o pobre se vê com os olhos do rico, a mulher se vê
pelo homem.
Da
época em que foi escrito o Gênesis até os nossos dias, isto é,
de alguns milênios para cá, essa narrativa básica da nossa
cultura patriarcal tem servido ininterruptamente para manter a
mulher em seu devido lugar. E, aliás, com muita eficiência. A
partir desse texto, a mulher é vista como a tentadora do homem,
aquela que perturba a sua relação com a transcendência e também
aquela que conflitua as relações entre os homens. Ela é
ligada à natureza, à carne, ao sexo e ao prazer, domínios que têm
de ser rigorosamente normatizados: a serpente, que nas eras matricêntricas
era o símbolo da fertilidade e tida na mais alta estima como símbolo
máximo da sabedoria, se transforma no demônio, no tentador, na
fonte de todo pecado. E ao demônio é alocado o pecado por excelência,
o pecado da carne. Coloca-se no sexo o pecado supremo e, assim, o
poder fica imune à crítica. Apenas nos tempos modernos está se
tentando deslocar o pecado da sexualidade para o poder. Isto é,
até hoje não só o homem como as classes dominantes tiveram seu
status sacralizado porque a mulher e a sexualidade foram
penalizadas como causa máxima da degradação humana.
O
Malleus como Continuação do Gênesis
Enquanto
se escrevia o Gênesis no Oriente Médio, as grandes culturas
patriarcais iam se sucedendo. Na Grécia, o status da mulher foi
extremamente degradado. O homossexualismo era prática comum entre
os homens e as mulheres ficavam exclusivamente reduzidas às suas
funções de mãe, prostituta ou cortesã. Em Roma, embora durante
certo período tivessem bastante liberdade sexual, jamais chegaram
a ter poder de decisão no Império. Quando o Cristianismo se
torna a religião oficial dos romanos no século IV, tem início a
Idade Média. Algo novo acontece. E aqui nos deteremos porque é
o período que mais nos interessa.
Do
terceiro ao décimo séculos, alonga-se um período em que o
Cristianismo se sedimenta entre as tribos bárbaras da Europa.
Nesse
período de conflito de valores, é muito confusa a situação da
mulher. Contudo, ela tende a ocupar lugar de destaque no mundo
das decisões, porque os homens se ausentavam muito e morriam nos
períodos de guerra. Em poucas palavras: as mulheres eram
jogadas para o domínio público quando havia escassez de homens e
voltavam para o domínio privado quando os homens reassumiam o seu
lugar na cultura.
Na
alta Idade Média, a condição das mulheres floresce. Elas têm
acesso às artes, às ciências, à literatura. Uma monja, por
exemplo, Hrosvitha de Gandersheim, foi o único poeta da Europa
durante cinco séculos. Isso acontece durante as cruzadas, período
em que não só a Igreja alcança seu maior poder temporal como,
também, o mundo se prepara para as grandes transformações que
viriam séculos mais tarde, com a Renascença.
E
é logo depois dessa época, no período que vai do fim do século
XIV até meados do século XV III que aconteceu o fenômeno
generalizado em toda a Europa: a repressão sistemática do
feminino. Estamos nos referindo aos quatro séculos de “caça às
bruxas”.
Deirdre
English e Barbara Ehrenreich, em seu livro Witches, Nurses and
Midwives (The Feminist Press, 1973), nos dão estatísticas
aterradoras
do que foi a queima de mulheres feiticeiras em fogueiras durante
esses quatro séculos. “A extensão da caça às bruxas é
espantosa. No fim do século XV e no começo do século XVI, houve
milhares e milhares de execuções - usualmente eram queimadas
vivas na fogueira - na Alemanha, na Itália e em outros países. A
partir de meados do século XVI, o terror se espalhou por toda a
Europa, começando pela França e pela Inglaterra. Um escritor
estimou o número de execuções em seiscentas por ano para certas
cidades, uma média de duas por dia, ‘exceto aos domingos’.
Novecentas bruxas foram executadas num único ano na área de
Wertzberg, e cerca de mil na diocese de Como. Em Toulouse,
quatrocentas foram assassinadas num único dia; no arcebispado de
Trier, em 1585, duas aldeias foram deixadas apenas com duas
mulheres moradoras cada uma. Muitos escritores estimaram que o número
total de mulheres executadas subia à casa dos milhões, e as
mulheres constituíam 85~Vo de todos os bruxos e bruxas que foram
executados.”
Outros
cálculos levantados por Marilyn French, em seu já citado livro,
mostram que o número mínimo de mulheres queimadas vivas é de
cem mil.
Desde
a mais remota antiguidade, as mulheres eram as curadoras
populares, as parteiras, enfim, detinham saber próprio, que lhes
era transmitido de geração em geração. Em muitas tribos
primitivas eram elas as xamãs. Na Idade Média, seu saber se
intensifica e aprofunda. As mulheres camponesas pobres não tinham
como cuidar da saúde, a não ser com outras mulheres tão
camponesas e tão pobres quanto elas. Elas (as curadoras) eram as
cultivadoras ancestrais das ervas que devolviam a saúde, e eram
também as melhores anatomistas do seu tempo. Eram as parteiras
que viajavam de casa em casa, de aldeia em aldeia, e as médicas
populares para todas as doenças.
Mais
tarde elas vieram a representar uma ameaça. Em primeiro lugar, ao
poder médico, que vinha tomando corpo através das universidades
no interior do sistema feudal. Em segundo, porque formavam
organizações pontuais (comunidades) que, ao se juntarem,
formavam vastas confrarias, as quais trocavam entre si os segredos
da cura do corpo e muitas vezes da alma. Mais tarde, ainda, essas
mulheres vieram a participar das revoltas camponesas que
precederam a centralização dos feudos, os quais,
posteriormente, dariam origem às futuras nações.
O
poder disperso e frouxo do sistema feudal para sobreviver é
obrigado,
a partir do fim do século XIII, a centralizar, a hierarquizar e a
se organizar com métodos políticos e ideológicos mais modernos.
A noção de pátria aparece, mesmo nessa época (Klausevitz).
A
religião católica e, mais tarde, a protestante contribuem de
maneira
decisiva para essa centralização do poder. E o fizeram através
dos tribunais da Inquisição que varreram a Europa de norte a
sul, leste e oeste, torturando e assassinando em massa aqueles que
eram julgados heréticos ou bruxos.
Este
“expurgo” visava recolocar dentro de regras de comportamento
dominante as massas camponesas submetidas muitas vezes aos mais
ferozes excessos dos seus senhores, expostas à fome, à peste e
à guerra e que se rebelavam. E principalmente as mulheres.
Era
essencial para o sistema capitalista que estava sendo forjado no
seio mesmo do feudalismo um controle estrito sobre o corpo e a
sexualidade, conforme constata a obra de Michel Foucault, História
da Sexualidade. Começa a se construir ali o corpo dócil do
futuro trabalhador que vai ser alienado do seu trabalho e não
se rebelará. A partir do século XVII, os controles atingem
profundidade e obsessividade tais que 05 menores, os mínimos
detalhes e gestos são normatizados.
Todos,
homens e mulheres, passam a ser, então, os próprios
controladores de si mesmos a partir do mais íntimo de suas
mentes. E assim que se instala o puritanismo, do qual se origina,
segundo Tawnwy e Max Weber, o capitalismo avançado anglo-saxão.
Mas até chegar a esse ponto foi preciso usar de muita violência.
Até meados da Idade Média, as regras morais do Cristianismo
ainda não tinham penetrado a fundo nas massas populares. Ainda
existiam muitos núcleos de “paganismo” e, mesmo entre os
cristãos, os controles eram frouxos.
As
regras convencionais só eram válidas para as mulheres e homens
das classes dominantes através dos quais se transmitiam o poder e
a herança. Assim, os quatro séculos de perseguição às bruxas
e aos heréticos nada tinham de histeria coletiva, mas, ao contrário,
foram uma perseguição muito bem calculada e planejada pelas
classes dominantes, para chegar a maior centralização e poder.
Num
mundo teocrático, a transgressão da fé era também
transgressão
política. Mais ainda, a transgressão sexual que grassava solta
entre as massas populares. Assim, os inquisidores tiveram a
sabedoria de ligar a transgressão sexual à transgressão da fé.
E punir as mulheres por tudo isso. As grandes teses que permitiram
esse expurgo do feminino e que são as teses centrais do Malleus
Maleficarum são as seguintes:
1)
O demônio, com a permissão de Deus, procura fazer o máximo de
mal aos homens a fim de apropriar-se do maior número possível de
almas.
2)
E este mal é feito prioritariamente através do corpo, único
“lugar” onde o demônio pode entrar, pois “o espírito [do
homem] é governado por Deus, a vontade por um anjo e o corpo
pelas estrelas” (Parte 1, Questão 1). E porque as estrelas são
inferiores aos espíritos e o demônio é um espírito superior,
só lhe resta o corpo para dominar.
3)
E este domínio lhe vem através do controle e da manipulação
dos atos sexuais. Pela sexualidade o demônio pode apropriar-se do
corpo e da alma dos homens. Foi pela sexualidade que o primeiro
homem pecou e, portanto, a sexualidade é o ponto mais vulnerável
de todos os homens.
4)
E como as mulheres estão essencialmente ligadas à sexualidade,
elas se tornam as agentes por excelência do demônio (as
feiticeiras). E as mulheres têm mais conivência com o demônio
“porque Eva nasceu de uma costela torta de Adão, portanto
nenhuma mulher pode ser reta” (1,6).
5)
A primeira e maior característica, aquela que dá todo o poder às
feiticeiras, é copular com o demônio. Satã é, portanto, o
senhor do prazer.
6)
Uma vez obtida a intimidade com o demônio, as feiticeiras são
capazes
de desencadear todos os males, especialmente a impotência
masculina,
a impossibilidade de livrar-se de paixões desordenadas, abortos,
oferendas de crianças a Satanás, estrago das colheitas, doenças
nos animais etc.
7)
E esses pecados eram mais hediondos ao que os próprios pecados de
Lúcifer quando da rebelião dos anjos e dos primeiros pais por
ocasião da queda, porque agora as bruxas pecam contra Deus e o
Redentor (Cristo), e portanto este crime é imperdoável e por
isso só pode ser resgatado com a tortura e a morte.
Vemos
assim que na mesma época em que o mundo está entrando na
Renascença, que virá a dar na Idade das Luzes, processa-se a
mais delirante perseguição às mulheres e ao prazer. Tudo aquilo
que já estava em embrião no Segundo Capítulo do Gênesis
torna-se agora sinistramente concreto. Se nas culturas de coleta
as mulheres eram quase sagradas por poderem ser férteis e,
portanto, eram as grandes estimuladoras da fecundidade da
natureza, agora elas são, por sua capacidade orgástica, as
causadoras de todos os flagelos a essa mesma natureza. Sim, porque
as feiticeiras se encontram apenas entre as mulheres orgásticas
e ambiciosas (1, 6), isto é, aquelas que não tinham a
sexualidade
ainda normatizada e procuravam impor-se no domínio público,
exclusivo dos homens.
Assim,
o Malleus Maleficarum, por ser a continuação popular do Segundo
Capítulo do Gênesis, torna-se a testemunha mais importante da
estrutura do patriarcado e de como esta estrutura funciona
concretamente sobre a repressão da mulher e do prazer.
De
doadora da vida, símbolo da fertilidade para as colheitas e os
animais, agora a situação se inverte: a mulher é a primeira e a
maior pecadora, a origem de todas as ações nocivas ao homem, à
natureza e aos animais.
Durante
três séculos o Malleus foi a bíblia dos Inquisidores e esteve
na banca de todos os julgamentos. Quando cessou a caça às
bruxas, no século XVIII, houve grande transformação na condição
feminina. A sexualidade se normatiza e as mulheres se tornam frígidas,
pois orgasmo era coisa do diabo e, portanto, passível de punição.
Reduzem se exclusivamente ao âmbito doméstico, pois sua ambição
também era passível de castigo. O saber feminino popular cai na
clandestinidade, quando não é assimilado como próprio pelo
poder médico masculino já solidificado. As mulheres não têm
mais acesso ao estudo como na Idade Média e passam a transmitir
voluntariamente a seus filhos valores patriarcais já então
totalmente introjetados por elas.
É
com a caça às bruxas que se normatiza o comportamento de homens
e mulheres europeus, tanto na área pública como no domínio do
privado.
E
assim se passam os séculos.
A
sociedade de classes que já está construída nos fins do século
XVIII é composta de trabalhadores dóceis que não questionam o
sistema.
As
Bruxas do Século XX
Agora,
mais de dois séculos após o término da caça às bruxas, é que
podemos ter uma noção das suas dimensões. Neste final de século
e de milênio, o que se nos apresenta como avaliação da
sociedade industrial? Dois terços da humanidade passam fome
para o terço restante superalimentar-se; além disto há a
possibilidade concreta da destruição instantânea do planeta
pelo arsenal nuclear já colocado e, principalmente, a destruição
lenta mas contínua do meio ambiente, já chegando ao ponto do não-retorno.
A aceleração tecnológica mostra-se, portanto, muito mais louca
dos inquisidores.
Ainda
neste fim de século outro fenômeno está acontecendo: na mesma
jovem rompem-se dois tabus que causaram a morte das feiticeiras:
a inserção no mundo público e a procura do prazer sem
repressão.
A mulher jovem hoje liberta-se porque o controle da sexualidade e
a reclusão ao domínio privado formam também os dois pilares da
opressão feminina.
Assim,
hoje as bruxas são legião no século XX. E são bruxas que não
podem ser queimadas vivas, pois são elas que estão trazendo pela
primeira vez na história do patriarcado, para o mundo masculino,
os valores femininos. Esta reinserção do feminino na história,
resgatando o prazer, a solidariedade, a não-competição, a união
com a natureza, talvez seja a única chance que a nossa espécie
tenha de continuar viva.
Creio
que com isso as nossas bruxinhas da Idade Média podem se
considerar vingadas!
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