Projeto DHnet
Ponto de Cultura
Podcasts
 
 Direitos Humanos
 Desejos Humanos
 Educação EDH
 Cibercidadania
 Memória Histórica
 Arte e Cultura
 Central de Denúncias
 Banco de Dados
 MNDH Brasil
 ONGs Direitos Humanos
 ABC Militantes DH
 Rede Mercosul
 Rede Brasil DH
 Redes Estaduais
 Rede Estadual RN
 Mundo Comissões
 Brasil Nunca Mais
 Brasil Comissões
 Estados Comissões
 Comitês Verdade BR
 Comitê Verdade RN
 Rede Lusófona
 Rede Cabo Verde
 Rede Guiné-Bissau
 Rede Moçambique
 

CRIANÇA TAMBÉM É GENTE: a trajetória brasileira na luta  pelo respeito aos Direitos Humanos  da infância e juventude

Rodrigo Stumpf González[1]

O tratamento dado à infância na estrutura jurídica e nas políticas sociais brasileiras foi pautado, na maior parte das vezes, pela violência e discriminação. É apresentada aqui uma parte desta trajetória e os caminhos encontrados para buscar a sua superação.

A atividades assistencial brasileira, como outras políticas sociais, até a Primeira República se constituirá principalmente em responsabilidade de instituições religiosas, como os conventos e as Santa Casas, não sendo diferentes em relação à infância e adolescência.

A ação do Estado será iniciada, em relação aos setores marginalizados da sociedade, de forma repressiva. É o caso da política de saneamento no Rio, no princípio do século. É também a via de entrada do Estado no atendimento à infância pobre.

Com a urbanização crescente, acrescida de contingentes de ex-escravos, aumenta nas cidades de maior porte, em especial no Rio de Janeiro o número de crianças nas ruas, vendendo, esmolando ou furtando.

É neste período que se construirá, segundo Londoño (1991) a categoria "menor", da forma como será utilizada no Brasil no decorrer deste século. A menoridade, do ponto de vista jurídico, representava a delimitação de limites etários para o exercício de direitos e responsabilidades, como a maioridade civil e a maioridade penal.

Sob a influência do modelo norte-americano, de tribunais especializados, inaugurado com a criação do Tribunal de Menores do Estado de Illinois, em 1899. Esta perspectiva, denominada posteriormente "doutrina da situação irregular" propunha a diferenciação do tratamento dos jovens em relação aos adultos, na aplicação da legislação penal.

Uma tentativa de aprovar um Código de Menores é derrotada no Congresso nos anos 10. Finalmente, é criado o Juizado de Menores da Capital Federal em 1923.  Sob a iniciativa do Juiz Mello Mattos, titular do Juizado, em 1927 é consolidada a legislação existente, através do decreto 17343/A, surgindo o primeiro Código de Menores do Brasil

Este Código, elaborado sob a influência da doutrina da situação irregular baseia-se no binômio Abandonado/Infrator: a atenção à crianças e adolescentes, menores de 18 anos será uma preocupação do Estado se uma destas duas condições ocorrer: o abandono ou a infração penal. A partir do código, principalmente, é que se tornará o termo "menor" associado à menoridade penal e não à civil, e popularmente se atribuirá a condição de "menor" ao indivíduo alcançado pelos dispositivos do código: pobre ou infrator.

Tendo por fundamento o Código de Menores se criarão uma série de estrutura públicas destinadas ao atendimento, sob forma de "reformatórios". O mais conhecido de todos foi o SAM - Serviço de Atendimento ao Menor, destinado a receber os infratores.

A segunda ótica sob a qual vai se desenvolver a ação do Estado no campo da infância é a de proteção do trabalho juvenil e profissionalização, que podem ser enquadradas dentro das preocupações da República Nova com a modernização do capitalismo brasileiro e a formação da mão-de-obra urbana.

Os diversos dispositivos de proteção ao trabalho juvenil são incluídos na Consolidação das Leis do Trabalho, em 1942, no capítulo sobre "Trabalho do Menor". Estes dispositivos, sobre idade para acesso ao trabalho e proteção contra trabalho penoso ou insalubre são ainda as principais normas vigentes até os dias atuais, com algumas modificações a partir da Constituição Federal, em 1988 e por emenda constitucional em 1998 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

No campo da formação profissional a medida principal foi a criação do SENAI e posteriormente do SENAC. Estes organismos ficaram responsáveis pela realização dos cursos de "aprendiz", para a preparação de mão-de-obra, embora não exclusivamente juvenil. Dentro da estrutura criada a partir da legislação trabalhista, no entanto, estes organismos se vinculavam à estrutura sindical patronal, e não ao governo diretamente. 

Esta estrutura se manterá com poucas alterações até os anos 60. A estrutura do SAM sobre grandes críticas, sendo intitulado de "Escola do Crime", pelas más condições a que submete seus internos. No entanto, a mudança maior somente ocorrerá após o golpe militar.

Com uma perspectiva que permeou também a reforma de outras áreas da administração, a perspectiva era de centralização do processo decisório, com uma visão tecnocrática, como forma de resolução dos problemas existentes.

Com esta perspectiva é aprovada a Lei 4.513/64, que cria a Política Nacional do Bem Estar do Menor e como seu órgão propositor e gerenciador a Fundação Nacional do Bem Estar do Menor. 

Sob as diretrizes traçadas pela FUNABEM os governos estaduais também reformarão suas estruturas administrativas para o atendimento à infância, centralizando-as sob a forma das Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor, as FEBEMs. Grande parte dos Estados da federação criaram fundações nos anos 70 com esta finalidade. O Estado da Guanabara, depois incorporado ao Rio de Janeiro, foi o único com ação direta da FUNABEM, devido à sua condição de antigo distrito federal.

O descontentamento com as ações na área, no entanto, permanece. A legislação vigente é vista como arcaica e superada. As estruturas governamentais não dão conta do problema.

Em 1974 o Senador Nelson Carneiro apresenta um projeto de reformulação do Código de Menores, que, no entanto, não chega a ir à votação. Em 1976 o Congresso Nacional realiza um "CPI do Menor", com o objetivo de analisar a questão[2].

A primeira resposta dada vem sob a forma de criação de uma comissão de especilista, basicamente juízes de menores, para elaboração de projeto de um novo Código. Este é aprovado em 1979, passando a vigir como lei 6697/79. O novo Código funda-se na doutrina da situação irregular. Neste caso a situação irregular funda-se no binômio Vítima de abandono ou maus tratos/ Infrator.  O Juiz de Menores é a autoridade máxima, com poderes discricionários para "proteção do menor" e as FEBEMs permanecem como os estabelecimento encarregados do cumprimento das medidas determinadas.

Nos anos 70, As principais instituições federais encarregadas de ações assistênciais na área da infância- a LBA  e a FUNABEM são incluídas no SIMPAS, passando a compor o sistema de previdência e assistência junto com a área de seguro previdenciário e de atendimento à saúde. Este inclusão levou a um aumento do orçamento destes organismos nos anos seguintes, ainda que permancessem irrisórios diante dos gastos dos demais órgãos do sistema.

Mesmo com a modificação da estrutura legal, a crise do setor não é superada. As condições degradantes de tratamento nas FEBEMS continuam sendo denunciadas, as rebeliões nas casas destinadas aos infratores se sucedem em várias partes do país. Analisando o problema em São Paulo, Ferreira (1980) passa a utilizar uma nova denominação que fortalecerá nos anos 80: meninos de rua.

Identificando que a manutenção desta perspectiva tendia a não resolver o problema do aumento de jovens nas ruas, buscando sua sobrevivência através do trabalho ambulante, da esmola ou do furto, o Governo Federal, através da FUNABEM, juntamente com o UNICEF cria o Projeto Alternativas de Atendimento aos Meninos de Rua, que se manteve aproximadamente entre 1983 e 1987.

Este projeto buscava fazer o levantamento e troca de experiências entre inúmeras instituições de cárater comunitário ou religioso em todo o país, que vinha desenvolvendo proposta de atendimento à criança e ao adolescente privilegiando o meio comunitário, o vínculo familiar e a liberdade, com custos menores e melhores resultados que as instituições governamentais.

Um de seus resultados práticos, através da articulação de educadores e lideranças de instituições de várias partes do país foi a fundação, em 1985, do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, que terá um papel importante na mobilização nos anos seguintes.

A partir de 1986 começa a mobilização para influenciar a Assembléia  Nacional Constituinte. São formados dois grupos distintos com vistas a influenciar o processo : A Comissão Criança e Constituinte, e o Fórum Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, que reuniu o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, a CNBB, a Associação de Fabricantes de Brinquedos, a ABI, entre outros. 

Cada um dos grupos apresentou uma proposta à Constituinte, sendo após ambas fundidas em uma única proposta.

O resultado da ação destes grupos foi a inclusão dos Artigos 227 e 228 da Constituição e 1988, dispondo sobre direitos da criança e do adolescente. O parágrafo 7 do artigo 227 disporá sobre a aplicação dos dispositivos do artigo 204, sobre a descentralização e a participação da comunidade também à área da infância e adolescência.

Aprovada a Constituição, passou-se a buscar a regulamentação do artigo e a substituição do Código de Menores de 1979. Um projeto foi apresentado simultaneamente na Câmara e no Senado, pelo deputado Nelson Aguiar e pelo Senador Ronan Tito. Este texto tornou-se a Lei 8080, de 13 de julho de 1990 com o nome de Estatuto da Criança e do Adolescente.

A Mudança de Forma e de Conteúdo: O Estatuto da Criança e do Adolescente e a Proteção Integral

A visão tradicional da questão da infância separava, sem qualquer constrangimento, os ricos dos pobres. E estes últimos eram considerados "caso de polícia"[3].

Estas talvez sejam palavras duras, mas reais, para descrever como operava a doutrina da "situação irregular", consagrada pelo Código de Menores. Eram regidas pelo Código as situações envolvendo crianças e adolescentes em situação irregular, isto é, seja os que praticaram atos infracionais, seja os que não tinham condições de sustento garantidas pela família. A resposta aos dois casos era a institucionalização, que no mais das vezes era feita através das Fundações Estaduais do Bem-estar do Menor (FEBEMs). A Doutrina da Situação Irregular, como paradigma de ação, é herdeira do processo de organização dos Tribunais de Menores, cujo nascimento, em 1899, vem dos EUA, com o Tribunal do Estado de Illinois. Visto como um avanço à época, acabou ultrapassada pelo tempo.

A Constituição de 1988 e, após, o Estatuto da Criança e do Adolescente, vêm consagrar a "doutrina da proteção integral", preconizada pela ONU. Por esta visão todas as crianças e adolescentes devem ter especial atenção para que obtenham proteção integral contra a violação de seus direitos.  

São importantes de ressaltar duas mudanças: uma de conteúdo jurídico-filosófico, outra de cunho simbólico. Quanto à primeira, crianças e adolescentes passam a ser vistos como sujeitos de direitos, isto é, cidadãos integralmente, e não apenas como objetos da atenção do Estado.

Em segundo lugar, o rompimento com a titulação de "menor". Embora sob esta denominação estivessem incluídos todas as pessoas abaixo dos 21 anos (maioridade civil) ou 18 (maioridade penal), somente os miseráveis eram assim tratados. Quando um meio de comunicação se refere ao "menor" nunca o faz acerca de um filho de alguma família próspera da alta sociedade. O Estatuto é da criança e do adolescente porque aplica-se a todos, independente de sua situação social. Entretanto, não há mágica da denominação politicamente correta que mude por si a realidade social. A reconstrução da realidade não é apenas discursiva. É fundamentalmente material.

As Estruturas Previstas No Estatuto da Criança e do Adolescente

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90) não é considerado uma lei avançada apenas pelo discurso ou proposição de direito de condições de vida para a juventude. Seu grande avanço é prever instrumentos para sua viabilização. Entre os principais encontram-se os Conselhos de Direitos, os Conselhos Tutelares e os Fundos da Criança. Como última instância é possível ainda recorrer à ação civil pública para responsabilização de autoridades que, por ação ou omissão, descumprirem o Estatuto da Criança e do Adolescente.

a)    Os Conselhos  de Direitos da Criança e do Adolescente - existem já o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio Grande do Sul - CEDICA e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - CONANDA. Cada município deve formar seu Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, sendo que já existem cerca de 200 no Rio Grande do Sul

Os Conselhos de Direitos são a execução prática do disposto no Art. 204 da Constituição Federal, garantindo a participação da população na formulação e controle das políticas de atendimento. Estão previstos no Art. 88 do Estatuto da Criança e do Adolescente, com a garantia de participação paritária para os representantes da sociedade.

O primeiro passo para a aplicação de uma política adequada de atenção à infância é a criação e organização do Conselho Municipal de Direitos. Através dele será possível formular e controlar a execução de políticas no interior do município - não só dos órgãos municipais, mas também de órgãos públicos estaduais e federais e organizações não governamentais de atendimento à crianças e adolescentes[4].

O trabalho do Conselho facilita a articulação com os programas de atendimento não-governamentais (por exemplo, os ligados às Igrejas) para que as ações deixem de ser paralelas e descoordenadas.

b)    Os Conselhos Tutelares - são órgãos não jurisdicionais encarregados de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. Faz parte da proposta do Estatuto da Criança e do Adolescente de desjurisdicionalização das questões sociais envolvendo crianças e adolescentes. Desta forma retira-se dos antigos juizados de menores, hoje juizados da infância e da juventude, as funções de assistência social.

Assim os casos que envolvam violação dos direitos de crianças e adolescentes são encaminhados ao Conselho Tutelar que busca soluções - seja encaminhamento ao Ministério Público ou Judiciário, quando necessário, seja no trabalho junto à família e comunidade, seja requisitando serviços públicos.

O Conselho Tutelar é formado por 5 pessoas, eleitas pela comunidade em processo organizado pelo Conselho Municipal de Direitos. Seus direitos e vantagens, inclusive remuneração, devem ser definidos em lei municipal. As competências estão no Estatuto da Criança e do Adolescente. Sua infra-estrutura deve ser fornecida pelo Poder Público Municipal.

Fundamentalmente é uma forma de comprometer as comunidades com a solução de seus problemas, rompendo com a política de "exportação", que consistia em enviar à Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM) os jovens considerados problemáticos , e com a impunidade nas violações de direitos, devidas à dificuldade de acesso ou falhas na atuação de autoridades públicas.

c)     Os Fundos da Criança e do Adolescente - cada Conselho de Direitos deve ter vinculado a si um Fundo, conforme previsão do Estatuto da Criança e do Adolescente, como instrumento de captação de recursos.

Sabe-se que uma política de atendimento custa dinheiro e que os recursos em geral são escassos. Para permitir uma dilatação dos orçamentos destinados à área da infância e juventude foram idealizados os fundos.

Como fontes de recursos há a possibilidade de obter doações de pessoas físicas e jurídicas, mediante o desconto no imposto de renda; o recebimento de multas aplicadas pela Justiça nas violações do Estatuto da Criança e do Adolescente; contribuições de organismos internacionais e o repasse de recursos estaduais e federais (destacando-se até 1994 a Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência (FCBIA), órgão do governo federal na área da infância, extinto pelo novo governo em janeiro de 1995), além do orçamento público.

Estes recursos podem ser utilizados para a manutenção dos programas de atendimento de entidades não-governamentais conveniadas bem como manter ações especiais do município visando a cobertura de lacunas das políticas básicas.

E Como Ficam os Direitos Humanos das Crianças e Adolescentes?

Hoje se encontra em evidência na sociedade brasileira a violência sofrida por crianças e adolescentes, em especial meninos e meninas de rua, como fato ultrajante e merecedor de providências por parte da Sociedade e do Estado.

Esta violência possui várias faces, desde as desigualdades econômico-sociais até a prática do extermínio.

As diferenças sociais existentes na sociedade brasileira, bem como as sucessivas políticas econômicas adotadas pelo Governo Federal, em especial as políticas recessivas dos anos 80, ao afetarem a qualidade de vida da população, afetam diretamente a infância[5].

O processo de urbanização acelerada e a favelização das grandes cidades trouxe consigo o aumento do número de crianças nas ruas. A necessidade de crianças e adolescentes utilizarem as ruas como espaço de sobrevivência não é, certamente, um fato novo na história brasileira. As evidências estão espalhadas, desde os quadros de Debret, retratando crianças negras nas ruas do Império até os Capitães de Areia, de Jorge Amado, dos anos 40. Mas a falência do sistema repressivo de internatos coloca a nu esta situação, substituindo-se a violência institucional pelo extermínio.

As estatísticas na área da saúde infantil colocam o Brasil em 63º lugar, pela escala do UNICEF, de 1994, baseada na taxa de mortalidade até 5 anos, junto a países como El Salvador(65),abaixo de vizinhos como Chile (112), Uruguai (104) e Argentina (97)  e distante de países como Cuba (121) e EUA (124)[6].

Esta situação é reflexo das condições precárias de saneamento, que atingem mais diretamente a infância (Barcelos, 1986). A mortalidade na adolescência está relacionada principalmente com causas violentas (homicídios, acidentes, etc).

O processo de negação de cidadania à crianças e adolescentes completa-se com a evasão escolar, relacionada diretamente ao trabalho precoce. Este, na maior parte dos casos, ocorre sem a garantia de direitos trabalhistas e previdenciários[7].

É interessante notar que além da diferenciação vertical, entre as diversas classes sociais, existe também uma diferenciação horizontal, com mudanças significativas de indicadores sociais entre as regiões. Por exemplo a probabilidade de mortalidade infantil é mais alta em setores com alta renda do Nordeste que entre a classe média-baixa do Sudeste/Sul[8].

Esta forma de violência mata silenciosamente muito mais que os esquadrões da morte, em todas as partes do país, e seu combate envolve mobilização de recursos financeiros e políticos de grande monta.

Ainda assim não podemos deixar de dar um tratamento especial às situações de violência que colocam  hoje o país no banco dos réus frente à comunidade internacional - o extermínio de meninos e meninas de rua.

O Extermínio

O assassinato de crianças e adolescentes ocorrido nos grandes centros urbanos tem merecido espaço destacado na imprensa nos últimos meses. Infelizmente este quadro de violência não é novo.

Opera-se sua descoberta pela Sociedade através do processo de organização de entidades como o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua que conseguiram trazer para a imprensa e para o grande público a denúncia dos fatos que vêm ocorrendo.

O assassinato de crianças e adolescentes foi objeto de pesquisas[9] e foi denunciado em eventos como o II Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua, ocorrido em Brasília em 1989.

O assassinato não é a única causa de mortes violentas de crianças e adolescentes nem é o Brasil o único país onde ocorrem[10]. O que choca, além da quantidade, é a aparente falta de motivos.

Esta violência relaciona-se com a crise do Estado brasileiro. Em nosso país o Estado ocupa um papel fundamental no fomento ao desenvolvimento social. Hoje, entretanto, ele não consegue realizar duas de suas tarefas básicas: garantia dos direitos individuais e pacificador da ordem pública.

O Estado, definido segundo Max Weber como detentor do monopólio da violência legítima[11], no caso brasileiro perdeu o controle da violência ilegítima. O poder paralelo do tráfico, os grupos de extermínio e os arrastões são elementos que denotam o retorno à violência privada característica do período medieval europeu.

A formação de grupos armados paralelos ao aparato estatal relaciona-se em primeiro lugar com o período de ditadura militar, onde surgiram esquadrões da morte e grupos paramilitares para auxiliar nas atividades de repressão.

Por outro lado a combinação entre a corrupção dos órgãos policiais com o jogo do bicho e posteriormente o tráfico de drogas criou estruturas de poder paralelas em cidades como o Rio de Janeiro, onde a lei aplicada não é a oficial, mas a do potentado local.

Em ambos os casos os setores privilegiados de recrutamento de homens e armas são as polícias civil e militar e as empresas de segurança privada. Deve-se acrescentar a facilidade que o contrabando de armas pesadas tem encontrado para operar no Brasil.

Entre os maiores atingidos estão todos os não-cidadãos. Pessoas vivendo em nossa sociedade cujos direitos mais elementares são negados na prática. Entre estas pessoas um dos grupos mais atingidos são os meninos e meninas de rua.

Identifica-se aqui a situação proposta por O'Donnell em relação à homogeneidade de penetração das instituições do Estado de Direito[12]. Mesmo nos grandes centros urbanos da região Sudeste uma parcela razoável da população não tem garantias de defesa dos direitos civis básicos.

Devido a esta situação conjuga-se a miséria com a violência familiar, levando os jovens a buscar as ruas. Nestas ruas, além das formas tradicionais de violência sofridas, como a exploração sexual, do trabalho ou mesmo do produto do furto, hoje se agregam outras, passando da mutilação à eliminação física dos sujeitos atingidos por esta violência.

O extermínio é em geral caracterizado como "operação de limpeza", solicitada por comerciantes incomodados com a presença dos meninos no local, identificando estes como possíveis assaltantes, no presente ou no futuro[13].

Estas ações contam muitas vezes com a conivência, passividade ou silêncio pelo medo, por parte da população local. A concordância se embasa na negação de direitos humanos aos "bandidos" [14].

A polícia em geral tentava explicar a ocorrência dos casos de extermínio com "queimas de arquivo" ou disputa entre gangues. A pesquisa realizada pelo Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, IBASE e NEV-USP ( MNMMR/IBASE/NEV-USP, 1991) ajudou a desmascarar esta justificativa. A grande maioria dos mortos não tinha antecedentes criminais, não portava armas ou drogas quando foram mortos.

As tentativas de dar resposta à questão, a partir da pressão de organismos e entidades internacionais como UNICEF e ANISTIA INTERNACIONAL resultaram na elaboração de um plano de combate à violência, feito por um grupo de trabalho do Ministério da Justiça e na realização de uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara dos Deputados. O plano poucos resultados práticos atingiu. A CPI contribui para trazer à questão para a ordem do dia, mas ainda se aguarda que seus encaminhamentos e propostas surtam efeitos.

A Superação  

Por mais trágica que seja a situação, de nada serve chorar. Temos que lutar por mudanças. Neste sentido deve ser reafirmada uma relação direta entre democracia, cidadania e respeito aos direitos humanos. Um não convive sem o outro.

A construção de uma ordem democrática e o resgate da cidadania da população exige mudanças estruturais com a obtenção de uma ordem social mais justa. Isso só será obtido com mobilização da sociedade e a construção de uma nova proposta hegemônica de Sociedade. Pressionar o Estado e não apenas esperar por ele. 

O processo de construção da nova ordem deve ser concomitante com o combate à violência cotidiana. Devemos denunciar e combater os atos de violência para romper com o ciclo de impunidade. As próprias crianças e adolescentes devem participar deste processo como cidadãos ativos, buscando não uma superação individual da situação, mas coletiva enquanto grupo. Não fazer por eles, mas com eles.

A mobilização da sociedade, através principalmente de Organizações Não-Governamentais, deve ser acompanhada da busca da institucionalização de instrumentos de intervenção na realidade social.

Um dos instrumentos que temos à disposição, atualmente, no Brasil, para esta luta, é o Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas há outros, tanto políticos como jurídicos, que devemos usar, buscando resultados efetivos no presente e não esperando pelo futuro. Centro minha exposição no caso brasileiro, sem deixar de ter em conta que nossa experiência é extremamente válida como exemplo para os Estados Unidos, como forma de atuação no campo da infância e juventude e como forma de organização jurídica e institucional.

     Referências Bibliográficas

ALENCAR, Ana Valderez (Org). Código de menores. Lei 6697/79 - comparações, anotações, histórico, informações. Brasília, Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal, 1984.  532 p.

BARCELOS, Tania. et al. Segregação urbana e mortalidade em Porto Alegre. Porto Alegre, FEE, 1986. 206 p.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Direitos humanos ou "privilégio de bandidos" - desventuras da democratização brasileira. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 30, jul., 1991. 256 p. p. 162-174.

CERVINI, Ruben, CHAHAD, José Paulo (Orgs.). Crise e infância no Brasil - O Impacto das Políticas de Ajustamento Econômico. São Paulo, UNICEF/USP, 1988. 402 p.

COSTA, Antônio Carlos Gomes da. De menor a cidadão. Brasília, FCBIA, s/d. 72 p.

BRASIL. Câmara dos Deputados. CPI destinada a investigar o extermínio de crianças e adolescentes no Brasil - Relatório Final. Brasília, Câmara dos Deputados, 1992.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE). Crianças e adolescentes no Brasil: a vida silenciada. Rio de Janeiro, IBASE, 1989. 38 p.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Diretoria de Pesquisas. Departamento de Estatísticas e Indicadores Sociais. Perfil estatístico de crianças e mães no Brasil - Sistema de acompanhamento da situação sócio-econômica de crianças e adolescentes, 1987. Rio de Janeiro, IBGE, 1990. v. 1, 330 p.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Diretoria de Pesquisas. Departamento de Estatísticas e Indicadores Sociais. Perfil estatístico de crianças e mães no Brasil: Aspectos Sócio-Econômicos da Mortalidade Infantil em åreas Urbanas. Rio de Janeiro, IBGE, 1986. 92 p.

BRASIL. Ministério da Justiça. Plano Nacional de Combate à Violência contra a Criança e o Adolescente. In: BRASIL. Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência. Vale a pena lutar - diretrizes e missão institucional do CBIA. Brasília, FCBIA, 1991. 48 p. p. 29-39.

BRASIL. Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo. Vidas em risco - assassinato de crianças e adolescentes no Brasil. Rio de Janeiro, MNMMR/IBASE/NEV-USP, 1991. 111 p.

FALEIROS, Vicente de Paula. Violência e barbárie - o extermínio de crianças e adolescentes no Brasil. In: RIZZINI, Irene (Org.). A criança no Brasil hoje - desafio para o terceiro milênio. Rio de Janeiro. Ed. Univ. Santa ùrsula, 1993. 246 p. p. 173-187.

FAUSTO, Ayrton e CERVINI, Ruben (Orgs.). O Trabalho e a Rua - Crianças e Adolescentes no Brasil Urbano dos anos 80. São Paulo, Cortez Editora, 1991.

FERREIRA, Rosa Maria Fischer. Meninos da rua - valores e expectativas de menores marginalizados em São Paulo. São Paulo, CEDEC, 1980. 173 p.

LONDOÑO,  Fernando Torres. A origem do conceito menor. In: DEL PRIORE, Mary. História da Criança no Brasil. São Paulo, Contexto, 1991. pág. 129-145

O'DONNELL, Guillermo. Sobre o Estado, a democratização e alguns problemas conceituais. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 36, julho 1993.

POERNER, Artur. Infância: o futuro comprometido. Cadernos do Terceiro Mundo, Rio de Janeiro, nº 99, março, 1977. 96 p. p. 18-53.

RIZZINI, Irene (Org.). A criança no Brasil hoje - desafio para o terceiro milênio. Rio de Janeiro. Ed. Univ. Santa ùrsula, 1993. 246 p.

ONU. Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Situação mundial da infância, 1990. Brasília, UNICEF, 1990. 95 p.

WEBER, Max. Economia y Sociedad. México, Fondo de Cultura Económica, 1984. 1237 p.

YUNES, João. Mortalidad por causas violentas en la región de las Américas. ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Organización Panamericana de Salud. Boletín de la Oficina Sanitaria Panamericana. Washington, n. 114(4), 1993. p. 302-315

YUNES, João e RAJS, Danuta. Tendencia de la mortalidad por causas violentas en la población general y entre los adolescentes y jovenes de la región de las Américas. BRASIL. Fundação Oswaldo Cruz. Cadernos de Saúde Pública. Rio Janeiro, vol 10 supl. 1, 1994. P. 88 a 125.



[1] Professor da UNISINOS, Doutorando em Ciência Política, Coordenador Nacional do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua

[2] Alencar, 1984

[3] Costa, 1991

[4] vide obrigatoriedade de registro de entidades e inscrição de programas, arts. 90 e 91 do Estatuto da Criança e do Adolescente

[5] Cervini e Chahad, 1988; Poerner, 1987

[6] UNICEF, 1990

[7] Fausto e Cervini, 1991

[8] IBGE, 1986

[9] IBASE, 1989; MNMMR/IBASE/NEV-USP, 1991

[10] Yunes, 1993

[11] Weber, 1984

[12] O'Donnell, 1993

[13] Faleiros, 1993

[14] Caldeira, 1991

 

Desde 1995 © www.dhnet.org.br Copyleft - Telefones: 055 84 3211.5428 e 9977.8702 WhatsApp
Skype:direitoshumanos Email: enviardados@gmail.com Facebook: DHnetDh
Busca DHnet Google
Notícias de Direitos Humanos
Loja DHnet
DHnet 18 anos - 1995-2013
Linha do Tempo
Sistemas Internacionais de Direitos Humanos
Sistema Nacional de Direitos Humanos
Sistemas Estaduais de Direitos Humanos
Sistemas Municipais de Direitos Humanos
História dos Direitos Humanos no Brasil - Projeto DHnet
MNDH
Militantes Brasileiros de Direitos Humanos
Projeto Brasil Nunca Mais
Direito a Memória e a Verdade
Banco de Dados  Base de Dados Direitos Humanos
Tecido Cultural Ponto de Cultura Rio Grande do Norte
1935 Multimídia Memória Histórica Potiguar