DST/SIDA
E EXCLUSÃO:
os
Direitos Humanos e a garantia de saúde (pública)
Dani
Rudnicki
Pobreza,
Exclusão e Doença
No
momento em que proponho reflexão sobre o tema-título, penso num
dos objetivos do Seminário, qual seja, "debater
os temas pobreza e exclusão, vinculados à questão dos Direitos
Humanos, na intenção de buscar alternativas que possam vir a ser
implementadas para a superação da pobreza e erradicação das práticas
de exclusão social".
Cabe
detalhar alguns dos conceitos aí expressos. Direitos Humanos, se
percebe hoje, ao contrário do que (ainda) pensam muitos juristas, não
dizem respeito apenas a teorias sobre o ordenamento jurídico, sobre
a validade e/ou vigência da Declaração Universal de Direitos dos
Homens. Direitos Humanos precisam ser buscados e transformados em
realidade, e não apenas justificados; trata-se de uma questão política
e não filosófica ou jurídica.
Direitos Humanos falam de respeito à possibilidade de viver, de ser
livre e feliz (de ter acesso à educação, ao lazer e à saúde),
de amar.
Assim,
não se pode aceitar, num país que pretenda respeitar os Direitos
Humanos, pobreza e exclusão. O pressuposto dos Direitos Humanos é
o respeito pela dignidade humana;
é a conduta de cada pessoa (natural ou jurídica), a solidariedade,
a empatia, que expressa em relação aos outros. Eis onde se colhe
prova do engajamento em busca de uma vida melhor, uma sociedade mais
justa.
Importante
perceber que a pobreza
"Não
é resultante apenas da ausência de renda. Incluem-se aí outros
fatores, como o precário acesso aos serviços públicos e,
especialmente, a ausência de poder. Nesta direção, o novo conceito de pobreza se associa ao de
exclusão, vinculando-se às desigualdades existentes e
especialmente à privação de poder de ação e representação e,
neste sentido, exclusão social tem que ser pensada também a partir
da questão da democracia."
Quanto
ao conceito de exclusão, há ainda muita divergência. Ela aparece
quando ao ser humano falta o acesso aos canais oficiais de
representação e aos (poucos) serviços prestados pelo Estado. Também
pode-se percebê-lo quando, em Estados nacionais formados por
sociedades plurais, como os contemporâneos, nos quais a diversidade
deveria ser regra surgem dificuldades no convívio e a "solução"
parece ser a adoção de velhas práticas de segregação e/ou
extermínio. Aos excluídos restaria permanecer "fora
do sistema", isolar-se, esconder-se.
Um
pouco como quando, em nosso passado, em diversas visitas de
autoridades estrangeiras, colocamos tapumes para não agredir olhos
de rainhas com imagens da "zona"
ou recolhemos mendigos e moradores de rua a instituições oficiais
para poupar chefes de Estados a conhecerem parte indesejável (inútil?)
de nossa população.
Assim,
pobreza e exclusão no Brasil são faces de uma mesma moeda. As
altas taxas de concentração de renda e de desigualdade -
persistentes em nosso país convivem com os efeitos perversos do fenômeno
do desemprego estrutural. Se, de um lado, cresce cada vez mais a
distância entre os 'excluídos'
e os 'incluídos', de
outro essa distância nunca foi tão pequena, uma vez que os incluídos
estão ameaçados de perder direitos adquiridos. O Estado de
Bem-Estar (que no Brasil já foi muito bem apelidado de Estado de
Mal-Estar) não tem mais condições de assegurar esses direitos.
Acresça-se a isto a tendência política neoliberal de diminuição
da ação social do Estado.
Neste
sentido, o Brasil, num mundo dito globalizado, insere-se no sistema
capitalista como país periférico e dependente, cujos governantes
atuais, capitaneados por FHC, percebem no neoliberalismo uma forma
de resolução das questões econômicas vivenciadas. Com uma
estrutura burocrática desenvolvida tão somente seguindo interesses
políticos - resultado de regimes populistas e autoritários, o país
nunca estruturou reais políticas sociais.
Assim,
em época de agravamento da crise mundial, multiplicam-se as
dificuldades de famílias brasileiras assoladas pelo desemprego e
miséria (bem como cresce o número de famílias em tal situação).
Ainda mais que, para atingir metas de desenvolvimento (?),
estabelecidas por instituições financeiras internacionais,
seguidamente se ampliam as decisões de diminuir os investimentos
(mormente os sociais).
As
pessoas deixam de receber gratuitamente assistência médica,
diminuem os beneficies da previdência social e a qualidade da educação
pública. A lógica do sistema capitalista brasileiro equivale-se à
do passado (liberal) europeu, no qual a possibilidade de acesso aos
serviços restringe-se a quem possua condições para arcar com os
custos privados destes "privilégios".
Mais, somente será considerado Homem quem possa pagar por eles.
Nesta
sociedade de "iguais e iguais oportunidades", o indivíduo impõe-se pelo
"ter", pela
posse de capital. Ou ainda, pela venda de força de trabalho. Quem não
puder fazê-lo, não aparece como ser humano, resume-se a ser um
ninguém, um não-ser: apenas um fardo a ser suportado pelo conjunto
dos trabalhadores, dos "homens
de belas".
Evidente,
a maior parte, quase totalidade, da população (sobre) vive do
trabalho produzido por seu corpo, seu instrumento de trabalho. Logo,
uma doença, algo que resulte em redução ou perda da possibilidade
de ganhos, significa vir a deixar de "ser". Estar doente significa não apenas o medo relativo à
patologia, mas também da perda do trabalho, da condenação a viver
perambulando em eterna busca por remédios em farmácias e postos de
saúde do Estado - e sobreviver com achatadas pensões de um falido
sistema de previdência social.
O
Estado, que falha ao negar saúde ou trabalho ao seu cidadão, está
a desrespeitar os Direitos Humanos, Assim, no Brasil, os Direitos
Humanos surgem como uma expectativa de futuro, de um futuro melhor.
E a triste realidade de serem tão somente palavras esquecidas no
livro que deveria guiar, orientar, os rumos da Nação.
Desta
forma, inicia-se a compreensão do como e por que do incluir nesse
Seminário uma discussão sobre o tema das Doenças Sexualmente
Transmissíveis (DST)/AIDS. Mostrando-se que, se a razão de ser
desta temática é simples, a sua compreensão, e, principalmente,
superação, surge como questão extremamente complexa.
Há
de se refletir sobre o que sejam essas doenças e seu papel histórico
e social, há de se perceber como se situam dentro de um conceito
contemporâneo de saúde pública e verificar como o sistema jurídico
importa-se com esses fatos. Tudo
para, a final, pensar sobre o tipo de Estado que impõe tal situação
e as possibilidades de transformação deste, bem como das relações
interindividuais nele propostas.
Doenças
Cumpre
verificar que as doenças, durante muitos anos e ainda hoje, são
poderosos meios de exclusão social. A saúde, ou a falta de,
assumiram, no curso da história, características preconceituosas,
tomado-se poderosos fatores de discriminação. Tuberculose, câncer,
sífilis, cólera e SIDA
são ou foram utilizados ideologicamente como forma de repressão a
grupos minoritários, instrumentos estigmatizadores em relação a
outros povos.
A
falta de saúde significa ainda "etiqueta"
que macula a pessoa como sendo de pouca competitividade, de reduzida
capacidade produtiva. Logo, de pouco interesse para sociedade:
pessoas dispensáveis que, de toda forma, estão fadadas a uma morte
rápida e certa.
Mais,
Sontag (l984: 25) alerta que:
"tais
fantasmas florescem porque considerarmos a tuberculose e o câncer
muito mais do que como doenças que comumente são (ou eram) fatais.
Nós os identificamos como a própria morte".
E acrescenta que "nada é
mais punitivo do que atribuir um significado a uma doença quando
esse significado é invariavelmente moralista.
Qualquer moléstia importante cuja causa é obscura e cujo
tratamento é ineficaz tende a ser sobrecarregada de significação"
Herbert
Daniel (l991: 82) também ressalta o absurdo do temor que transforma
doenças em algo muito mais do que um simples acontecimento fisiológico:
"A
AIDS é um mito! Como diriam os chineses dos bons tempos, 'é um
tigre de papel'. Ora, direis, este é um absurdo que vem desmentir
todos os dados e fatos. E eu explico que a SIDA é uma doença
grave, transmissível e mortal. Não é um 'enigma', mas - como
muitas outras doenças - aparece como um desafio. Este desafio é
colocado à ciência e à comunidade (e não nesta ordem ....). É
verdade que, em termos de saúde pública, há um desafio a ser
vencido, assim como a questão da fome, do trânsito, da poluição,
das doenças cardiovasculares, do câncer, da iatrogênese, etc".
Na realidade nacional, há de se
perceber que, no momento em que o neoliberalismo proclama o abandono
do Estado de Bem-Estar, estar doente aflige muito mais as pessoas
sem condições econômicas para contratarem planos privados de saúde
do que aquelas com capacidade para arcar com os custos destes, de
hospitais, de médicos particulares.
Percebi,
em pesquisa realizada junto ao, Grupo de Apoio à Prevenção da
AIDS (GAPA/RS), no ano de 1993, que 44, I% dos atendimentos do
departamento jurídico da entidade diziam respeito a questões
providenciarias. O que comprova ser de assistência, de acesso aos
serviços públicos, a principal carência de pessoas sem condições
de arcar com os custos da doença.
DST/SIDA
No
que tange às doenças sexualmente transmissíveis, existem
registros milenares e elas até a década de quarenta eram fatais e
preocupavam as autoridades. Em
1927, a Lei de Koch na Alemanha, e depois o Código Penal dinamarquês,
em 1930, criminalizaram condutas que pudessem propagar doenças venéreas
e moléstias graves. Destinavam-se
a impedir a propagação da sífilis, gonorréia e do cancro-mole.
Falharam. Destaque-se
que essas disposições influenciaram o Código Penal brasileiro de
1940, que continua regulando a matéria no país.
Entretanto,
o controle das DST aconteceu somente a partir da metade do anos
quarenta, quando a clínica médica passou a utilizar-se da
penicilina e das sulfas. Parecia que o problema acabara quando, nos
anos sessenta surge a revolução sexual (com o fim do culto à
virgindade e a aceitação de novos métodos de controle da
natalidade) e a indústria do sexo; tudo facilitado pela crescente
urbanização (o anonimato da população urbana dos grandes centros
assegura com discrição o aumento do número de parceiros).
Destacam-se
estas doenças, tendo em vista que nelas o preconceito recrudesce: o
contágio decorre da atividade sexual e sexo continua a ser sinônimo
de pecado, de algo a ser escondido. Especialmente quando acompanhado
de opções "desviantes",
"marginalizadas"; cujos praticantes ou bem negam,
socialmente, sua prática, ou bem são excluídos da sociedade dos
"normais".
O
Brasil é um bom exemplo prático destas características
preconceituosas e mistificadoras em relação à SIDA e outras doenças.
Os programas governamentais que visavam a prevenção da Síndrome,
durante muito tempo, mostraram-se ligados a questões técnicas e
dominados pelo medo de expor assunto tabu de forma clara e explícita,
assumindo que existem na conduta da população.
Como resultado obteve-se inoperância, gastos e fracassos.
Para
aprofundar o exame dessa realidade cumpre saber do que se trata a
SIDA, ou Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Síndrome de
conjunto de sintomas ou sinais de doenças, imunodeficiência do
momento no qual o sistema imunológico de uma pessoa não pode
proteger o corpo, o que facilita o desenvolvimento de diversas doenças;
e adquirida do fato de que ela não é hereditária, depende de
infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH).
Esse
tipo de conceito, porém, não me parece suficiente, limita-se a
relatar aspectos clínicos. Para muitos a Síndrome ainda é sinônimo
de morte, mas grande parte das pessoas já percebem que o período
de vida da pessoa contaminada aumenta e não existe possibilidade de
se negar que a doença terá, em breve, as características de uma
patologia crônica.
O
médico Jonathan Mann, quando era responsável pelo programa de
controle da SIDA da Organização Mundial de Saúde (OMS), em 20 de
outubro de 1987, perante a Assembléia Geral da ONU, alertava que a
SIIDA, na verdade, representava três epidemias: a primeira da infecção
pelo vírus; a segunda das doenças infecciosas e a terceira das reações
sociais, culturais, econômicas e políticas.
Ele acrescentava, desde aquela época, ser essa última tão
fundamental quanto a própria doença e, potencialmente, mais
explosiva do que aquela.
Nesse
sentido, também Daniel (l991: 100), para quem "atribui-se à
ciência, de forma quase imediata, o papel de descobrir soluções médicas.
Coisas bem restritas. Não estarão solucionando nenhum Grande
Enigma. Estarão dando uma explicação médica sobre uma doença.
Ou seja, uma interpretação científica de certos danos e fatos na
relação entre agente etiológico e a evolução da
patologia". Por isso, opto por um conceito histórico-cultural
da SIDA, como o que se segue.
A
SIDA foi diagnosticada pela primeira vez em 1982. Aparece como uma
nova doença; logo, porém, assume um caráter bem mais amplo,
mostrando-se um poderoso fator de discriminação. Decorrência de
características das pessoas então identificadas como portadores:
homossexuais masculinos norte-americanos com idade entre os trinta e
quarenta anos. Isso leva os médicos, respaldados pelos meios de
comunicação, a pensar no surgimento de um câncer
gay - denominação decidida sem ter por base nem sequer o
conhecimento do agente transmissor da Síndrome.
Pouco
tempo depois, identificavam-se inúmeros casos de semelhante
problema em território africano. As hipóteses então levantadas
explicavam o surgimento da epidemia como resultado de rituais
tribais envolvendo macacos, animais nos quais se descobriu vírus
semelhante ao VIH. A teoria estava montada. Trabalhadores haitianos,
com passagem pela África, teriam disseminado o vírus para os
Estados Unidos através de relacionamento homossexual com
norte-americanos.
Assim
como a sífilis em épocas passadas, percebe-se uma perfeita
manipulação dos fatores sexuais e econômicos de discriminação.
Afinal, hoje, embora se tenha claro que a transmissão sexual da
SIDA não é restrita ao comportamento homossexual e que, se a
origem da epidemia foi realmente a África, a causa mais provável são
experiências de cientistas do Primeiro Mundo em território
subdesenvolvido, a idéia inicial persiste no inconsciente coletivo,
mesmo que o perfil atual da Síndrome seja de caráter pandêmico,
atingindo todas as faixas etárias, independentemente de classe
social e comportamento sexual.
A
vontade de estar imune ao perigo, que seria reservado ao outro, ao
pecador, remonta ao século XVIII, quando Cotton Mather (pregador e
escritor puritano da Nova Inglaterra, 1663-1728) dizia que a sífilis
era um castigo "que o
justo juízo de Deus reservou para nossa era tardia".
Hoje, Dom Eugênio Sales (l985) escreve a respeito da SIDA:
"E
cai, como raio, na humanidade, o perigo da AIDS... Surge como imposição
que atinge, em cheio, a inversão sexual, a troca de parceiros, uma
interminável lista de assuntos condenados pela legislação
divina... Esse clima revela a decadência dos costumes com as conseqüências
de um comportamento humano quando contraria o destino para o qual
fomos criados... Os flagelos sociais servem de instrumento para
despertar a consciência, explorar a imoralidade reinante, fazer o
homem retomar aos cantinhos de Deus.”
Essas
visões apocalípticas são absurdas. A SIDA não é algo anormal
que vai acabar com a vida e/ou os costumes do homem na Terra, é
apenas uma doença. Como tal deve ser tratada, como tal deve ser
entendida, pelas pessoas e pelo Direito.
Sontag,
no conjunto de sua obra desmistificada falsas diferenças entre o câncer
e a SIDA ressaltando que, enquanto no câncer o doente pergunta o
porquê de estar vivendo uma situação, na SIDA isso não acontece.
Naquela doença revela-se uma fraqueza do doente; nesta, uma
irresponsabilidade, uma delinqüência.
Houve
tempo em que o câncer igualmente era "criminoso".
Representava sedentarismo, maus hábitos alimentares. Ele perdeu
esse caráter, deixou de ser um pecado, algo a ser escondido; o
mesmo está a acontecer com a SIDA.
Proteção
jurídica da saúde
No
Brasil, conforme Kawamoto (1996: 23/26), a história do direito à
saúde pode ser percebido em quatro momentos: I) no período
colonial, quando a quase totalidade da população utilizava-se da
medicina popular (influenciada pelas culturas indígenas, africanas
e jesuíticas) e o acesso aos profissionais da área de saúde
limitava-se aos nobres e grandes proprietários rurais; 2) no início
do período republicano as epidemias grassam o país e assustam
potenciais imigrantes europeus - Oswaldo Cruz combate a febre
amarela no início deste século e Carlos Chagas, na década de 20,
implanta reforma que propõe, entre outros, propaganda e educação
para a saúde, expansão das atividades de saneamento e serviços de
profilaxia, licença-gestante e proibição do trabalho de menores
de 12 anos em fábricas.
A
seguir, 3) no momento compreendido entre os anos de 1930/1964,
criou-se o Ministério da Educação e Saúde (I 930) e os
trabalhadores passaram a pressionar para receber assistência médica
e 4) no período iniciado com a ditadura militar elabora-se o atual
sistema de saúde e previdência nacional: o INPS, hoje INSS, e o
Sistema único de Saúde, funda-se uma nova definição de saúde,
proposta pela Constituição Federal de 1988.
A
Constituição de 1988 declara que a saúde é um direito social
(artigo 6º), direito de todos e dever do Estado (artigo 196). Na
Constituição, saúde significa “políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e
de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação"
(artigo 196). Mais, quer dizer "atendimento integral, com
prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços
assistenciais" com "participação da comunidade" (artigo 198, incisos II e III).
Kawamoto
(l995: 11) esclarece que
"A
saúde é a resultante da influência dos fatores sócio-econômico-culturais:
alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente,
trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da
terra e acesso a serviços de saúde.
Esses fatores podem gerar grandes desigualdades nos níveis
de vida, que irão interferir na saúde individual e coletiva.".
Ela,
desta forma, revela-se sob forma mais atual e dinâmica; abandona o
critério curativo em prol do preventivo. Não mais atuando de forma
a minorar o sofrimento, mas buscando evitá-lo (e, pragmaticamente,
diminuir os gastos estatais com honorários médicos, medicação e
custos hospitalares).
A
saúde encontra-se protegida pelo Estado de Bem-Estar Social, eis
que reconhecida como direito humano de segunda geração, direito
social (assim como a educação, cultura etc)
. Essa saúde confunde-se, prioritariamente, com vida saudável e
prevenção de doenças. Deixa de ser questão meramente individual
para tornar-se interesse coletivo relacionado à cidadania.
Morais
(l996: 188) resume esta idéia dizendo que:
"Percebe-se,
então, que a saúde não se restringe mais à busca individual e
passa a ter uma feição coletiva na medida em que a saúde pública
passa a ser apropriada pelas coletividades como direito social, como
direito coletivo, bem como alarga-se o seu conteúdo. Tem-se a
prevenção da doença.".
Para
muitos, porém, persiste a idéia antiga, que confunde saúde com
doença e morte. Saúde assume um contorno de apenas ser uma forma
de curar as doenças. O direito à saúde fica, então, restrito a
possibilidade de contratar um profissional médico de acordo com a
capacidade econômica da pessoa, ou recorrer ao Sistema único, em
sendo esta inexistente.
Papel
do Estado, do Direito e da Sociedade
O
pressuposto de um Estado de Bem-Estar Social é a existência de um
Estado Democrático- O Brasil, conforme a Constituição Federal
declara, o é'. Entretanto, destaquei
acima, meras declarações de direitos tomam-se insuficientes
perante a realidade da vida. E, em todo o mundo, a barbárie grassa:
preconceitos relativos a origens, religiões, condições econômicas,
opções, tornam o mundo um palco de intolerância no qual a
possibilidade de sobrevivência encontra-se em rotas de fuga.
De
acordo com esse quadro, percebe-se que "a
doença é o lado sombrio da vida, uma espécie de cidadania mais
onerosa. Todas as pessoas vivas têm dupla cidadania, uma no reino
da saúde e outra no reino da doença".
A doença surge como mais uma forma de discriminação.
Surgem os sifilíticos, cancerosos ou aidéticos; categorias
estranhas às pessoas saudáveis.
E,
neste discurso de "coisificação" do ser humano, eles perdem sua condição de
vida e são condenados à morte civil. Tomam-se não-pessoas -
apenas doentes a espera da morte; semi-homens a serem identificados,
marcados e isolados. Causa de preocupação para a população
sadia. Ameaça à
comunidade. Ghersi (1992: 171), jurista argentino, declara que
"el enfermo de SIDA
representa um estado peligroso de agresión o ataque". O
jornal francês, Le Monde, oito
de junho de 1989, falava em SIDA dos inocentes (como se alguém
fosse culpado de estar doente).
Esse
quadro concernente aos preconceitos envolvendo a Síndrome demonstra
que não se pode restringir a doença e seus efeitos ao campo do
saber e atuação dos profissionais da saúde. Mann tem razão ao
denunciar as diversas epidemias de SIDA.
Assim,
no que tange ao Estado, o atendimento deve ocorrer junto à
comunidade e sob supervisão desta, seguindo tanto critérios médicos
quanto sociais. O atendimento deve democratizar-se, garantindo à
população serviços de saúde, preventivos e curativos. Educação para a saúde e políticas de incentivo à
solidariedade (como contraponto ao preconceito e exclusão),
destacam-se entre as medidas esperadas de um novo enfoque nas ações
governamentais.
Quanto
ao papel do Direito, percebe-se que não se limita ao antes previsto
pelo Código Penal (criminalizar condutas como o propagar germes ou
impedir o governo de contê-los, envenenar ou poluir águas,
falsificar remédios ou alimentos). Neste sentido são elogiáveis
as decisões de nosso Tribunal de Justiça:
Apelação Cível. nº 59087170, julgada pela 1ª Câmara Cível do
TJRGS ("Administrativo e constitucional.
Paciente de SIDA ou AIDS. Saúde, Direito Fundamental do
Cidadão e Dever do Estado. Medicamentos. Fonecimento.
Responsabilidade do Administrador Público" - Diário
de Justiça de 08/08/97)
ou
Agravo de Instrumento nº 596245019, julgado pela 18 Câmara Cível do
TJRGS ("1. As regras da legislação ordinária não se sobrepõem
a mandamento constitucional e a doença grave, como a AIDS, causada
pelo vírus HIV, não pode ficar aguardando o tratamento e que
depende de solução jurídica ou burocrática, que via de regra,
chega quase sempre depois do decesso da vítima. 2. A saúde é o
bem maior do homem e deve do Estado, que deve ajudá-lo na senda de
sua plena realização." - DJ de 04/07/97).
No
que tange à SIDA, em outra oportunidade, escrevi:
"Assim
comprova-se, a função do Direito Penal deve ser preventiva.
Tutelando o sigilo do resultado de exames, garantindo o acesso a
empregos sem testagem compulsória, o internamento dos doentes em
hospitais etc. Afora o respeito pelos direitos dos cidadãos, cabe
esclarecer outra vantagem desta política criminal. Essas posturas
anti-discriminatórias garantiriam melhores chances de controle da
epidemia, tendo em vista que as pessoas não temeriam assumir sua
condição de portador. Seriam, portanto, incentivadas a procurar os
serviços médicos para realizar testes e, se necessário,
tratamento prescrito.".
Afinal,
os conflitos jurídicos, as lides que alcançam ao Poder Judiciário,
não são mais apenas as que dizem respeito a relações
interindividuais. As questões sociais adquiriram importância e
relevância. Hoje, o cidadão, reunido em ONGS, possui capacidade
para postular direitos transindividuais,
o Ministério Público, depois da Constituição de 1988 também (em
vários momentos a instituição já fez uso dessa prerrogativa,
quase dever - para a qual pode ser acionado).
Ou
seja, a missão do Direito está a ampliar-se e dispositivos capazes
de permitir essa atuação a serem criados. Tudo a fim de alcançar
os preceitos constitucionais contemporâneos de busca de efetividade
dos direitos sociais e, em especial, no que interessa aqui, um
conceito de saúde não restrito ao curar a doença de um paciente,
mas ao garantir a qualidade de vida, a saúde, dos cidadãos.
O
atraso da lei em relação ao texto constitucional deve ser
recuperado. A legislação ordinária deve ser adaptada à Constituição.
Dentre as formas de fazê-lo, destaque-se o privilégio da
redação de normas positivas (opostas às penais - negativas eis
que meramente criminafizantes, proibitivas de condutas) que pautem
as obrigações do Estado e da sociedade e os obriguem a agir e
intervir de forma a resolver os problemas sociais e não agravá-los
através de condutas e políticas discriminatórias.
Essas
são medidas jurídicas que o Direito tem condições de realizar.
Representam uma nova forma de perceber o direito à saúde e
possibilidade de garantir o texto da Constituição. Eis a que cabe
os operadores jurídicos dedicar-se, eis do que necessitam os cidadãos,
eis o que a população deve exigir.
Mas
apenas isso não solucionará o problema. Grande parte das questões
suscitadas pelas doenças se resolverá quando as pessoas receberem
o auxílio que necessitam e merecem. Entretanto, permanecerá o
desafio de resolver questões relativas a discriminação e
preconceito. Políticas públicas e ações positivas adotadas pelo
Estado possuem papel relevante, embora não únicos, eis que
dependem igualmente da mudança de Mentalidade dos indivíduos.
E
incentivar a transformação consciente de condutas surge como algo
muito mais complexo a ser efetuado. Principalmente por pressupor a
vontade do indivíduo em alterá-la. Um difícil desafio que, mesmo
depois de resolvidas discriminações em relação ao câncer, sífilis
e outras, prossegue em relação à SIDA.
Um
desafio que continuará a pautar atitudes de quem busque uma
sociedade democrática, quer seja em relação a integrar pessoas
doentes, pessoas que atingiram (ou não) determinada idade, pessoas
com a pele de uma ou de outra cor, homens e mulheres que optaram por
manter uma vida sexual ativa. Esses os desafios postos às sociedade
contemporânea no âmbito da discussão aqui proposta.
De
entendimento e resolução complexa, a questão das DST/SIDA em relação
à exclusão aparece como mais um momento em que os Direitos Humanos
devem demonstrar que surgem como alternativa real para resolução
de conflitos sociais dentro dos Estados contemporâneos. Quer seja
garantindo saúde (pública), quer seja garantindo qualidade de
vida, quer seja garantindo respeito pelo ser humano.
Referências Bibliográficas