500
ANOS DE UMA CIDADANIA EXCLUDENTE
Rosa
Maria Godoy Silveira
Para o historiador espanhol/catalão
Joseph Fontana, “falar do passado de uma
sociedade é posicionar-se em relação ao tempo
presente, suas mazelas e grandezas. É
definir-se em relação às lutas e aos projetos
sociais em confronto na sociedade em que vive o
historiador”.
É esta a função
social da ciência histórica e hoje, à luz das
mais recentes tendências, é ponto pacífico
para os historiadores, que olhamos o passado
sempre na perspectiva de nossa
contemporaneidade, muito embora ainda congelada
em um tempo morto e esvaziada da multiplicidade
da experiência humana e de suas virtualidades
transformadoras.
Depois da Escola dos Annales, na França,
emergentes das reflexões de um grupo de
estudiosos interessados em compreender um mundo
dilacerado pela 1a Guerra Mundial e a
erosão de valores diante da voragem de novos
processos sociais, alguns deles de terríveis
conseqüências posteriores, como nazi-facismo,
não foi mais possível olhar o passado de forma
“blaisé”, descomprometida e acomodada e a
História – problema de Lucien Febvre e March
Bloch se propôs a interrogar o passado,
lançar-lhe questões do tempo presente, não
para que possamos revivenciá-las, mas para
elaborar uma compreensão como a aventura humana
tem sido construída e reprojetar o futuro com
uma consciência crítica.
Daí que examinar os 500 anos de nosso
passado, encurtado pelo marco da presença
européia, de vez que a presença humana no
território hoje brasileiro recua até cerca –
talvez- de 50.00 anos atrás , conforme
demonstram os achados arqueológicos, significa
encarar as “dores do nosso tempo”. Dores que
se inauguram, aliás, na conquista , com o
genocídio indígena.
Parece paradoxal, quando comemorar é uma
festa. Celebração. Mas uma festa cívica é,
sobretudo, Memória coletiva que confere um
sentido de identidades aos grupos sociais, a um
determinada sociedade.
Muitos
temas e aspectos poderiam ser sacados dos
escaninhos de nossa Memória, suscitados pela
efeméride do 5o Centenário do
Brasil. O intuito deste texto é possibilitar
nossas reflexões sobra a nossa trajetória como
nação, como povo.
Sendo
pois, múltiplas as possibilidades de
interpretá-la, pareceu-nos relevante discutir o
percurso da problemática da nossa cidadania
e a nossa problemática cidadania.
Fomos
construídos como uma sociedade excludente.
Da
destituição dos nativos in
loco à destituição longínqua dos negros
africanos, gestamos uma sociedade assimétrica
hierárquica, discriminatória social, étnica e
culturalmente. A mestiçagem, se nos fez
multiculturais, não eregiu, desse processo
peculiar de nossa cultura, a base de um país
democrático. A marca colonizadora de nossa
certidão de nascimento, o monopólio da terra,
a concepção e a prática patrimonialista de
poder, permeando o Estado metropolitano e as
elites dirigentes da Colônia, configuraram numa
estrutura de poder marcada, desde as origens,
pelo empreguismo, a troca de favores e a
corrupção, instaurando uma certa cultura
política que longe está de ter sido debelada.
Essa leitura pode ser vislumbrada na
documentação referente às Capitanias do
Brasil, existente no Arquivo Histórico
Ultramarino, que vários estados já organizaram
ou estão organizando, como é o caso da
Paraíba, sob patrocínio do Ministério da
Cultura. No caso paraibano, sob a égide da
Universidade Federal da Paraíba.
Também
colonial foi a forma como se estabeleceu o poder
público. Entre a centralização metropolitana
e o poder local dos proprietários de sesmarias,
convertidas legal e ilegalmente em latifúndios,
assumiu-se um vasto leque de transações entre
a burguesia portuguesa e sua asfixiante
administração, com o mandonismo, deixando uma
herança ibérica de burocratismo excessivo,
fúria legisferante – normativa e um pacto de
dominação sobre a imensa massa de índios
(antes de serem mortos), negros escravos e
mestiços das camadas destituídas, cujos
projetos alternativos de sociedade foram
duramente reprimidos: a Confederação dos
Cariris e os quilombos, por exemplo.
Lutou-se
contra o Pacto Colonial. O Brasil autonomizou-se
politicamente, ao custo de dois milhões de
libras esterlinas-ouro, algumas guerras e uma
transação dinástica. Nossa carta de crisma:
uma Carta outorgada e os representantes da 1a
Constituinte, silenciados a baionetas. Mas a
brecha que poderia ter sido, não se abriu: a junção entre as
elites brasileiras e o povo, articulando um
projeto democrático, nos contornos da
democracia liberal da
época, não se alargou, conforme nos diz
a competentíssima historiadora Emília Viotti
da Costa,
professora emérita da Universidade de Yale –
Estados Unidos, mas cassada pela ditadura
militar porque, como vislumbrou Margareth
Tatcher, a História precisa ser controlada
porquanto perigosa.
Liberalismo
e democracia, neste momento, se separam, como
aponta o Prof. Sérgio Adorno, da Universidade
de São Paulo. Caminharam em leitos
separados na corrente do tempo. Parte dos
liberais se conservadorizaram, pelo temor diante
da possibilidade da multidão na História: ou
seja, os projetos populares do período
regencial, dos cabanos, dos balaios, dos malês,
dos sabinos; e, até, projetos diferenciados no
âmbito da própria elite, or maior autonomia, a
exemplo dos farroupilhas. “Detenhamos o carro
da revolução”, bradou Bernardo Pereira de
Vasconcelos,
condensando o medo diante do povo.
Também
da elite, de um modo geral, ou, no limite, pacto
entre elite e segmentos médios urbanos, foi
duramente reprimida a tradição
libertário-autonomista do Norte – hoje
Nordeste -, notadamente Pernambuco, Paraíba,
Ceará, manifesta na Revolução de 1817, na
Confederação do Equador, na Revolução
Praieira. Poderíamos ter sido Repúblicas quase
setenta anos antes do que fomos. Mas o medo da
elite e a repressão fizeram triunfar um outro
projeto, unitarista, centralizador,
regionalmente desigual, viabilizando e
consolidando a hegemonia do grupo cafeeiro
fluminense.
Sob
o discurso da “nação indivisa”, que a
estes interesses servia, reiterou-se a estrutura
colonial. A democracia à brasileira, o
liberalismo à brasileira, inspirando-se em
modelos ingleses e franceses no que lhes
convinha e depurando-os das virtualidades
emancipatórias, que não lhes convinham (os
chamados “malignos vapores” ou idéias da
tradição revolucionária de 1789), plasmaram
uma sociedade de cidadãos hierarquizados, cuja
nomeclatura, na Carta de 24, evidencia a
discriminação político-eleitoral: cidadãos
ativos e cidadãos simplesmente, aqueles,
com direitos políticos; estes, apenas com
direitos civis, assim mesmo discutíveis no
cotejo com uma sociedade de uma imensa massa de
analfabetos e de trabalhadores escravos. A
chamada construção do “Estado nacional” é
uma das maiores engenharias políticas de
exclusão de cidadania, organizado e
estratificado, através da centralização
política, o controle dos “três mundos”,
como elucida a obra do Prof. Ilmar Rohloff de
Mattos, da Universidade Federal Fluminense, O
Tempo Saquarema:
o mundo da Casa, ou do privatismo da elite
agrária, podando-lhe as pretensões
autonomistas; o Mundo da Rua ou da Desordem ou
da Plebe, cerceando-se as expressões da
população pobre livre, pela violência e
mecanismos de cooptação; o mundo do Trabalho,
reprimindo-se os escravos, pela coerção
legislativo-normativa e as repressões pura e
simples.
A
reforma eleitoral dos finais dos anos 70 do
Império, permitindo o
voto do analfabeto, não ampliou o
eleitorado. Tirou com a outra mão o que havia
dado com uma, elevando o critério de renda
mínima como requisito para ser eleitor.
A
abolição dos escravos, mais uma vez,
demonstrou o divórcio entre liberalismo e
democracia, outorgada “sem
disposições em contrário” e,
também, sem nenhum projeto de integração dos
libertos à sociedade, econômica, social e
politicamente, deixando um rastro de preconceito
e discriminação
que não se extirpou de nossa sociedade.
Novamente, o temor das elites podava uma
alternativa mais democratizante, que se estava
engendrando, da junção da luta escrava com as
aspirações das camadas médias urbanas por
direitos políticos e acesso a condições de
trabalho.
A
República seria a democracia. Mas não o foi.
Não por ter caído de cima para baixo, de um
pacto entre a elite agrária paulista, o
segmento militar e alguns republicanos
idealistas, que cedo se desiludiram com o
regime. Mas, principalmente, porque o eleitorado
encolheu, em relação ao Império, conforme as
pesquisas o demonstram; e, ainda, reiterou,
através de um Estado Oligárquico, o poder de
grupos locais latifundiários sobre as massas
camponesas. O federalismo de inspiração
norte-americana, se democrático em comparação
com o centralismo do Império, o foi no limite
das elites proprietárias, dando-lhes maior
autonomia demando. Jamais possibilitou espaço
para um self-government
de participação popular, a exemplo da
tradição anglo-saxônica, embora neste modelo
também se inclua a ingrediente da
discriminação, racial, por exemplo.
30,
64, 85: todos movimentos pelo alto, cerceando as
aspirações populares.
Se
30 se inspirou no “Façamos a Revolução
antes que o povo a faça”, 64 se
auto-justificou no combate aos “inimigos
internos” adversários do projeto
multinacionalizante e reiterativo de nossa
dependência; e 85 interditou às as Diretas
Já! Se o movimento operário avançou nos anos
30, o sindicalismo oficial e a ditadura do
Estado Novo o atrelaram, reprimindo
“perigosos” extravasamentos das massas
urbanas emergentes. A democracia oficial do
interregno populista não deixou de criar novos
mecanismos de controle e cooptação ou mesmo
repressão. A democracia formal da Nova
República não deixou de ser mais retórica que
efetiva, em seu jogo ambíguo, onde o “Tudo
pelo Social” toldou a percepção de indícios
claros de políticas neoliberais que se
implantariam com vigor nos anos 90.
Anos
90, quase no fim. 500 anos de Brasil.
O
que há de novo? O que mudou? O que melhorou
para a população brasileira?
A
sedução do mercado globalizado, de uma elite e
de uma classe média alta afluente aos fluxos
cibernéticos e internéticos internacionais
consegue ocultar um dos movimentos mais
profundos de expropriação de direitos da
cidadania, em nossa História, apesar do
discurso e da propaganda em contrário. Aliás,
enganosa, a merecer ações dos consumidores
no PROCON.
Ou
cidadania é apenas formalização
jurídico-institucional de direitos?
Os
estudiosos apontam que estamos vivendo a 4a
fase histórica na luta por direitos. Dos
direitos civis da tradição liberal dos
séculos XVII-XVIII, passou-se aos direitos
políticos do século XIX, ampliando a
participação eleitoral; aos direitos sociais
(saúde, educação, moradia etc.) no século XX
e, mais recentemente, após a 2a
Guerra Mundial, aos novos direitos como o
ambiental, o do consumidor, da mulher, dos
negros, dos homossexuais etc.
Na
Europa Ocidental, Escandinávia, América do
Norte, é claro. Nossa História é outra.
Apesar
de todos esses blocos de direitos circularem em
nossa sociedade, e terem avançado no plano da
formalização normativa, na prática,
funcionam?
Temos
enormes massas de analfabetos, ainda. Pessoas
morrem, cotidianamente, nos
hospitais. Milhões passam fome e
milhares morrem de epidemias tecnicamente
resolvidas à décadas e, em certos casos,
séculos.
E,
mesmo assim, ainda se está cerceando os
míseros direitos que restam à população,
duramente conquistados e agora conspurcados por
uma elite que, mais uma vez em nossa História,
dá as costas ao povo e se curva aos ditames do
capital internacional.
O
desemprego se robustece, o salário mínimo se
encurta.
Politicamente,
o poder econômico produz grande parte dos
resultados eleitorais e de nossa representação
política. A corrupção grassa sem punição:
se é verdade que o FMI nos impõe políticas
recessivas, isto é meia verdade. Não há
dinheiro para políticas públicas também
porque nossos políticos assaltam os cofres
públicos de várias formas como, por exemplo, o
empreguismo de seus apaniguados, as licitações
de obras públicas com cartas marcadas, o roubo
direto de verbas destinadas à merenda escolar
etc. etc. etc.
É
desse jeito que somos cidadãos?
A
cidadania que queremos, e precisamos, não é a
empulhação que nos vende a propaganda oficial,
que pretende ser uma cidadania consumista, nem
esta sequer garantida, desmentida a toda hora
por outros discursos oficiais de
refilantropização das ações sociais.
Daqui
a 500 anos, ou menos, algum Ministério da
Cultura da época, que fizer um outro projeto
para recuperar a nossa Memória coletiva,
encontrará significativas semelhanças com a
documentação produzida no Brasil colonial.
Ou
não?
Poderá
ser não.
Paul
Ricouer – professor emérito da Universidade
de Chicago – nos diz que “...é preciso
inverter a ordem dos problemas a partir do projeto
da história, da história por fazer, com o
objetivo de nela reencontrar a dialética do
passado e do futuro e
seu intercâmbio no presente.”
Do cotejo entre o nosso horizonte de expectativa
e a reinterpretação do nosso espaço de
experiência, podemos construir uma sociedade
democrática e de Cidadania efetiva.
Em
nossos 500 anos de História pós-chegada dos
europeus, se a exclusão social e política se
hegemonizou, ela não era inevitável e
unívoca. Muitas trajetórias de lutas
democratizantes foram interrompidas, reprimidas,
massacradas. De índios, escravos, camponeses,
operários, homens, mulheres etc.. O que vingou
e se impôs, foi a opção de grupos que
preferiram compor o poder com os colonizadores,
ainda que subordinados aos mesmos; que continuam
a preferir compor o poder com os
neo-colonizadores neoliberais, ainda que a
subordinação seja maior. Porque não
preferiram construir uma sociedade onde houvesse
partilha de pode com o povo.
O
mesmo Joseph Fontana nos descreve:
“Durante
a guerra civil espanhola, Antonio Machado [o
poeta] escreveu que ao examinar o passado para
ver o
que levava dentro, era fácil encontrar nele um
acúmulo de esperanças nem alcançadas nem
falidas, isto é, um futuro. O tipo de
história que escrevemos e ensinamos há
duzentos anos eliminou este núcleo de
esperanças latentes do seu relato, onde tudo se
produz fatalmente, mecanicamente, numa ascensão
initerrupta que leva o homem das cavernas
pré-históricas até a glória da
pós-modernidade”.
Nossos
500 anos não foram lineares. A Memória
coletiva das esperanças do povo não jaz
soterrada no passado, para sempre.
Nossa
História nunca foi assim como disseram. Nossa
História por fazer não será assim como nos
querem fazer crer, inevitável, e, se
inevitável, sem esperanças, se o nosso projeto
de História por fazer, o nosso horizonte de
expectativas, retomar o passado no seu perigo
radical: ser “o relato da luta dos homens e
das mulheres pela liberdade e pela justiça”.
Finalizo
com o poeta Fernando Pessoa, ao falar da
heroicidade e da tragicidade da conquista
portuguesa. Pessoa, que refletiu sobre o valor e
as dores desse feito. Faço-o com uma licença
poética. A poesia chama-se Prece:
“Senhor,
a noite veio e a alma é vil.
Tanta
foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos
hoje, no silêncio hostil,
O
mar universal e a saudade.
Mas
a chama, que a vida em nós criou,
Se
ainda há vida, ainda não é finda.
O
frio morto em cinzas a ocultou:
A
mão do vento pode erguê-la ainda.
Dá
o sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia,
Com
que a chama do esforço se remoça,
E
outra vez conquistemos a Distância –
Do
mar ou outra, mas que seja nossa!”
A
nossa licença poética, com o devido respeito a
Fernando Pessoa, é
“E
outra vez conquistemos a esperança
da
liberdade e da justiça, que sejam nossas!”
Muito
obrigado.