
ÉTICA,
DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA
Marconi
Pimentel Pequeno
O
que a filosofia moral tem a nos dizer sobre os direitos humanos
? De que maneira a moralidade pode contribuir para a efetivação
de certos direitos fundamentais ? O que significa do ponto de
vista moral ter um direito ? O que é um direito ? O que é a
moral ? O que é um direito moral ? Finalmente, como pensar o
ser da moral no momento em que se perde de vista a moral de
todos os seres ? Tais indagações traduzem a amplitude e a
complexidade das questões que envolvem a relação entre ética
e direitos humanos. Tal relação não está imune a controvérsias, razão pela
qual acreditamos que seu estudo deve necessariamente nos
conduzir a uma problematização mais rigorosa acerca do que de
fato representam os direitos humanos aos olhos da filosofia
moral.
O
conteúdo e a extensão dos direitos humanos não estão
definitivamente fixados na consciência moral da humanidade. Não
é absolutamente evidente para os indivíduos que eles gozam de
direitos, nem, tampouco, que estes devem ser respeitados. Eis
por que devemos, antes de tratar da natureza e das condições
de possibilidade de sua efetivação, refletir sobre a origem de
tais direitos. Se falamos em direitos fundamentais da pessoa
humana, precisamos saber em que consistem tais direitos, por que
são fundamentais e quem é essa pessoa que goza de um estatuto
humano. Em suma : precisamos encontrar o justo sentido dos
termos que usamos
em nosso discurso, mas que às vezes não sabemos o que
significam. Assim
sendo, pretendemos inicialmente abordar o problema confrontando
a idéia de direito com a noção de moralidade.
A
idéia moderna de moral está alicerçada na subjetividade,
enquanto os direitos humanos nascem como um conceito que assume
uma dimensão coletiva. Mas, direitos coletivos implicam também
obrigações coletivas Nesse
caso, não podemos pensar os direitos dissociando-os da noção
de obrigação. Noutros termos, o primado moral do conceito de
direito não pode substituir o de obrigação moral. É certo
que pode haver direitos sem obrigações (no caso das crianças,
por exemplo) e obrigações sem direitos (a exigência moral de
não maltratarmos os animais, que, por sua vez, são destituídos
de direitos formais), porém o que interessa destacar é a relação
íntima de correspondência entre direitos humanos e obrigações
morais.
Parece
evidente que, do ponto de vista axiológico, o discurso sobre o
direito ficaria desamparado sem a correlação com o discurso da
obrigação. Se isto é verdade, podemos então aceder à
primeira conclusão : formalmente, só podemos constituir um
discurso sobre os direitos com base no discurso sobre as obrigações.
Com efeito, o conceito de direito somente teria sentido se fosse
elaborada uma pergunta prévia sobre as obrigações que lhe são
correspondentes. Entretanto, se a cada direito correspondem
diversas obrigações seria o caso de falarmos primeiramente em
obrigações humanas e não em direitos humanos ?
Tais
dificuldades revelam o quanto o universo dos direitos humanos se
afigura inexpugnável
às abordagens simplistas, aos discursos do senso comum, às
meras declarações de princípios. Aliás, há algo que
permanece obscuro na idéia iluminista de direitos humanos.
Afinal, como não reconhecer que existe um paradoxo entre o
entusiasmo da razão emancipadora que funda tais direitos e a dúvida
sobre a sua real efetivação?
Ora,
a nossa experiência histórica comprova que a democracia não
tem sido capaz de assegurar o exercício da liberdade e a prática
da justiça, ou seja, não tem se mostrado apta a garantir a
efetivação dos direitos humanos. A democracia pode ser uma
condição necessária à efetivação dos direitos humanos, mas
não é jamais a condição suficiente e definitiva para a sua
realização. Até porque a democracia, como já haviam mostrado
Platão e Aristóteles, não está imune à tentação totalitária,
podendo, por isso, tornar-se uma variante do direito do mais
forte, uma espécie de tirania da maioria.
Como
se vê, os problemas ligados à efetivação dos direitos
humanos são numerosos, complexos e de natureza diversa. As
dificuldades inerentes à plena realização de tais direitos
nos impõem o desafio de repensar os fundamentos, a razão de
ser e a amplitude de tais postulados. Os direitos humanos estão
enredados, ainda, em dificuldades concernentes à legitimidade
de alguns dos princípios normativos que os constituem. Diante
dessa evidência, poder-se-ia perguntar : qual a origem dos
valores e normas que fundam tais direitos? Uma genealogia da idéia
de direitos humanos se impõe como condição prévia de sua
elucidação. Além do que, para saber se tais direitos podem
ser justificados, precisamos buscar uma definição precisa e
adequada do termo. Em outras palavras, devemos elucidá-los a
partir do seu conceito. Todavia, não podemos falar em conceito
sem nos reportarmos aos seus fundamentos. Eis que surge aqui o
problema acerca do fundamento dos direitos humanos. Sobre isto a
filosofia tem algo a nos dizer.
A
filosofia, ao longo da história, tem
elaborado princípios destinados a garantir que tais
direitos sejam erigidos, proclamados e utilizados como idéias
regulativas da vida em sociedade. É certo que o problema filosófico
dos direitos humanos não pode ser dissociado do estudo dos
problemas históricos, sociais, econômicos, jurídicos
inerentes à sua realização. Por outro lado, convém colocar
em questão a pertinência de tal investigação a partir das
seguintes indagações : até que ponto o problema do fundamento
dos direitos humanos torna-se prioritário na época em que
vivemos ? Uma vez identificados tais direitos, como assentá-los
sobre princípios consistentes, se nem mesmo a existência moral
dos indivíduos goza hoje de uma base teórica segura ? Como
elaborar um fundamento universal capaz de sustentar o peso da
diversidade de culturas, hábitos, costumes, convenções e
comportamentos próprios às inúmeras sociedades ? Em face de
tais dificuldades, seria cabível compartilhar do ponto de vista
de Norberto Bobbio para
quem “o problema grave do nosso tempo, com relação aos direitos humanos, não
é mais o de fundamentá-los e sim o de protegê-los” (Bobbio,
1982, p. 25) ? Mas,
protegê-los implica em aceitar a noção de que já conseguimos
implantá-los. O problema então é de outra ordem : em que
sentido podemos afirmar que os direitos humanos já adquiriram
estatuto de cidadania na comunidade de nações ? Trata-se de
algo consensual e absolutamente livre de controvérsias sobre
seu valor e eficácia ? Por fim, em que se fundamenta a idéia
de que devemos protegê-los ?
Talvez
seja correto pensar, em meio à crise do fundamento que nos
assola, que a grande questão que nos desafia não é de caráter
filosófico, histórico ou jurídico, mas sim político.
Trata-se de garantir que, não obstante as solenes e inúmeras Declarações,
tais direitos não sejam violados. Afinal, de que vale a
pergunta acerca da natureza de tais direitos se os mesmos se
afiguram inexeqüíveis ou mesmo desrespeitados? Sim, do ponto
de vista pragmático, o que importa é analisar as condições,
as vias e as situações mediante as quais este ou aquele
direito pode ser realizado. Até porque parece claro que a exigência
do respeito aos direitos humanos pressupõe, como condição sine
qua non para a sua existência e realização, a certeza de
que eles são fundamentados. Mas será que o problema
concernente à fundamentação dos direitos humanos está mesmo
resolvido ? A razão de ser de tais direitos constitui-se numa
realidade consumada ? Trata-se de um problema com o qual nós não
deveríamos mais nos preocupar ? Convém demonstrar como a questão
da fundamentação de tais direitos se oferece ao olhar da
filosofia, até porque é dever de ofício da mesma se ocupar
das questões que antecedem toda e qualquer tentativa de solução
do problema.
Ao
longo da história da filosofia muitas foram as tentativas de
fundamentar os direitos humanos. De maneira mais significativa
tal intento se anuncia nitidamente a partir do século XVII com
o jusnaturalismo de Locke, para quem o homem naturalmente tem
direito à vida e à igualdade de oportunidades. Este preceito
é seguido por Rousseau ao anunciar que todos os homens nascem
livres e iguais por natureza. Nesse mesma perspectiva, podemos
citar Kant para quem os homens têm direito à liberdade a qual
deveria ser exercida de forma autônoma e racional.
Os teóricos do direito natural
recorriam freqüentemente à idéia de evidência para
afirmar que tais direitos eram inelutáveis e, portanto,
inquestionáveis.
Todavia,
aquilo que era considerado evidente numa dada época deixou de sê-lo
posteriormente (direito irrestrito à propriedade, direito de
torturar prisioneiros, direito ao uso da violência, etc.). Aliás,
uma breve digressão à filosofia política do passado pode
atestar esse caráter de variabilidade que o acompanha. Assim,
por exemplo, ao direito à propriedade propugnado por Hobbes e
Locke foram acrescentados o direito à liberdade (Kant), os
direitos políticos (Hegel), os direitos sociais (Marx). Eis
porque se pode afirmar que cada direito é filho do seu tempo.
Os
direitos humanos têm hoje se alicerçado no valor intrínseco
do princípio da dignidade.
Ao elaborar a segunda fórmula do imperativo categórico, Kant
anuncia “ age de tal
forma que tu trates a humanidade, tanto na tua pessoa quanto na
pessoa de qualquer outro, sempre como um fim e nunca como um
meio” (Kant, 1785, 420-1). Para ele, todo ser humano é
dotado de dignidade
em virtude de sua natureza racional, ou seja, cada ser humano
tem um valor primordial independentemente de seu caráter
individual ou de sua posição social. Eis por que o homem é
tomado como um fim em si mesmo. A idéia de dignidade deve,
pois, instaurar uma nova forma de vida capaz de garantir a
liberdade e a autonomia do sujeito.
A
dignidade se impõe
como um valor incondicional, incomensurável, insubstituível,
que não admite equivalente. Trata-se de algo que possui uma
dimensão qualitativa, jamais quantitativa. Por isso, uma pessoa
não pode gozar de mais dignidade do que outra. Mas como
utilizar esse preceito nas situações-limite em que é necessário
confrontar dignidades a fim de se escolher uma delas ? O que
fazer diante da cena dantesca
de um corredor de hospital público repleto de pacientes
(e como são pacientes !) que almejam atendimento e salvação ?
Esta dúvida tem freqüentemente atormentado profissionais da saúde
quando se vêem sem meios para curar, sem critérios para
escolher. É evidente que tal princípio não pode servir como
um imperativo aplicável em todos os casos, porém é em função
dessa idéia volátil, e às vezes imprecisa, de dignidade que
podemos identificar quando ela é negada, negligenciada,
esquecida.
É
certo que não estamos aptos a fornecer uma definição ampla,
satisfatória e inquestionável acerca do que vem a ser dignidade
humana. A esta
pergunta talvez seja o caso de responder como o fez Santo
Agostinho quando lhe indagaram acerca do que é o tempo : se
ninguém me pergunta o que representa a dignidade humana eu sei
o que ela significa, porém se alguém me pede para explicá-la
eu já não saberia o que dizer. Mas se tal expressão
(dignidade humana) é polissêmica e sujeita a múltiplas
interpretações, como esperar que ela possa bem fundamentar
tais direitos ?
Decerto
que ninguém precisa saber definir dignidade humana para
reconhecer que ela existe como prerrogativa inalienável do
sujeito. Precisaríamos então compreender o que ela significa
para defender os que têm sua dignidade ultrajada ? Acreditamos
que não. Todavia, nessa cruzada contra os detratores da nossa
humanidade, estaremos também prontos a lutar pela dignidade das
plantas e dos animais, como querem os ambientalistas ? Embora
originariamente essa categoria se aplique ao homem, nada nos
impede de conferir estatuto de ser existente dotado de dignidade
às espécies dos reinos animal, vegetal ou mesmo mineral.
Podemos conferir-lhes, mas também podemos conspurcar-lhes tal
estatuto. Isto atesta o caráter antropocêntrico de tais
direitos. É do homem que surgem, é para o homem que convergem.
Tanto
quanto a noção de direito humanos a idéia de cidadania possui
um sentido cada vez mais amplo. Os direitos do cidadão implicam
a existência de uma ordem jurídico-política garantida pelo
Estado. Tais direitos, portanto, não têm amplitude universal.
São prerrogativas dos indivíduos (cidadãos) que participam
dos destinos da pólis.
Os direitos de cidadania precisam, pois, ser garantidos por
dispositivos constitucionais. Em muitos casos, os direitos dos
cidadãos coincidem com os direitos humanos fundamentais. Porém,
estes se caracterizam pela amplitude e abrangência em relação
aos primeiros. Assim, por exemplo, uma criança tem direitos
humanos, mas não tem direitos ou deveres ligados à cidadania.
O mesmo acontece com os doentes mentais e, em certo sentido, com
os povos indígenas, que ainda sofrem a tutela do Estado. Do
ponto de vista da variabilidade, os direitos de cidadania são
mais sujeitos a modificações, pois podem ser ampliados,
restringidos ou simplesmente abolidos pelos governos ou pelos
poderes constituídos. Porém, em virtude de sua preeminência e
complexidade, investigaremos a natureza dos direitos humanos,
para, em seguida, mostrar como estes podem fundar alguns
direitos de cidadania.
Os
direitos humanos surgem como direitos fundamentais inatos a
todos os homens. Constituem, por isso, uma prerrogativa inalienável.
Enquanto tais, eles devem ser protegidos pela ordem jurídica
dos Estados. Eles valem, pois, como direitos positivamente
estabelecidos, já que, na realidade, estão fundados em critérios
normativos. Direito à liberdade individual, à vida, à
propriedade, à busca da felicidade, à segurança, à participação
na vida sócio-política do país, são os primeiros direitos
reconhecidos como fundamentais, cuja formulação remonta ao
direito natural racional (Hobbes, Locke, Wolff). Nesse caso,
eles são fundamentais não porque têm um fundamento, mas
porque são imprescindíveis à existência do homem em
sociedade. Porém, como garantir que o fundamento desses
direitos fundamentais seja aceito e defendido pelo conjunto dos
seres humanos ? Eis um problema de difícil solução.
Atualmente tenta-se justificar o valor desses direitos
recorrendo-se à idéia de que há uma consenso, um entendimento
ou uma aceitação tácita dos mesmos por parte dos diversos
membros da comunidade de nações. A
Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) se propõe
a demonstrar que um determinado sistema de valores é factível,
que ele pode ser instaurado e compartilhado pela maioria dos
homens do planeta. A universalização desse princípios
regulativos da conduta humana revelaria que o humanidade
partilha alguns valores comuns, cujo conteúdo seria
subjetivamente aceito e acolhido por todos os homens do
planeta.
Na Declaração de 1948, a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo,
universal e positiva. Ela envolve todos os homens e não apenas
os cidadãos (como ocorre na Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789). Para Bobbio,
“os direitos do homem nascem como direitos naturais universais (jusnaturalismo),
desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para
finalmente encontrar sua plena realização como direitos
positivos universais ”(Bobbio, 1982, p. 30). Trata-se,
pois, de um ideal a ser alcançado por todos os povos e
nações. Tal Declaração, contudo, está longe de ser
definitiva, haja vista o caráter histórico e, portanto, provisório
de tais direitos. Além disso, como indica Otfried Höffe, “a
declaração dos direitos fundamentais é, sob diversos
aspectos, primeiro um programa político e não a última pedra
na positivação dos direitos do homem” (Höffe, 1991,
p.376). De fato, a Declaração de 1948 traduz os direitos do
homem contemporâneo que vive sob a égide dos valores
determinados em sua época pelos contornos da história. A estes
devem somar-se as exigências mais atuais que demandam novos
direitos, como : o progresso da técnica, a degradação do
meio-ambiente e o papel que nele ocupa o indivíduo, a ampliação
dos canais de informação, o direito à verdade, etc. É isto
que nos credencia a substituir
a noção de direitos humanos pela idéia de direitos
fundamentais e, sobretudo, a atualizar os princípios
norteadores das Declarações
e Convenções
existentes no mundo atual.
A história descortina os horizontes de revelação de
novos direitos, atendendo sempre às exigências impostas pela
consciência dos agentes sociais. Mas o que significa
transformar um direito subjetivo num princípio universal ? Por
que o problema referente à universalidade de tais direitos
torna-se crucial no nosso tempo ?
Inicialmente porque a garantia universal desses direitos
se afigura impossível. Em seguida porque, convém reiterar,
acreditamos que a questão do seu fundamento não está
completamente resolvida. E finalmente porque a liberdade e a
dignidade do homem constituem-se como um ideal a ser atingido; não
configuram um fato, mas um valor; não são fenômenos que
pertencem à esfera do ser, mas ao domínio do dever-ser; não são
uma posse, mas uma conquista da humanidade. Se os direitos
humanos traduzem um
ideal da razão humana, o desafio que se impõe ao homem
contemporâneo é de outra ordem : ele consiste na dificuldade de se encontrar as vias concretas
para a sua realização.
Acerca dos obstáculos que envolvem a proteção e a
efetivação dos direitos proclamados, Bobbio nos fornece a
imagem de uma estrada desconhecida “na
qual trafegam, na maioria dos casos, dois tipos de caminhantes,
os que enxergam com clareza, mas têm os pés presos e os que
poderiam ter os pés livres, mas não têm os olhos vendados”(Bobbio,
1982, p. 37). Eis o drama que se desenha sob o horizonte histórico
da nossa época : a conquista de tais direitos traz em si o
problema de como realizá-los. Além do mais, o fato de o senso
moral comum aceitar o conteúdo de tais direitos não significa
que seu exercício seja simples. Até porque, embora aspirem à
universalidade, tais direitos não são jamais absolutos. Aliás,
o fato de desejarmos que os mesmos alcancem uma amplitude
universal e de exigirmos um fundamento absoluto que lhes dê
sustentação não garante sua realização prática. Aqui
surgem novas dificuldades que se expressam assim : como fundar
de modo absoluto direitos regidos pela variabilidade dos rumos
da história ? Como não considerar vaga a expressão direitos
do homem ?
Todos
concordam que é necessário encontrar um meio capaz de
compatibilizar a pluralidade das manifestações políticas e
jurídicas dos indivíduos modernos e a identidade do homem.
Mas, quem é o homem de que trata os direitos humanos ? Como
falar em direitos humanos quando não se tem uma idéia clara do
que seja o homem ? Quem é ontologicamente esse homem que
definimos como ser humano ? Trata-se de um ideal destituído de
singularidade concreta ? Seria este homem um ser que transcende
as vicissitudes e abjeções próprias ao sujeito real ? Enfim,
como relacionar a objetividade dos postulados de tais direitos
com as particularidades próprias à subjetividade de cada indivíduo ?
O
homem dos direitos humanos é designado sob a categoria de
universalidade que supõe uma definição baseada num ponto de
vista moral imparcial, independente de toda determinação
particular. Trata-se de um homem situado fora do tempo e do espaço.
Este homem não tem face nem história. É uma entidade difusa
em cuja face pode aderir qualquer semblante, qualquer perfil.
Pode-se então afirmar que os direitos humanos estariam fundados
numa espécie de humanismo abstrato? Se isso é verdade, como
então coadunar essa idéia abstrata de humanidade do homem com
as formas de liberdade e os conteúdos do direito que lhe são
correspondentes ? Como, enfim, manter o direito incólume ao
surto imprevisível dos instintos de cada ser humano ?
O
homem real, como bem demonstrou Kant, é também portador de
inclinações. O caráter passional dos homens é, para ele, um
fator positivo no que se refere ao já afirmado desenvolvimento
da espécie humana, pois tais inclinações levam ao aperfeiçoamento
das relações sociais entre os indivíduos. A razão, que
define no plano prático as relações universais dos homens
entre si, determina, no mesmo nível, a possibilidade deste
desenvolvimento. A razão liberta o homem do impulso instintivo,
inserindo-o na sociedade.
Nessa direção, o direito natural passa a ser
reconhecido pela razão humana na forma de sistema de leis
racionais a priori.
Isso indica que a idéia de uma comunidade de indivíduos deve
se assentar no direito natural dos homens de exercer sua
liberdade e autonomia. Segundo Kant, a noção de que aqueles
que obedecem devem, também, reunidos, legislar, se encontra na
base de todos as formas de Estado.
Aristóteles,
aliás, no livro I da Política
descreve o homem como um “animal político” (zôon
politikon) dotado de logos,
de discurso e razão. Palavra e pensamento fundam a
possibilidade da existência plural dos homens em sociedade.
Entre os seres vivos, o homem enquanto animal político, se
destaca como o único apto a discernir sobre os valores, a
definir o justo e o injusto, a escolher entre o bem e o mal. Ele
não deseja apenas viver, mas bem viver. A política confere ao
homem uma disposição para viver em sociedade, como animal
social, mas quando separado da lei e da justiça ele pode
transformar-se num ser inumano. O homem preso às instituições
é o melhor de todos, mas quando ele delas se afasta torna-se o
pior dos demônios. Sendo assim, em que se funda a obrigação
de respeitarmos os direitos humanos ?
No
fato de que tais direitos constituem-se como um atributo próprio
a todos os seres racionais, poderia ser a resposta. Ou ainda, na
exigência que o imperativo da lei moral impõe à nossa
vontade. Assim, viver sob a égide dos direitos humanos implica
em cumprir as obrigações que a liberdade determina a todo ser
responsável. Trata-se aqui primeiramente de uma obrigação
imposta à moralidade do sujeito pela razão. Todavia, sabemos
que não basta praticar determinado ato segundo a norma ou regra
que o disciplina. É preciso também examinar as condições
concretas nas quais ele se realiza. Afinal, para que possamos
imputar a alguém uma responsabilidade moral por determinado
ato, é necessário que o sujeito não ignore as circunstâncias
nem, tampouco, as conseqüências de sua ação, e que a causa
de seus atos esteja nele próprio, ou seja, que sua conduta seja
livre. Conhecimento da lei e liberdade prática são
prerrogativas que nos remetem ao princípio da
responsabilidade. Assim, para que o indivíduo possa escapar das
possíveis sanções, ele precisará justificar o
desconhecimento de tais normais ou então o fato de que não é
obrigado a seguí-las. Somente assim a ignorância o isentaria
de responsabilidade. A ignorância, porém, não exime de
responsabilidade aquele que é responsável por sua própria
ignorância.
O
problema acerca da constituição de instrumentos eficazes que
possam garantir universalmente o respeito e o cumprimento dos
direitos humanos permanece irresolúvel. Em muitos casos,
podemos apelar à ordem moral vigente como forma de garantir o
seu respeito. Mas que força pode assumir tal apelo num mundo
marcado pelo egoísmo e pela intolerância ? Vê-se que o
impasse se mantém, pois não há como instituir um direito
legal ou moral sobre algo, sem que se pense em constituir
paralelamente uma instância legal ou moral de cobrança. É
mais fácil imaginar a existência de tal instância no âmbito
de Direito do que no âmbito da moral. Parece evidente que, se
temos um direito, a ninguém é permitido violá-lo. Neste caso,
todos seriam o destinatário da exigência de cobrança que se
vincula ao direito. Porém, é aceitável que todos também
possam exercer o papel de instância
coercitiva ou punitiva ? Se isto parece impossível, como
então conceber um direito moral sem uma instância de cobrança
? Que valor tem um direito que está no papel, mas que não se
pode se exigir sua observância ? Há, enfim, algo de
incongruente nessa noção ?
Em
sua obra A transparência
do mal, Jean Baudrillard afirma que o discurso dos direitos
humanos se baseia
numa crença iluminista na atração natural do bem, numa
idealidade das relações humanas. Essa busca exacerbada do bem
implica no desejo de minimalização do mal, numa espécie de
profilaxia da violência, de extinção da força indomável que
domina a natureza humana. Tentar fugir ao espectro do mal tão-somente
conduz tais direitos para fora do universo humano, diz ele. Tudo
se passa como se devêssemos aprender a conviver com a desrazão
que reside em cada homem. Esta idéia indica que resta sempre
algo de insondável na nossa maneira humana de ser. Há coisas
que somente a razão pode procurar, mas ela jamais as encontrará;
há coisas que só o instinto poderia encontrar, mas ele é, às
vezes, cego para procurá-las. Se, todavia, somos
irremediavelmente propensos a negar a força da racionalidade e,
por conseguinte, as regras ordenadoras da nossa conduta (a lei
do dever, o respeito aos direitos humanos), como acreditar no
progresso moral da humanidade ? Como fugir àquilo que Kant
designa de insociável sociabilidade ?
Para
Kant, o antagonismo da espécie se refere à sua insociável
sociabilidade já que o desejo de se associar convive, ao mesmo
tempo, como a relutância em realizá-lo. O instinto de
sociabilidade conduz os indivíduos a uma vida associativa.
Contudo, interesses egoístas e inclinações o levam a negar as
normas regulativas da vida em sociedade. Todavia, esta tendência
ambígua não é algo em si mesmo deletério, isto porque este
movimento desperta a capacidade criativa do indivíduo,
resgatando-o da indolência e da letargia. A insociabilidade
tende a fomentar o desenvolvimento da espécie ao despertar a
avidez dos homens incentivando-os à concorrência, à luta pela
sobrevivência. Assim, ou os homens optam racionalmente por um
fim histórico ou a natureza conduzi-los-á forçosamente,
mediante guerras, conflitos e outras desgraças, à sua consecução.
Mesmo
quando tencionamos adquirir vantagens em nosso proveito, somos
levados, diz Kant, a
seguir, como linha de orientação, as indicações da natureza.
E mesmo agindo em favor de nós mesmos, conseguimos realizar um
fim mais amplo e elevado. Desse modo, aquilo que se afigura
nebuloso e disperso nos indivíduos pode representar no conjunto
da espécie um desenvolvimento contínuo e progressivo. Somente
na espécie é que se pode vislumbrar o sentido das disposições
naturais do homem, isto porque, ao contrário dos outros
animais, os homens possuem a capacidade de transmitir às
futuras gerações seus feitos e conquistas. Assim, enquanto as
tendências anti-sociais conduzem os homens à vida privada e
passiva, as disposições racionais os levam a se libertar das
limitações impostas pelas inclinações passionais.
Kant não confunde a história da humanidade com a história
de homens singulares. Assim, já que o indivíduo racional é
mortal, confiou-se à espécie humana a realização do seu
destino racional. A filosofia da história de Kant demonstra a
existência de evidências
que podem atestar o progresso moral da humanidade.
Kant
considerava que a maneira entusiasmada com que o indivíduo
concebia um fato histórico relevante (a Revolução Francesa,
por exemplo) refletia as motivações da espécie humana para o
melhor. O tropismo libertário seria concebido como uma destinação
natural do homem. Ora, a modernidade nos legou a idéia de
progresso, mas também a realidade de certos males. Suas
fronteiras delimitam, por um lado, a idéia de liberdade advinda
da Revolução Francesa e, por outro, o terror que nela vem
expresso sob forma de guilhotina e intolerância.
De
fato, a Revolução Francesa representa o signo histórico que
revela a disposição moral da humanidade, porém não podemos
dissociá-la desse crime que é o regicídio. Eis o exemplo do
enigma insondável
que define os rumos de um poder originário que pode se conduzir
para bem ou para o mal. O terror pode ser considerado como um
dos marcos históricos da radicalidade do mal. Contudo, a
assepsia do mal não mata o bacilo da maldade, apenas antecipa
outros tipos de desastre. Além do que, como afirma
Bernard-Henri Lévy, “a
vontade de pureza, quando torna-se obsessão, pode conduzir ao
integrismo” (Bernard-Henri Lévy, 1994, p.97). Nosso mundo
sonha em acabar com a contradição, a negatividade, a morte, o
mal. Todavia, somos muitas vezes incapazes de
distinguir uma guerra justa de uma paz injusta.
Para
Baudrillard , “o direito
à vida, salienta, emociona todas as almas piedosas, até o
momento em que chega o direito à morte, ponto no qual se
manifesta o absurdo de tudo isso. Porque morrer –tanto quanto
viver – é um
destino, uma fatalidade (feliz ou infeliz), jamais um direito”
(Baudrillard, 1990, p.94), diz ele. Trata-se, pois, de um
acidente natural que pertence à ordem do ser e não do dever-ser.
Eis todo o absurdo de se associar o direito a fenômenos insólitos,
imponderáveis, imprevisíveis. Para muitos seria bizarro se
depois de Chernobyl e do naufrágio do submarino atômico, a Rússia
requisitasse o direito à catástrofe, direito ao acidente, ao
crime, ao erro, o direito ao pior
e não apenas ao melhor. Bizarro talvez, mas não ilógico
do ponto de vista da axiologia.
Outros
exemplos podem ser oferecidos : o caráter inquestionável do
direito ao trabalho deve impedir que alguns exijam o direito à
preguiça, ao ócio, ou mesmo, ao desemprego ? Se o direito à
vida é inalienável porque também não o é o direito à morte
? Como podemos recriminar alguém que deseja se despedir de uma
vida sofrida, desgraçada, mórbida ? Há algo de absurdo nessas
considerações ? O
absurdo, para Beaudrillard, reside na absolutização de certos
direitos. Eis um exemplo airoso dessa situação : um condenado
à morte nos Estados Unidos
reclama o direito de ser executado imediatamente contra
todas as ligas de direitos humanos que se esforçam para
obter-lhe o perdão. Por isso, à célebre frase de Fichte, o
verdadeiro direito do homem é a possibilidade de adquirir
direito, poderíamos acrescentar : e de recusar tais direitos.
Podemos
reivindicar o direito de ser isso ou aquilo. Mas o que significa
ser isso ou aquilo se tivermos tais direitos ? A postulação do
direito indica uma falta, uma carência, uma lacuna. Ademais, se
uma coisa é evidente, o direito torna-se supérfluo. Quando a
reivindicação de direito começa a recair sobre algo que
sempre se mostrou necessário e inelutável, então devemos começar
a nos preocupar. Assim, quando passarmos a exigir o direito à
água, ao ar, ao espaço, é sinal de que tais elementos estão
se extinguido progressivamente.
O direito de resposta, antes de expressar uma conquista
da democracia, indica a ausência de diálogo. Assim também
acontece em todas as situações nas quais o direito se
transforma em dogma. Se tudo pode remontar ao direito, nada mais
é direito.
Os
direitos do indivíduo perdem sentido quando ele deixa de ser um
ente alienado, privado do próprio ser, estranho a si mesmo. O
sistema de direitos humanos torna-se complemente inadequado e
ilusório numa conjuntura em
que o indivíduo torna-se um promotor da própria existência.
Mas, sabemos, estamos longe de viver essa realidade, razão pela
qual tais direitos existem teoricamente para promover a justiça
e garantir
que os mais fracos não sejam massacrados pelos mais
fortes. Diga-me qual e a sua fraqueza ou indigência que eu
direi qual é o seu direito. Eis a máxima do nosso tempo.
Todos
estamos prontos a aceitar que as vítimas, enquanto vítimas, têm
direitos. Mas quem a rigor é vítima e do quê ? Esta é a
pergunta que devemos primeiramente responder. Além disso, já
vimos, a vítima pode abdicar do direito de usufruir de um
direito. Como não
reconhecer aqui um impasse representado pela existência de
direitos antinômicos ou mesmo excludentes ? Trata-se de um ato
de justiça exercer uma discriminação positiva (ação
afirmativa) em favor de membros de certos grupos oprimidos ou de
minorias sub-representadas socialmente ? Do ponto de vista dos
direitos humanos é aceitável a interferência das grandes nações
para evitar genocídios ou conflitos étnicos em países
convulsionados ? Ora, parece
polêmico o direito que se confere a um Estado de se
imiscuir nos assuntos alheios. O direito de ingerência, por
exemplo, permite que um país (ou um grupo de países)
representante de um organismo internacional
ou de uma comunidade de nações invada um Estado
soberano, se esta soberania serve de pretexto para a prática de
crimes (genocídio, limpeza étnica, etc.) contra a população
indefesa. É verdade que tal possibilidade representa, senão um
progresso, pelo menos uma conquista do poder coercitivo da razão
que obriga os tiranos e exterminadores de minorias a refletir
bastante antes de empreenderem suas armas mortíferas. Mas, a
ingerência é vista com desconfiança porque nela se confundem
motivações geopolíticas, interesses estratégicos e atitudes
humanitárias. Atitudes humanitárias que, aliás, não deixam
de suscitar questionamentos e condenações.
O
problema é que, como acentua Bernard-Henri Lévy, o humanitário transformou-se numa grande medicina sem fronteiras cuja
função não é mais coibir os assassinos, mas apenas “socorrer as vítimas ou fazê-las
morrer de barriga cheia” (Bernard-Henri Lévy, 1994, p.
144) O humanitário é um vitalismo. Em lugar de conferir uma
imagem nobre do homem, de pensá-lo como um ser dotado de
pensamento e linguagem, ele o reduz a um princípio de vida que
tem algo em comum com os animais. É como animais que os tiranos
também tratam suas vítimas. A ajuda humanitária trata os
seres que padecem da tirania como corpos que merecem atenção
depois de terem sido reduzidos a coisas pelos seus algozes. Tal
postura pode assim ser resumida : massacrem, em seguida nós
faremos o resto! Henri Dunant (fundador da cruz vermelha) falava
em humanizar os campos de batalha, sem nada mencionar sobre a
origem do horror que emanava da desumanidade dos tiranos.
Há,
pois, algo de infame na ideologia humanitária. Ela olha para as
grandes tragédias humanas, mas não consegue ver que é preciso
salvar os homens. O espírito humanitário funda-se numa espécie
de política do sentimento, num tipo peculiar de compaixão,
cujo motor é a piedade e a comoção diante do terror. Eis a
imoralidade reinante num mundo
que não sabe mais distinguir entre os torturadores e suas vítimas.
A aberração da nossa época pode ser representada pela figura
terna de um soldado da O.N.U,
um combatente desarmado, uma sentinela tornada alvo. Há
algo de patético no espetáculo dessa força impotente, que,
resignadamente, ajuda a gerenciar não os conflitos, mas as
guerras de extermínio.
A
forma última da perversidade que marca o nosso tempo é
representada pela frase infame : “tudo é possível”. Isto
porque constitui-se ela na chave de acesso ao reino do
“tudo é aceitável”. Já não há limite que separe
o provável do insano. São poucos as coisas que tendem a nós
provocar aversão. Tem se tornado difícil definir o inaceitável.
Espectadores inertes diante do mal que se lhe recai e
indiferentes às dores do outro, assim somos nós em face do
teatro de horrores do nosso século. Podemos recusar o
enfrentamento, mas não podemos esquecer : certos crimes são
inexplicáveis. Hannah Arendt fala das duas experiências
radicais do nosso século : o totalitarismo, que traz à luz a
antinomia da política e da liberdade; e as possibilidades de
aniquilação orquestradas pelos Estados modernos, que ela
designa de antinomia entre política e conservação da vida.
Pois bem, o aniquilamento do homem pelo Estado continua sendo o
símbolo maior do caráter bestial da violência humana neste
fim milênio. A guerra da Bósnia, o massacre dos chechenos, a
perseguição dos curdos, o extermínio dos tutsis em Ruanda e
no Burundi, atestam o que já previam os gregos : o trágico
dominou a história e a transformou não em destino, mas em
terror. Enquanto isso, pouco a pouco temos nos acostumados com a
mentira, a dissimulação e a provocação dos que nos governam
e com a prepotência dos que mandam nos que nos governam.
Fala-se em universalização dos valores ocidentais, em
globalização e transculturalismo, num mundo cada vez mais
marcado pelo tribalismo e pela xenofobia.
Por
isso, não podemos postular a universalização dos direitos
humanos sem perguntar se o evolucionismo cosmopolita é possível.
Há uma força irreconciliável que atua em todas as culturas,
fazendo com uma pretensa lei universal jamais seja inelutável.
Além disso, seria justo obrigar os indivíduos a respeitá-los
como valores universais ? Se os direitos humanos repousam sobre
um princípio de totalidade (a idéia de dignidade), podemos
livrá-lo da tentação totalitária ? Se há algo de totalitário
na idéia de totalidade, como dizia Hannah Arendt, os direitos
humanos estão livres das motivações ideológicas ou etnocêntricas
das nações que os proclamaram ? A postulação de uma só
ordem não seria o sinal mais evidente de que vivemos uma época
de grande desordem ? A tranqüilidade ou a indiferença com que
aceitamos o inaceitável reflete a indolência que domina nosso
viver. A sociedade contemporânea conhece bem as marcas do
mutismo que
conduzem muitos a abdicar de direitos em troca de benefícios
pecuniários. Noutros termos, nunca tantos venderam por tão pouco sua alma ao diabo. O homo
economicus é o principal personagem desse cena em que os
direitos humanos atuam como coadjuvantes mudos do espetáculo.
Soma-se
a isso, a propagação da surdez, a cegueira endêmica, a
desertificação das almas. A barbárie econômica nos arrasta,
com todos os nossos direitos, para fora do campo da vida. Nosso
mundo bem sabe que os valores financeiros não são ativos
reais. São cifras, símbolos inverificáveis, números que
migram de uma praça financeira a outra, como entidades
espectrais que assombram governos, países, nações. Enquanto
isso, o poder político opera dentro de paisagens econômicas.
Os agentes financeiros decidem, ordenam, pressionam, controlam
os que nos governam. O capital financeiro, o “pilar” desse
novo modelo de civilização, se impõe como uma força indomável,
onipotente, devastadora, que desconhece fronteiras e limites. Um
ameaça oculta, sinistra. Eis o retrato de uma experiência
humilhante : homens vencidos, fracassados, considerados inúteis
e supérfluos. Eles são julgados incompatíveis com a sociedade
que os exclui. Eles são acusados por serem suas vítimas. O
paradoxo é a marca do absurdo que caracteriza os nossos tempos.
Se
antes os indivíduos lutavam contra a exploração, hoje lutam
contra a falta dela. Alguns lutam para reencontrar a sua
desumana condição : desejam ser explorados. Muito preferem
sentir as labaredas do inferno do que nada sentir. Dante não
imaginaria inferno pior do que o daqueles que clamam
desesperadamente pelo inferno; aqueles para quem a maior danação
seria ser expulso dele.
O
desastre está no fato de que tudo parece natural, inevitável,
sem alternativa, incontornável e o que é pior : conseguem nos
convencer de que tudo isso é necessário. A indiferença acaba
permitindo nossa adesão passiva à realidade que nos é
imposta. Não estamos diante de um fato consumado, estamos
trancados nele. Como demonstra Saramago em seu romance Ensaio
sobre a cegueira, muitos estão acordados, mas fazem de
conta que estão dormindo.
A
apatia se revela como incapacidade de defender nossos próprios
valores, a fraqueza de uma vontade traduzida em conduta de
resignação e passividade. Enquanto admitimos que somos filhos
de uma época de desencanto, o mundo amadurece para toda forma
de crueldade. O encontro da miséria da alma com a amargura de
viver dá origem a
pior forma de violência : a violência da calma.
É
certo que o homem jamais domesticará por completo o lobo que
repousa nele próprio. Sabemos também o quando custa a uma
sociedade que deseja radicalmente extirpar sua parte maldita.
Por isso, o ideal de uma sociedade livre, justa, livre e
fraterna, antes de indicar nosso triunfo, talvez seja uma
maneira de atestar a nossa ruína. Como falar em liberdade e em
direitos num mundo assolado pelo espectro do egoísmo e da moral
do interesse ? Por que temos tendência a defender com mais volúpia
nossos direitos do que aqueles que se referem ao outro ? Quem é
esse outro, às vezes tão próximo, às vezes tão estranho a nós
mesmos ? A prática cruel e insana do racismo mostra o quanto os
homens são incipientes nessa arte de aceitar e respeitar o
outro.
O
racismo expressa uma forma alucinada de negação da diferença.
O racismo começa a existir quando o outro torna-se diferente.
Hoje tudo se fala em termos de alteridade, ou seja, da existência
factual do outro, mas a alteridade não é a diferença. A
diferença mata a alteridade. O outro começa a ser rechaçado
no momento em que se torna diferente. A crítica política e
ideológica do racismo é uma crítica formal, já que só ataca
a obsessão racista, sem atacar o seu núcleo principal : a própria
idéia de diferença. Com isso, deixa-se de demonstrar que a idéia
de diferença, da qual se nutre o racismo, é uma ilusão. Tal
crítica acaba tornando-se uma ilusão crítica, já que a nada
se refere. Eis por que o racismo tem sobrevivido à critica
racional que se lança contra ele. Tão grave quanto o
fragililidade da crítica antiracista e a ingenuidade dos que
suspeitam que a cultura racista pode sucumbir ao tempero da
miscigenação. O Brasil é um caso emblemático desse
auto-engano.
A
questão racial (ou étnica) permanece tão mal resolvida no
Brasil quanto em outros países. O
racismo ideológico, todavia, tem
sido aparentemente menos cultuado no nosso país, em
virtude da confusão étnica e da multiplicação da mestiçagem.
A discriminação racial parece diluída no cruzamento das
linhas de diversas etnias, como se fossem
as linhas de nossa mão. Essa forma de desqualificação
do racismo por dispersão do objeto é mais sutil e eficaz do
que a luta ideológica. Todavia, ela não é suficiente para
afugentar a sombra da bestialidade e da insensatez que o racismo
representa.
A
prática voluntária da violação dos direitos humanos, seja
ela de caráter racista, sexista, regionalista,
nos coloca em face da fraqueza da vontade ou da escolha
do pior. Esse problema existe desde o intelectualismo moral socrático,
que Aristóteles apresenta no livro VII de sua Ética
a Nicômaco, segundo o qual ninguém age mal
deliberadamente. Ora, temos bastante dificuldade, do ponto de
vista moral, para admitir que o mal possa ser praticado contra o
semelhante por aqueles que sabem o que é o bem. No entanto,
sabemos que certas pessoas têm o prazer em fazer o mal por
escolha própria e em fugir do bem por decisão autônoma. Então
convém recolocar a questão : como acreditar no progresso moral
da humanidade se somos incapazes de domesticar as nossa inclinações
malévolas, de controlar os nossos ímpetos destrutivos ?
Contudo, o mal não repousa na irracionalidade das paixões. Ele
é antes o resultado das nossa decisões e escolhas racionais,
ou seja, trata-se de um produto da nossa liberdade e não da
vontade de uma gênio diabólico que residiria em todos nós.
Libertar-se
do mal implica também em se libertar do mal da liberdade. Mas
isto corresponderia também a se libertar da própria liberdade.
O que desejamos
afirmar com isso : libertação ilimitada ou degradação ilimitada são
as duas faces de uma síntese perversa. A tendência para o mal
não deixa de ser uma possibilidade da liberdade humana.
Vimos, com Aristóteles, que
a constituição do homem como animal político não
elimina o risco de desmesura, a ameaça da tragédia. Por isso,
recolocar a questão : se a disposição para o bem não é
soberana para suprimir a propensão para o mal, como podemos
acreditar no progresso moral da humanidade ? Como transformar
uma curva (a liberdade) numa linha reta (os direitos humanos)
sem desfigurar sua natureza ou geometria irregular ?
REFERÊNCIAS
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totalitaire. Les origines do totalitarisme, Paris : Éditions
du Seuil, Paris, 1972.
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teoria do Estado (1813), São Paulo : Abril Cultural, 1980.
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da Metafísica dos Costumes (1785), Lisboa : Edições 70,
1980.
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dangereuse, Paris : Grasset, 1994.
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José, Ensaio sobre a cegueira, São Paulo : Companhia das
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forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, São Paulo
: Abril Cultural, 1983.
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Jean-Jacques, Do contrato
Social (1757), São Paulo : Abril Cultural, 1985.
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