Da presidência do Centro Santo Dias à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos da OEA
Nos dias 1º a 5º de
junho (de 1997) a Organização dos Estado Americanos – OEA -, que
reúne trinta e quatro países, realizou em Lima,
no Peru, sua 27ª Assembléia Geral. A delegação brasileira foi
chefiada pelo ex-presidente Itamar Franco, na época embaixador do
Brasil na entidade.
Foi uma assembléia
marcante: na sessão de abertura, o presidente do Peru, Alberto
Fujimori, investiu contra a liberdade de imprensa, a quem acusou de
“corrupção”. Recebeu uma discreta vaia, seguida de enérgica
repulsa de segmentos da sociedade civil peruana.
Outro ponto polêmico
do encontro foi o bloqueio contra Cuba. Depois de muita discussão, não
foi aprovada a repulsa explícita ao bloqueio, na época intensificado
com a edição da lei que prevê penalizações aos países que
mantiverem relações comerciais com aquele país.
Durante o evento,
aconteceram duas importantes eleições, para o preenchimento de vagas
na Corte Interamericana de Direitos Humanos e na Comissão
Interamericana de Direitos Humanos.
O primeiro pleito
transcreveu sem maiores percalços. Entretanto, para o preenchimento de
três vagas na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, houve uma
disputa que preocupou as organizações não governamentais de defesa
dos direitos humanos, entre elas a Anistia Internacional e a America’s
Watch: um dos candidatos - Vilagran Kramer -, apresentado pela
República Dominicana, ligara-se à ditadura sangrenta que atormentou
aquele país na década de oitenta
e, segundo editorial do New York Times, não poderia ocupar espaço na
Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
A
luta contra essa candidatura tomou conta do plenário, sendo de
ressaltar as posições adotadas pelas delegações dos Estados Unidos e
do Canadá que aderiram às gestões que a delegação brasileira fazia
junto aos delegados dos países membros.
No
final, foram eleitos os candidatos apresentados pelo Chile, pelos
países do Caribe e pelo Brasil, que passaram a integrar a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos desde 1º de janeiro de 1998, com
mandato de quatro anos.
A
candidatura Hélio Bicudo, apresentada pelo governo brasileiro, teve
origem em recomendação feita por dom Paulo Evaristo Arns, cardeal
arcebispo de São Paulo, ao presidente da República Fernando Henrique
Cardoso.
4.1.
O Brasil, diante da OEA.
Itamar
Franco2
Senhor
presidente,
Senhor
secretário-geral,
Senhores
chefes de delegação,
Senhores
delegados,
Senhoras e senhores:
2
Discurso proferido pelo então embaixador, o ex-presidente Itamar
Franco, na ocasião chefe da delegação do Brasil na 27ª Assembléia
da Organização dos Estados Americanos, realizada em Lima, Peru, de 1º
a 5 de junho de 1997.
condução firme e profissional das
deliberações ao longo dos próximos dias de trabalho deste mais alto
foro interamericano.
Vemos
com especial satisfação a presença de vossa excelência hoje entre
nós, refeito dos sobressaltos e vicissitudes que recentemente enfrentou
com dignidade e força de espírito.
O
Brasil, senhor presidente, condena todas as formas de violência, entre
elas o terrorismo, fenômeno delituoso que se traduz em uma deliberada
violação dos direitos individuais e uma agressão à própria
democracia, tal como consagrado na Declaração de Princípios da
Cúpula das Américas.
Desejo
ainda manifestar, por intermédio de vossa excelência, a expressão
mais sincera de nossos agradecimentos ao povo peruano pela fidalguia e
hospitalidade com que nos acolhe nessa bela cidade de Lima.
Nós,
como cidadãos das Américas, sabemos das tradições históricas do
povo peruano de defesa da liberdade e da democracia no continente, seu
legado de lutas e conquistas, vínculos que nos unem em torno de ideais
comuns e, em particular, ao Brasil.
Permita-me
ainda, senhor presidente, registrar nosso reconhecimento pelo papel
desempenhado pela OEA e pelo seu secretário-geral, que sempre contou,
desde o processo de sua eleição, com o decidido apoio brasileiro, em
seus esforços pela causa hemisférica. A Organização vê hoje sua
agenda adensada e fortalecida, e marcada pelos avanços que se processam
em ritmo gradual e seguro na direção da integração regional, e pelo
dinamismo de um novo conceito de cooperação solidária entre nossos
países. Estamos seguros de que o processo iniciado sob a orientação
do doutor César Gaviria conduzirá a Organização a um renovado
multilateralismo, expressão de nossos legítimos anseios.
A
OEA no cenário mundial e regional
Os
elevados propósitos que inspiraram a criação desta Organização
permanecem atuais. No século passado, unimo-nos em torno dos ideais de
liberdade, de independência. De conquista da soberania política. O
progresso dos nossos povos exigia a colaboração recíproca contra o
inimigo comum. A preservação da autonomia política recém-alcançada
era o valor maior a defender. Nossa união decorre, fundamentalmente, da
tradição humanista e libertária que, em um dado momento histórico,
consolidou-se em nossos países.
A
erradicação da pobreza, da discriminação sob todas as formas e da
injustiça são imperativos éticos que se impõem ao homem
contemporâneo. As forças e os interesses que a isto se opõem
transcendem as fronteiras de qualquer país, pobre ou rico, desenvolvido
ou em desenvolvimento.
Vivemos
um novo tempo em que o multilateralismo assume crescente importância. O
confronto ideológico entre Estados cede passo a um novo tipo de
antagonismo que opõe, cada vez mais, interesses conflitantes
supranacionais e globalizados. É nosso dever, na qualidade de
representantes de povos que aspiram edificar um mundo melhor e mais
eqüitativo, trabalhar pela causa do bem comum, pela promoção social
dos homens e das mulheres, pela criação de maiores oportunidades para
as gerações vindouras.
A
Organização dos Estados Americanos é, essencialmente, um foro
político onde as grandes questões de interesse comum devem ser
debatidas e soluções devem ser encontradas com base no espírito de
fraternidade, solidariedade e justiça que nos anima. O nosso maior
compromisso maior é com os oprimidos e excluídos dos benefícios da
civilização. A dívida a ser resgatada é a social. O inimigo a ser
combatido são os interesses setoriais que egoisticamente procuram
sobrepor-se ao interesse comum. Os valores democracia, paz, liberdade e
progresso precisam identificar-se com os anseios e desejos da maioria e
não permanecerem como meras conquistas abstratas do pensamento humano.
Tenho
fé no trabalho e no futuro da Organização dos Estados Americanos
porque o sentimento e os propósitos que nos movem estão identificados
com a aspiração geral dos nossos povos.
Senhor presidente,
Este 27º Período de
Sessões da Assembléia Geral da OEA nos encontra em um patamar de
renovação do sistema interamericano. Vivemos hoje em uma América onde
se consolida a democracia. Por outro lado, assistimos ao amadurecimento
das iniciativas de integração econômica, bem como dos esforços de
modernização de nossas instituições estatais.
O Brasil de hoje, uma
sociedade em pleno exercício da democracia representativa, tem-se
empenhado na superação dos desequilíbrios macroeconômicos e das
disparidades sociais. No âmbito externo, propugna pela criação de
condições para uma democratização das relações internacionais,
onde o pluralismo e a diversidade construtiva de opiniões devem
propiciar um ambiente de paz e de progresso entre as nações.
Ao longo dos próximos
dias estaremos discutindo temas relevantes e de interesse fundamental
para nossos países, mas que extrapolam o âmbito da agenda regional,
pois se integram e se desdobram no plano mundial. A defesa da
democracia, a proteção aos direitos humanos, a promoção do
desenvolvimento, a conservação do meio ambiente, a luta contra as
drogas são desafios comuns da humanidade neste final de século. A OEA,
com seu espírito de constante renovação, sua vocação democrática
firmada no respeito ao princípio da igualdade jurídico e na
independência de seus membros, se encontra hoje preparada para
enfrentá-los.
A obra em que estamos
empenhados de “consolidação da democracia” constitui um dos
fundamentos da OEA, essencial para o futuro dos nossos povos. Permito-me
aqui citar as palavras do presidente Fernando Henrique Cardoso, quando
visitou a sede da OEA, em abril de 1995: “O compromisso com a
preservação e o fortalecimento da democracia é o patrimônio singular
da nossa Organização regional”.
Mas, importante também
é a observância dos princípios da autodeterminação, da não
intervenção e da igualdade entre os Estados no plano internacional.
A preservação da paz,
outro princípio em que se assenta a organização, só será possível
se logramos um desenvolvimento estável que assegure a prosperidade para
todos.
Cooperação
Saudamos com
satisfação e renovadas esperanças a aprovação na Cidade do México,
em abril passado, dos documentos fundamentais do Conselho Interamericano
de Desenvolvimento Integral (CIDI), como resultado dos protocolos de
Manágua, de reforma da Carta da OEA. A instituição do CIDI atendeu à
necessidade de ampliar nosso campo de ação
para a conquista dos ideais comuns da região, ressaltando o
imperativo ético de desenvolver a democracia e, ao mesmo tempo,
democratizar o desenvolvimento, de forma solidária e compartilhada.
O Brasil reafirma a
prioridade que confere à cooperação horizontal como forma de apoio ao
desenvolvimento, e buscará os meios necessários para o pleno
funcionamento do Fundo Brasileiro de Cooperação, instituído com o
objetivo de financiar atividades de cooperação com os países de menor
desenvolvimento membros de nossa organização, em especial os da
América Central e do Caribe.
Educação
Desenvolvimento e
educação são conceitos que não podem estar dissociados. Os aspectos
legados à educação constituem instrumentos imprescindíveis ao pleno
florescimento de nossas gerações e à edificação dos valores de
justiça social, e elementos de identificação no processo de
integração regional e de afirmação da consciência democrática.
A OEA tem diante de si
uma variada gama de possibilidades de atuação nessa área, com vistas
à melhoria da qualidade de vida e do bem-estar de nossas populações.
Meio ambiente
O tema do meio ambiente
continua sendo parte essencial de nossas preocupações. A conservação
do meio ambiente mediante o desenvolvimento sustentável terá que ter
presente que a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
e a própria agenda 21 nasceram da preocupação com o homem e seu
destino da terra.
Vimos com satisfação
os progressos alcançados no âmbito regional com os princípios e
compromissos contidos na Declaração e no Plano de Ação que foram
firmados por ocasião da Cúpula das Américas sobre Desenvolvimento
Sustentável realizada em Santa Cruz de la Sierra. Do mesmo modo,
reconhecemos a importância dos trabalhos da recém-instalada Comissão
Interamericana de Desenvolvimento Sustentável, e apoiamos os
propósitos do Programa Interamericano de Desenvolvimento Sustentável.
Direitos Humanos
Na questão dos
direitos humanos, observa-se um significativo aumento da consciência da
necessidade de transferência no tratamento dos problemas enfrentados
pelo país nessa matéria. O Brasil tem atuado em sintonia com as
exigências da sua sociedade e no entendimento de que a preocupação
internacional com a promoção e a proteção dos direitos humanos é
plenamente legítima e deve envolver governo e sociedade na tentativa de
superação dos obstáculos ao pleno exercício daqueles direitos.
No meu período na
Presidência da República, sempre coloquei o respeito à dignidade
humana no centro das prioridades do governo. O diálogo franco e
construtivo com organizações que se dedicam à observância dos
direitos humanos tronou-se no Brasil prática corrente, num clima de
transparência e cooperação.
Nossa legislação
interna tem sido aperfeiçoada no sentido de buscar identificar os
principais problemas e propor soluções adequadas, com vistas a ampliar
o respeito dos direitos e garantias fundamentais, incorporando, também,
os segmentos mais vulneráveis da sociedade.
O Brasil continuará
apoiando o processo de reflexão sobre o sistema interamericano de
direitos humanos e entende que a assinatura e ratificação da
Convenção Americana de Direitos Humanos pelos países da região que
ainda não o fizeram reveste-se de importância fundamental para
assegurar a necessária abrangência e aplicabilidade ao instrumento
básico de proteção dos direitos humanos no hemisfério.
Senhor Presidente.
Temos aqui hoje entre
nós um dos paladinos dos direitos humanos no Brasil. Refiro-me ao
ilustre deputado Hélio Bicudo. Como sabem os senhores, o deputado
Bicudo é candidato a uma vagas na Comissão Interamericana de Direitos
Humanos que serão preenchidas ao final de nossos trabalhos. A extensa
folha de serviços prestados à causa dos direitos humanos e longa
trajetória de lutas pela sua promoção e proteção conferem ao
deputado Hélio Bicudo todos os títulos para integrar esse egrégio
colegiado do Hemisfério.
Drogas
O problema das drogas,
por sua própria complexidade e natureza global, exige tratamento
integrado e equilibrado, baseado na cooperação internacional e com
respeito à soberania nacional. As dimensões e implicações políticas
do problema das drogas reclamam ação urgente de nossos países e
intensificação de iniciativas concentradas no encaminhamento de
soluções globais, que atendam igualmente os aspectos de redução do
consumo e do controle da produção.
O Brasil tem
desenvolvido esforços, nos planos interno e externo, no tratamento da
questão do tráfico ilícito de drogas e crimes conexos.
Temos participado
ativamente dos trabalhos da Comissão Interamericana para o Controle do
Abuso de Drogas (CICAD), que privilegiamos como o foro regional
competente para formulação de programas de cooperação em harmonia
com as políticas nacionais sobre a matéria.
Senhor
presidente,
Acreditamos
que iniciativas conjugadas e concertadas entre nossas autoridades, como
aquelas previstas no documento “Estratégia Antidrogas no
Hemisfério”, constituem o único caminho capaz de combater de modo
eficaz este mal que aflige nossos povos e nossas instituições. Ações
isoladas e unilaterais não são condizentes com as boas práticas que
historicamente tem presidido as relações entre nossos países.
Integração
e livre comércio
A
integração com todos os países do Hemisfério sempre foi objeto de
mais alta prioridade ao longo de minha vida pública, por estar
convencido ser esta uma pré-condição ao pleno desenvolvimento das
nossas potencialidades.
No
exercício da Presidência da República busquei realçar o perfil das
Américas como área livre de tensões, voltada para a cooperação e o
progresso, e decidida a integrar cada vez mais suas economias, suas
culturas e seus destinos. Nesse período, o Brasil promoveu importantes
iniciativas no sentido da integração regional.
A
expressão mais viva desse esforço se revela nos progressos hoje
observados no Mercado Comum do Sul (Mercosul), decerto também o produto
mais acabado da consolidação das relações de confiança entre os
Governos democráticos do Brasil e de seus parceiros do Cone Sul.
Mais
adiante, em 1993, lançamos a idéia de uma Área de Livre Comércio
Sul-Americana (ALCSA). Esta iniciativa, adotada como proposta comum do
Mercosul, contribuiu certamente para estimular a aproximação das
experiências integracionistas na América do Sul com os esquemas de
livre comércio e integração de outras áreas do Hemisfério.
Nosso
compromisso com o processo que se iniciou na Cúpula das Américas de
Miami continua firme. Temos participado ativamente das reuniões de
seguimento instituídas naquela reunião. Temos mostrado nossa
determinação de contribuir positiva e construtivamente para tornar
realidade o sonho de um Hemisfério livre de barreiras comerciais ou
quaisquer outras limitações do acesso ao mercados de bens e serviços
nos países da região. A conformação da Área de Livre Comércio nas
Américas (Alca) é um objetivo cada vez mais próximo de atingir,
porquanto a consolidação democrática, e os processos sustentados de
desenvolvimento e estabilização monetária alcançados na região
criaram as condições propícias necessárias.
Há
pouco dias, na cidade brasileira de Belo Horizonte, demos um passo
importante, num ambiente de consenso, para levar adiante o processo de
integração regional para a conformação futura da Alca.
O
Brasil manteve seus propósitos de avançar de forma contínua, gradual
e realista, tendo em vista manter-se o equilíbrio com as iniciativas
adotadas no plano interno.
Essa
visão foi claramente expressa pelo Presidente Fernando Henrique
Cardoso, na reunião ministerial de Belo Horizonte, ao afirmar que:
“Não devemos ter pressa para avançar. A ALCA que não deve
constituir uma vitória de curto prazo daqueles que buscam negócios
imediatos”.
Estabilização
Econômica
O
Brasil logrou alcançar a estabilização monetária com resultados
positivos no campo social. Mas este fato deve ser entendido como apenas
uma etapa no caminho de um futuro mais promissor, não podendo jamais
constituir um fim em si mesmo. É necessário estimular o
desenvolvimento, a distribuição da renda, o avanço dos segmentos
menos favorecidos da população.
Já
tive a oportunidade de afirmar que afirmar que o progresso no campo
econômico há de ter como beneficiários principais as camadas sociais
menos favorecidos, que por força das circunstâncias históricas tem
estado excluídos dos frutos da civilização.
Cuba
A situação de Cuba na
comunidade hemisférica continua a ser um tema objeto de nossa
permanente preocupação. Temos a convicção de que as evidências de
progresso institucional têm de ser aprofundados e estimulados.
Reiteramos nosso
entendimento de que o isolamento econômico e político não nos parece
a melhor maneira de contribuir para que se criem condições que
permitam a plena reintegração ao sistema interamericano daquele país,
com o qual mantemos relacionamento amistoso e temos importantes
identidades culturais.
Na mesma linha, o
Brasil reafirma seus apoio à Declaração do Grupo do Rio a propósito
da chamada “Lei Helms-Burton”. Entendemos que os efeitos e
aplicação extraterritoriais daquela disposição interna
norte-americana constituem violação das normas de direito
internacional e das regras do livre comércio e tampouco contribuem para
a reafirmação dos princípios democráticos do continente e do
respeito dos direitos humanos.
Somos de opinião
igualmente - conforme já tive ocasião de afirmar em nossos trabalhos
no Conselho Permanente - de que a não observância daquelas normas
introduz elementos de insegurança, intranqüilidade e imprevisibilidade
no desenvolvimento das relações entre os países.
A OEA como centro de
ações hemisféricas
A leitura rápida da
agenda de nossos trabalhos - como já referi - revela a densidade dos
assuntos de interesse de nossos países. Trata-se de um repertório de
temas que refletem a importância e a responsabilidade do papel desta
Organização no processo de preparação, negociação e
implementação de iniciativas no plano hemisférico que recaiam em seu
campo de competência temática.
Reitero
aqui nossa opinião de que cabe à OEA, o principal organismo regional
de concentração entre os países do Hemisfério, o papel central para
o tratamento de temas relacionados com as prioridades e os desafios a
serem enfrentados pelos nossos países, no presente e no futuro.
Diante disso,
senhor presidente, renovo a proposta - já formulada perante o Conselho
Permanente - no sentido de que se dê início a um processo de reflexão
e intercâmbio de idéias sobre a conveniência de assegurarmos a esta
Organização, na condução e discussão de temas que, por sua
natureza, estão no próprio cerne do processo de desenvolvimento de
nossos povos, uma maior responsabilidade.
Senhor presidente,
Mais do que nunca,
temos o dever de analisar e compreender o presente para prepararmos a
construção do futuro num mundo que se transforma celeremente. Os
princípios e valores que norteiam a atuação da Organização dos
Estados Americanos são conquistas irreversíveis do espírito humano. A
natureza das mudanças que vivenciamos, o curso dos acontecimentos neste
final de século, os problemas que se avizinham estão a demandar a
intensificação da cooperação multilateral hemisférica por ser esta
a única via capaz de inserir-nos pacificamente no contexto emergente.
Os desafios contemporâneos, na América e no mundo, são essencialmente
transnacionais, demandando respostas coletivas, concertadas e
harmônicas.
A crescente
interdependência econômica, a globalização da comunicação social
sob todas as suas formas, a imperiosa necessidade de integrarmos vastos
contingentes populacionais ao processo de produção e consumo, exigem
políticas públicas específicas, voltadas para a promoção do homem e
o pleno desenvolvimento das suas
potencialidades. Os mecanismos tradicionais de cooperação já não
respondem às necessidades do momento porque os impasses enfrentados
são, qualitativa e quantitativamente, diversos.
A
preservação da paz - que é um dos pilares em que se assenta a
Organização dos Estados Americanos - não mais se identifica com a
simples manutenção de um estado de não beligerância. É preciso
enfrentar a questão dos desequilíbrios sociais e regionais que se
agravam dia a dia, tornando cada vez mais precária a estabilidade das
relações humanas. Políticas corretivas precisam ser adotadas para
evitar o progressivo distanciamento entre excluídos e partícipes da
evolução científica, tecnológica e cultural. A competitividade,
quando levada a extremos e num ambiente de total ausência de
regulamentação, gera distorções e fraturas que rapidamente se
transformam em motivo de enfrentamento. A segurança comum exige,
sobretudo, medidas preventivas capazes de eliminar os focos de tensão.
A ordem internacional precisa coibir e sancionar toda sorte de medida
unilateral que atente contra a igualdade soberana dos Estados, que
imponha o interesse de uns em detrimento de outros, que dificulte ou
impeça o acesso dos demais ao saber e aos frutos do progresso. A
solidariedade na superação das iniquidades é uma obrigação que a
todos se impõe.
A
defesa da democracia - que ´e outro fundamento desta entidade - não
mais pode se limitar à condenação das formas autoritárias e
totalitárias de conquista do poder. Se desejamos assegurar o exercício
da autêntica representatividade política em tudo que diga respeito ao
interesse coletivo, à promoção do bem comum, é preciso caminhar no
sentido de reformas que garantam às autoridades públicas meios
eficazes para implementar as suas decisões, as suas prioridades. O
poder que escapa a qualquer sanção, a qualquer controle, a qualquer
tipo de disciplina, e que só se movimenta na busca do interesse
setorial, é cada vez maior. Trata-se de um poder anônimo, e por isto
mesmo insuscetível de qualquer responsabilização perante as
sociedades. É um poder que transcende as fronteiras de todos os
países, que se estrutura e organiza globalmente, e que poderá submeter
as instituições democráticas aos seus desídeos particulares. Seria
um equívoco imaginarmos que a concorrência no plano econômico seja
capaz, por si só, de criar um clima de estabilidade e prosperidade
geral. A ausência de regras, de autoridades investidas de efetivo poder
para zelar pelo bem da coletividade, pode ensejar novas ameaças à
democracia e à liberdade do cidadão.
O
crescimento sustentado e equilibrado - única fórmula capaz de criar e
disseminar a riqueza de forma eqüitativa - exige a preservação de
núcleos estratégicos aptos a fomentar e direcionar a atividade
produtiva no sentido do
atendimento das necessidades essenciais do ser humano, do seu pleno
desenvolvimento e do fortalecimento da solidariedade social.
Em
que pese a diversidade cultural e a multiplicidade dos estágios de
desenvolvimento, todos os países enfrentam, basicamente, os mesmos
problemas: desemprego, educação, saúde, seguridade e exclusão
sociais, meio ambiente e violência. O fenômeno do
inter-relacionamento, que marca o nosso tempo, alcança também as
causas estruturais ensejadoras dos impasses. A concentração política
e diplomática que este foro enseja certamente contribuirá para
a solução dos problemas que nos afetam, bem como para a construção
de um mundo melhor para as gerações futuras.
Inspirados nos mesmos
nobres ideais que moveram os nossos antepassados a lutarem pela
conquista de pátrias livres e independentes, somemos os nossos
esforços pela causa e aspiração comum de progresso com estabilidade e
justiça.
4.2. Hélio Bicudo
fala à OEA
Hélio Bicudo 3
“Uma dissertação
sobre violência, nos seus vários prismas, deve começar,
necessariamente, pela abordagem do conceito de cidadania. A cidadania -
conjunto de direitos e deveres da pessoa - não é uma concessão do
Estado, mas uma conquista do povo. Os direitos nascem com o homem, que
busca, no que poderíamos denominar “flecha da evolução”, o
reconhecimento desses direitos pelo poder do Estado e, assim, os
concretiza.
A consolidação da
cidadania vem sendo obtida no decorrer de muitas lutas, que desaguaram,
do século XIII, na Magna Carta e nos bills (declarações)
ingleses. No século XVIII, os direitos do homem ainda incipientemente
inscritos, apareceram ratificados nas declarações de Virgínia e na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, elaborada na
Revolução Francesa. Alcançava-se, assim, a expressão da
personalidade no que ela tem de próprio e inalienável para a
realização do destino humano.
A partir daí, esses
direitos passaram a ser inscritos nas cartas políticas. No entanto, a
trajetória da humanidade demonstra que aos povos não bastam, para seu
aperfeiçoamento, os direitos e deveres inscritos em seus códigos de
conduta. A exigência de novos direitos e deveres surge à medida que o
homem se insere na comunidade - que não é estática, mas cada vez mais
dinâmica - e se qualifica como cidadão.
Na Segunda Guerra
Mundial (1939-1945), esses direitos foram esmagados pelas ditaduras
instaladas na Alemanha, Itália e Japão. Então, ainda durante a
conflagração, firmou-se a Carta do Atlântico, que contemplava três
liberdades consideradas fundamentais: a liberdade de crença religiosa e
a liberdade de não ter medo da polícia. Com o fim da guerra, os
países vencedores reuniram-se em São Francisco, nos Estados Unidos, e
aprovaram, em 1948, a Declaração dos Direitos da Pessoa Humana. Nascia
assim um dos grandes monumentos que demarca os avanços na conquista dos
direitos individuais e coletivos.
No Brasil, esses
direitos e garantias, tal qual formulados pelas revoluções americana e
francesa, apareceram nas constituições do Império e da República.
Sua ampliação - já considerando o homem real - surgiu com a
Constituição de 1934, seguida fielmente pela Constituição de 1946.
A Constituição em
vigor, promulgada em 1988, deu ênfase especial ao capítulo dos
direitos e garantias individuais e sociais. Deslocou-o das últimas
páginas das antigas leis maiores para o seu pórtico, inscrevendo seus
dispositivos nos artigos 5º e 7º. E fez mais: em seu Artigo 3º,
esclareceu que constituem objetivos fundamentais da República:
I - construir uma
sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o
desenvolvimento nacional;
III - erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais;
IV - promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação.
De fato, os direitos e
garantias individuais encontram-se grafados de modo amplo e abrangente.
Mas é preciso perguntar: isso basta para que se afirme que
conquistamos, realmente, a cidadania? A violência institucional parece
desmentir essa hipótese. Trata-se de uma violência abrangente, que
atinge a todos, homens, mulheres, crianças e jovens. Quanto a estes, as
conclusões de Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a apurar a
eliminação de crianças e jovens desnudam um quadro perverso em todo o
Brasil: temos, na verdade, uma política voltada para extermínio de
nossas crianças e jovens. A rejeição marca a criança brasileira
desde a concepção. Quando consegue nascer, ela é recebida por um
mundo hostil que a elimina. E se isso não acontece, acaba sendo
lançada às ruas, onde irá conhecer apenas as fachada das casas, não
desvendando nunca o seu interior. Para completar o cenário, há a
violência da polícia e dos grupos parapoliciais, as prisões ilegais,
a tortura, os assassinatos nas ruas. Tudo isso evidencia até que ponto
podemos falar, hoje, em cidadania.
A Polícia de São
Paulo confessou a eliminação, em 1990, de mais de mil pessoas, e
dentre estas muitas crianças e jovens.
Esse número, fornecido por entidades oficiais, continuou a
crescer nos dois anos seguintes, chegando a mais de mil e quinhentas
vítimas em 1992. Os dados são oficiais, constatados nos Institutos
Médico Legais. A CPI sobre as crianças apurou que os órgãos de
segurança assassinam, pelo menos, três crianças por dia. Isso
acontece em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Belo
Horizonte.
Enquanto ocorre essa
chacina, o povo, manipulado pelos meios de comunicação, instila seu
ódio contra os meninos e meninas de rua, condenando-os a um só
destino: a morte. Ou, então, debate a outorga do voto facultativo aos
dezesseis anos ou da carteira de motorista para jovens da mesma idade,
como se tais medidas constituíssem fatores de cidadania. Ora, essas
duas faculdades contemplam apenas determinados setores da população,
que representam não mais de 5% do seu total. E para solucionar o
problema da violência, a sociedade, já exausta e embrutecida, propõe
ainda mais violência, morte, penas mais longas e mais duras, novos
tipos penais, a diminuição da idade de responsabilidade criminal e,
por último a privatização das prisões.
Pela Constituição
brasileira, a responsabilidade penal começa aos dezoito anos.
Entretanto, numa visão equivocada da problemática da violência,
quer-se fixá-la em catorze ou dezesseis anos, diante da alegação de
que a mesma Constituição já atribui o voto facultativo aos jovens de
dezesseis anos, idade também pretendida para a direção de veículos
automotores.
Ora, convém reafirmar,
a cidadania só se constrói dentro do Estado de Direito democrático,
respeitando-se as instituições estabelecidas pelo povo nas suas
constituições. E não é isso o que pretendem os segmentos mais
conservadores da sociedade
brasileira, quando tentam desfigurar o significado da representação
política. A cidadania somente existe e cresce na medida em que os
representantes do povo verdadeiramente o representem.
A
primeira tentativa para concretizar esse desiderato ocorreu durante a
ditadura militar, quando os menores de 16 anos foram considerados
sujeitos ativos nos chamados “delitos contra a segurança nacional”
(Lei 6.620, de 17 de dezembro de 1978). A idéia ficou no ar e
reapareceu pelas mãos daqueles que vêm na pena tão-somente uma forma
de exclusão social. Se a luta dos meninos nas ruas, como um fator de
seleção natural, transformaram aqueles que nunca brincaram em
elementos potencialmente perigosos para a manutenção das regras
estabelecidas de convivência social, não há porque, argumentam,
considerá-los penalmente inimputáveis. Esquecem-se, em suas
considerações, do descaso dos órgãos estatais responsáveis pela
aplicação da política, definida legalmente, de atendimento à
criança e ao jovem infrator. Em vez de defenderem uma atuação que
proteja a criança ou o adolescente jogados à marginalidade por uma
ordem social injusta, enfatizam a necessidade de uma repressão sem
limites. Nestas condições, fundações estatais chamadas do bem-estar
do menor, em lugar de promoverem o “bem-estar do menor”, funcionam
como órgãos de contenção, onde prevalecem os maus-tratos e o
desconhecimento dos direitos hoje elencados no Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Se
o jovem de dezesseis anos já vota e logo dirigirá veículos
automotores, conclui-se que ele não deve escapar da responsabilidade
penal. Isso é totalmente falso. Argumenta-se, ao escolher os dirigentes
da República, dos estados e dos municípios, o menor sujeita-se a todas
as regras insertas na legislação eleitoral, inclusive as de natureza
penal. Ou, dirigindo um carro, ele pode envolver-se em acidentes que
danifiquem o patrimônio e a integridade física ou a vida de terceiros.
Então, por que não considerá-lo sujeito ativo para os efeitos penais?
Ora, tanto o voto
facultativo como a condução de automóveis são direitos que se
outorgam aos jovens das classes mais favorecidas. Conforme observa dom
Luciano Mendes de Almeida, presidente da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil, na luta diária pela sobrevivência, uma menina ou um
menino de rua não estão interessados em qualificar-se como crescer nos
dois anos seguintes, chegando a mais de mil e quinhentas vítimas em
1992. Os dados são oficiais, constatados nos Institutos Médico Legais.
A CPI sobre as crianças apurou que os órgãos de segurança
assassinam, pelo menos, três crianças por dia. Isso acontece em
cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Belo Horizonte.
Enquanto ocorre essa
chacina, o povo, manipulado pelos meios de comunicação, instila seu
ódio contra os meninos e meninas de rua, condenando-os a um só
destino: a morte. Ou, então, debate a outorga do voto facultativo aos
dezesseis anos ou da carteira de motorista para jovens da mesma idade,
como se tais medidas constituíssem fatores de cidadania. Ora, essas
duas faculdades contemplam apenas determinados setores da população,
que representam não mais de 5% do seu total. E para solucionar o
problema da violência, a sociedade, já exausta e embrutecida, propõe
ainda mais violência, morte, penas mais longas e mais duras, novos
tipos penais, a diminuição da idade de responsabilidade criminal e,
por último a privatização das prisões.
Pela Constituição
brasileira, a responsabilidade penal começa aos dezoito anos.
Entretanto, numa visão equivocada da problemática da violência,
quer-se fixá-la em catorze ou dezesseis anos, diante da alegação de
que a mesma Constituição já atribui o voto facultativo aos jovens de
dezesseis anos, idade também pretendida para a direção de veículos
automotores.
Ora, convém reafirmar,
a cidadania só se constrói dentro do Estado de Direito democrático,
respeitando-se as instituições estabelecidas pelo povo nas suas
constituições. E não é isso o que pretendem os segmentos mais
conservadores da sociedade
brasileira, quando tentam desfigurar o significado da representação
política. A cidadania somente existe e cresce na medida em que os
representantes do povo verdadeiramente o representem.
A
primeira tentativa para concretizar esse desiderato ocorreu durante a
ditadura militar, quando os menores de 16 anos foram considerados
sujeitos ativos nos chamados “delitos contra a segurança nacional”
(Lei 6.620, de 17 de dezembro de 1978). A idéia ficou no ar e
reapareceu pelas mãos daqueles que vêm na pena tão-somente uma forma
de exclusão social. Se a luta dos meninos nas ruas, como um fator de
seleção natural, transformaram aqueles que nunca brincaram em
elementos potencialmente perigosos para a manutenção das regras
estabelecidas de convivência social, não há porque, argumentam,
considerá-los penalmente inimputáveis. Esquecem-se, em suas
considerações, do descaso dos órgãos estatais responsáveis pela
aplicação da política, definida legalmente, de atendimento à
criança e ao jovem infrator. Em vez de defenderem uma atuação que
proteja a criança ou o adolescente jogados à marginalidade por uma
ordem social injusta, enfatizam a necessidade de uma repressão sem
limites. Nestas condições, fundações estatais chamadas do bem-estar
do menor, em lugar de promoverem o “bem-estar do menor”, funcionam
como órgãos de contenção, onde prevalecem os maus-tratos e o
desconhecimento dos direitos hoje elencados no Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Se o jovem de
dezesseis anos já vota e logo dirigirá veículos automotores,
conclui-se que ele não deve escapar da responsabilidade penal. Isso é
totalmente falso. Argumenta-se, ao escolher os dirigentes da República,
dos estados e dos municípios, o menor sujeita-se a todas as regras
insertas na legislação eleitoral, inclusive as de natureza penal. Ou,
dirigindo um carro, ele pode envolver-se em acidentes que danifiquem o
patrimônio e a integridade física ou a vida de terceiros. Então, por
que não considerá-lo sujeito ativo para os efeitos penais?
Ora, tanto o voto
facultativo como a condução de automóveis são direitos que se
outorgam aos jovens das classes mais favorecidas. Conforme observa dom
Luciano Mendes de Almeida, presidente da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil, na luta diária pela sobrevivência, uma menina ou um
menino de rua não estão interessados em qualificar-se como eleitor e
votar. E muito menos terão acesso a uma carteira de motorista, para
exercer uma profissão no contexto do transporte de pessoas ou de
mercadorias. Esses jovens vêem a vida, com a qual não contam, de outro
prisma. Não conhecem a solidariedade, o amor, ou o aconchego da
família.
E mais: as faculdades
concedidas aos jovens dos estratos superiores da sociedade
transformam-se numa verdadeira armadilha para os demais jovens, a grande
maioria. As discriminações já existentes contra as meninas e meninos
de rua tendem a agravar-se ainda mais. Os jovens infratores das
famílias ricas conseguem escapar facilmente das malhas policiais ou dos
procedimentos judiciais. Entretanto, os meninos e meninas de rua
continuarão a ser penalizados, não porque desejamos abrir-lhes
possibilidades de integração à comunidade, mas simplesmente porque
não queremos vê-los nas ruas. Desejamos, isto sim, afastá-los do
nosso convívio.
Além disso, falar em
responsabilidade criminal aos catorze ou dezesseis anos eqüivale a
ignorar a realidade brasileira. Segundo dados do IBGE (Fundação
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 1990 tínhamos 60
milhões de crianças e adolescentes, dos quais 32 milhões (53,5%)
viviam em famílias cuja renda per capita não ultrapassava meio
salário mínimo.
Aproximadamente
quatro milhões de crianças em idade escolar não freqüentavam a
escola, e 18 milhões de pessoas com mais de quinze anos eram
analfabetas. Esses indicadores, por si só perversos, ainda não
evidenciam os problemas das crianças de rua, que se avolumam nas
grandes cidades, e os dos jovens infratores que, apesar de numericamente
insignificantes, assumem proporções alarmantes nas rebeliões no
sistema de contenção.
A
falência das políticas sociais públicas necessárias ao atendimento
da população na faixa etária até dezoito anos é um dado da
realidade, expresso nos índices de mortalidade infantil, de evasão
escolar, de desnutrição, fome e miséria. Pesquisa desenvolvida pela
professora Myriam Mesquita Pugliese de Castro, do Núcleo de Estudos
sobre a Violência da USP, revelou um cenário contristador. De acordo
com os registros do IML-SP, em 1990 ocorreram, na capital paulista, 994
homicídios de crianças e jovens, sobretudo na faixa etária de 15-17
anos - uma média de 2,7 assassinatos/dia. Esse tipo de quadro também
demonstra a intencionalidade de matar por parte dos agentes agressores
(10,9% identificados como policiais, segundo a mesma pesquisa) e a
exacerbação da violência (criança no Rio de Janeiro morta com 38
tiros na cabeça, conforme divulgou a imprensa carioca).
Enfim,
estamos diante da banalização da morte. E tudo decorrência da
não-adoção de uma política social voltada para a erradicação da
violência pelo tratamento adequado de suas causas (injustiças sociais,
miséria) e vítimas.
No
lugar da erradicação da violência pela violência, é preciso exigir
a erradicação da violência pela construção da cidadania. E isso
implica, sobretudo, em alimentar, educar, dar acesso a recursos médicos
e prover os pais de salários dignos, que viabilizem a moradia sem
promiscuidade e impeçam o abandono das crianças.
Depois
das generalidades expostas, vamos particularizar a realidade.
As
meninas e meninos que estão nas ruas podem ser classificados como
jovens e crianças, indiferentemente. São encontrados às vezes no
mesmo grupo desde crianças de três ou quatro anos até jovens perto da
maioridade legal. E muitos comportamentos que não seriam esperados nas
crianças são observados, como a capacidade de organizar-se no trabalho
ou a facilidade de manipularem dinheiro. Por outro lado, as mesmas
“crianças maduras” manifestam, muitas vezes, condutas infantis. Em
pesquisa da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, conta-se a
história de um menino de 12 anos que vivia nas ruas da cidade, e que
dizia que ia “tirar férias” e questionado sobre o que faria nesse
período, respondeu que passaria o tempo todo brincando de empinar
papagaio, passando a discorrer longa e entusiasmadamente sobre o que
faria e o prazer que teria.
É
até os dezesseis anos que se conta o maior número de crianças nas
ruas. Os bebês, desde recém-nascidos até cerca de três anos de idade
são encontrados em grande quantidade nas ruas e nos grupos que esmolam,
os quais podem ser compostos por crianças e adolescentes, mas mais
freqüentemente são formados por crianças e adultos, principalmente
mulheres.
Na
faixa além dos dezesseis anos a freqüência diminui, provavelmente em
função de dois fatores básicos: com o aumento da idade aumenta o
envolvimento de alguns desses menores com a delinqüência e,
consequentemente, com a máquina de corrupção do crime adulto aliado
às organizações de repressão. Estes jovens devem evitar “a
circulação” excessiva, escondendo-se em “mocós” e já não
exercendo as atividades típicas da rua para evitarem prisões ou
retaliações que fazem parte da prática desse envolvimento. Por outro
lado, a proximidade da maioridade obriga a busca de situações mais
seguras e controláveis de ganho. Os menos envolvidos com a
delinqüência tendem a procurar empregos regulares, pois a “carteira
assinada” serve de defesa às abordagens da Polícia. Os
excessivamente envolvidos passam para uma vida semi-clandestina.
No
Brasil, ao invés de buscar-se uma política de atendimento da criança
e do adolescente, tendo em vista o respeito pela sua dignidade, ou como
hoje se diz, pelo reconhecimento de sua cidadania - e neste caso o
Estatuto da Criança e do Adolescente, não permanecesse nas prateleiras
das bibliotecas, seria contribuição importante no caminho da
participação da sociedade no encaminhamento do problema - partiu-se
para uma política de intimidação e de eliminação, ignorando-se as
recomendações do UNICEF em seu relatório sobre a Situação Mundial
da Infância 1991, que apontam, como único caminho, o surgimento de uma
nova ética pela criança, circunstância capaz de manter o esforço
para criar um mundo melhor para a criança na década de 1990.
Os
números de crianças e adolescentes exterminados pela Polícia ou por
forças para-militares sugere a institucionalização dessa política de
eliminação. Em 1990 foram eliminadas em sete Estados (Sergipe 140,
Pernambuco 127, Maranhão 7, Piauí 29, Espírito Santo 16, São Paulo
918 e Rio de Janeiro 492) 1.729 crianças e adolescentes. No primeiro
trimestre de 1991 foram eliminadas em 10 Estados 408 crianças e
adolescentes: Rio de Janeiro 181; Pernambuco 81; Bahia 34; Alagoas 29;
São Paulo 28; Espírito Santo 27; Sergipe 12; Paraná 10; Paraíba 4; e
Amapá 4.
Os
totais são impressionantes: de 1988 a 1990 foram eliminadas 4.611
crianças e adolescentes.
Pesquisa
do Centro de Documentação do Centro de Articulação de Populações
Marginalizadas (CEAP), realizada em noticiário da imprensa do Rio de
Janeiro (junho a agosto de 1990) revela que 75% das crianças e
adolescentes assassinados, as quais foram identificadas, são negros. As
mulheres representam 13% do total. A faixa etária que concentra maior
número de assassinatos é a de 15 a 17 anos, representando 73% do
total. É significativo também o resultado encontrado para as faixas
inferiores. A de 10 a 14 anos encontra 15% do total, e a de 0 a 9 anos,
8% (4% dos casos não foram identificados).
O
jornal “O Estado de S. Paulo” de abril de 1993, informa que o
extermínio de menores cresceu 38% no Rio de Janeiro em 1992, onde foram
eliminados 424 menores, aumento significativo em relação aos 306 em
1991.
O
Governo dos Estados Unidos da América, em relatório sobre práticas de
direitos humanos no Brasil, referente ao ano de 1993, assinalou que
“cinco policiais militares foram indiciados por terem assassinado oito
crianças de rua na Praça da Candelária no Rio, em 23 de julho. As
estatísticas da polícia divulgadas após os assassinatos da
Candelária indicaram que 328 menores haviam sido assassinados entre
janeiro e junho, somente no Rio.”
Documento
elaborado pelo Departamento de Estatística da Policia Federal do Brasil
(Folha de S. Paulo, 14 de junho de 1991) afirma que em 1988 na cidade do
Rio de Janeiro e adjacências foram assassinadas 294 crianças; em 1989,
445; e em 1990, 492, ou seja, 1,34 por dia. Na cidade de São Paulo, em
1988, houve 449 assassinatos de crianças; em 1989, 782; em 1990, 918,
ou seja, 2,51 por dia. O mesmo documento diz que teria havido 4.600
assassinatos de crianças em todo o Brasil, no decorrer desses três
últimos anos, o que dá uma média entre 4 e 5 por dia, mas entre 6 e 7
para o ano de 1990. Trata-se de um mínimo, porque esses números foram
obtidos no Instituto de Medicina Legal e deles não constam os
“desaparecidos”.
O
Unicef patrocinou, recentemente, um estudo sobre as crianças e
adolescentes na Bahia: o que está acontecendo?
Nesse
estudo, os homicídios de crianças e adolescentes ocupam o terceiro
lugar nos casos pesquisados nos Institutos Médico Legais, com 15% do
total.
Os
caminhos da morte são trilhados pelo contingente de crianças e
adolescentes mais diretamente atingidos pela violência estrutural: o
das classes populares, que viveu em desvantagens não só material como
também afetiva, emocional e cognitiva. Viveu miseravelmente, mas
contraditoriamente espera-se que estas crianças e adolescentes se
tornem seres humanos.
Ressalte-se
o fato da criança e do adolescente trilharem os caminhos da morte por
necessidade financeira, revolta familiar, necessidade, cobiça,
brincadeira, valentia, fuga da realidade. Estes são os fatores que
conduzem às avenidas do roubo, ao tráfico e/ou ao uso de drogas; à
prostituição; ao crime, dentre outras situações violentas de
enfrentamento do cotidiano sem a perspectiva de alcançar a cidadania.
Nas
ruas de Salvador, hoje com mais de 12 mil crianças, o que mais
impressiona são as pequenas prostitutas - meninas entre 11 e 15 anos
que ganham a vida usando o próprio corpo.
L.,
15 anos, vem de Itabuna ganhar a vida em Salvador e acabou se
especializando em atender marinheiros nos navios fundeados na Baía de
Todos os Santos. Junto com amigas ela circula pela área do Mercado
Modelo em busca da clientela estrangeira - “Eu gosto de dólares,
aquelas notinhas verdes são o ouro, os navios são lindos por dentro,
ganho 20 a 60 dólares. Dá pra ficar curtindo a semana toda”.
Mas
não é só na Bahia. A prostituição infantil cresce no Brasil e já
atinge mais de 500 mil meninas, envolvidas cada vez mais com drogas.
Esse número expressa, com base em estimativa sobre a população
brasileira em 1989 (147,4 milhões), a existência de uma menor
prostituta entre cada 300 habitantes. Segundo cálculos do UNICEF, cerca
de 2 milhões de jovens entre 10 a 15 anos estão prostituídas ou em
vias de se prostituir no Brasil.
“Ana
Vasconcelos, que, em Recife (PE), trabalha há vários anos com meninas
prostitutas, tentando recuperá-las para o mercado de trabalho não
apenas por tratamento psicológico, mas formando mão-de-obra
especializada, montou uma instituição chamada “Casa de Passagem”,
freqüentada por meninas prostitutas, algumas delas com 9 anos .
Ali, elas se alimentam, aprendem ofícios e discutem seus problemas com
psicólogas.
As
garotas entrevistadas pelas psicólogas contam algo que é comum para as
prostitutas em todo o país. Já foram estupradas - algumas delas dentro
da própria casa pelo pai ou tio. Na prostituição se submetem aos mais
variados tipos de crueldades. As entidades assistências que cuidam de
prostitutas no Brasil têm registrados casos escabrosos de perversidade
sexual. Ana Vasconcelos por exemplo, tem em sua instituição uma menina
que foi estuprada pela primeira vez com três anos e teve, depois, de
levar vários pontos para religar partes de seu corpo.
Uma
dessas meninas chegou a fazer uma pergunta a Ana que a deixou
desconcertada:
-”Será
que não dá para nascer de novo?”
Por
trás dessa pergunta está a percepção de que, “nessa vida”, as
possibilidades estariam esgotadas.”
“...Quando
começou a cuidar de meninas prostitutas em Recife, a psicóloga Ana
Vasconcelos ficou intrigada ao ouvir uma expressão desconhecida
empregada como sinônimo de aborto. De fato, é uma palavra estranha:
“pezada”. Ela acompanhava a descontraída conversa entre duas
meninas. Uma delas contou que há dias tinha feito um aborto e, enfim,
estava livre da gravidez que lhe tirava clientes na rua:
_
Como tirou? - quis saber a menina que ouvia o relato.
_
Foi com pezada - respondeu.
Ana
se aproximou, curiosa. E perguntou:
_
O que é pezada?
A
psicóloga ficou estarrecida com a explicação. “Pezada” era levar
um chute forte na barriga. Era um meio, segundo a menina, fácil e
certeiro de se fazer um aborto. E, ainda por cima, mais barato - não
necessitava de médico ou parteira. Bastava a ajuda de alguém que se
dispusesse a dar a “pezada”, o que não era difícil...” (Revista
Vamos CDDH - Jan/Jun-91 - João Pessoa, PB).
“A
Folha de S. Paulo (26.10.90), em matéria assinada por Marcos Uchôa,
publicou depoimento de menores prostitutas entrevistadas nas ruas de
São Paulo que evidenciam a situação dessas crianças. Vejamos:
T.S.C.,
17 anos, é uma das prostitutas que atuam na região do Brás (Zona
Leste de São Paulo). Seu local de trabalho restringe-se a vielas e
becos localizados ao redor da estação de trem. “Não temos vez no
“paredão” da estação. Lá, a oferta é maior”, afirma. O
“paredão” começa a ser freqüentado por volta das 19 horas e serve
de ponto para as prostitutas adultas ou para as que estão há mais
tempo no ramo. “Como somos novas, não podemos decidir nosso
espaço”.
Seus
clientes são atendidos há três anos em pequenos hotéis da região.
Isso significa que começou a exercer a profissão aos 14 anos.
Ainda
no Nordeste, M.A. recebe cerca de US$ 100,00 por mês. Cobra US$ 5,00
por hora, preço que inclui, segundo ela, uma camisinha. Diz que
“dependendo da criatividade” do interessado, o programa pode sair
por US$ 10,00 a hora. “Definimos o preço de acordo com a cara do
freguês. Ultimamente tenho trabalhado pouco”, disse. Ela trabalha
cerca de 12 horas por dia.” (Revista Vamos CDDH - Jan/Jun-91 - João
Pessoa, PB).
De
acordo com pesquisas, uma das principais causas da entrada na
prostituição é a gravidez precoce: mais de um milhão de mulheres
menores de 19 anos são mães. Haveria 500 mil meninas de rua também
suscetíveis, pela necessidade de sobrevivência, a ingressar na
prostituição.
Vincula-se
o aumento da prostituição infantil ao comércio de narcóticos.
Acredita-se que cresce o número de adolescentes que fazem uso
“abusivo” de drogas, e a venda do corpo passa a ser um meio de
manter o vício.
Na
verdade, as meninas e meninos de rua vivem numa mistura de vida onde as
experiências infantis, juvenis e adultas se superpõem no mesmo momento
e sempre de forma drástica: à beira da morte; sofrendo o medo;
atacando e sendo atacado.
Vivem
um quotidiano que os impede de projetar expectativas amplas para si e
para as pessoas com quem se ligam. Seus anseios, como toda sua estrutura
de vida, são referidos ao que pode ser obtido imediatamente: o dinheiro
para “descolar uma beca nova” (roupa nova); a maconha, cola ou droga
que propicie a sensação de alegria; uma noite no Play Center (parque
de diversões existente em São Paulo) para aliviar a tensão depois do
assalto; um “carrão pra conseguir umas menininhas”.
As
expectativas para além do momento presente não são elaboradas porque
não há segurança de se passar deste para o momento futuro, uma vez
que não possuem nenhum controle sobre as condições que vivenciam.
O
Unicef, ao estudar a situação mundial da infância (relatório de
1993), destacou, no Brasil, o movimento em prol das crianças, o que já
se constitui numa esperança.
Assim
se posiciona o relatório: “O assassinato dos meninos e meninas de rua
no Brasil foi alvo de justa condenação mundial. Menos conhecidos,
porém, são os esforços de milhares de pessoas e organizações no
Brasil que trabalham para criar o movimento em favor dos direitos da
criança.
Sob
duas décadas de ditadura, a própria lei tornou-se um instrumento de
opressão para a criança brasileira. Milhares delas foram mandadas para
rígidas instituições correcionais, simplesmente por serem pobres e
abandonadas. Essas crianças não tinham sequer direitos legais, e o
abuso por parte da polícia e de outras autoridades tornou-se norma
generalizada.
O
empobrecimento cada vez maior dos trabalhadores - o salário mínimo
caiu de US$ 98,87 em 1950, para US$ 48,46 em 1980, estando hoje ao
nível médio anual de US $ 50 ; o produto interno caiu de 9,2, em,
1980, para 0,9 em 1991, sendo que em 1990 chegou a 4,4 - e, portanto, o
agravamento da questão social, num país que se classifica entre as dez
maiores economias do mundo, foram, ao lado da falta de liberdade
política, estimuladores da participação da sociedade civil. Por
paradoxal que possa parecer, os movimentos sociais, durante vinte anos
de ditadura militar, abriram espaços e se fortaleceram nas lutas por
habitação, transporte, educação e “menor”.
Com
o retorno da democracia, em 1985, as mesmas leis e instituições
permaneceram em vigor, e muitas atitudes e práticas continuaram a
prevalecer no sistema judiciário, na polícia e nas grandes e
superlotadas instituições. Mas, na esteira daqueles movimentos foi
possível, ao menos, lançar campanhas para modificar esta situação.
E, no mesmo ano em que foram realizadas eleições diretas, 200
organizações não-governamentais (ONGs) que trabalham para ajudar
crianças de rua reuniram-se para criar o movimento em favor dos meninos
e meninas de rua.
A
tarefa primordial do novo movimento foi resgatar o conceito de direito
da criança para a sociedade brasileira e suas instituições. A
elaboração da nova Constituição do país ofereceu uma oportunidade
perfeita. Com o apoio da Igreja Católica, dos meios de comunicação e
das áreas médica e legal, o movimento em favor dos direitos da
criança lançou uma campanha nacional que, nos últimos seis meses de
1986, apresentou mais de 3 mil artigos em revistas e jornais e 72
programas de televisão sobre os direitos da criança. Em maio de 1987,
o Presidente da Assembléia Constituinte recebeu uma petição assinada
por 1,3 milhão de brasileiros que apoiavam a inclusão dos direitos da
criança na nova Constituição. Era o início do movimento em favor dos
direitos da criança.
Mudanças
constitucionais foram realizadas. Esse processo, porém, implicou
mudanças nas leis e na política. Novamente com o apoio da Igreja, dos
meios de comunicação, de juízes favoráveis às reformas e de
funcionários públicos, uma campanha começou a substituir a
legislação repressiva pelo novo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Sob a nova lei, o poder dos tribunais com relação à privação da
liberdade da criança foi limitado aos casos de transgressão da lei.
Sempre que possível, as crianças abandonadas deveriam ser restituídas
às suas famílias. Caso contrário, deveriam ser colocadas sob os
cuidados de instituições tão pequenas e semelhantes à família
quanto possível. As crianças sob os cuidados dessas instituições
freqüentariam normalmente a escola, fazendo parte integrante da
comunidade.
Mais
uma vez, milhares de indivíduos e organizações mobilizaram-se em
apoio à nova lei, que em 1990 foi aprovada pelo Congresso e ratificada,
sem modificações, pelo Presidente.
Um
longo caminho ainda deverá ser percorrido até que as providências
adotadas em favor dos direitos da criança no Brasil possam ser
consideradas satisfatórias. Entretanto, as mudanças constitucionais e
legais já realizadas são a base fundamental para o progresso. Correm,
entretanto, o risco de desaparecerem na voragem da chamada “revisão
constitucional”. As instituições para crianças começam a oferecer
treinamento e a viabilizar oportunidades que revertam em rendimentos.
Muitos estados instalaram serviços telefônicos do tipo SOS, e as ONGs
criaram, também, centros de defesa
da criança e do adolescente, geralmente com funcionários
voluntários. Quase todos os estados e muitos municípios têm
atualmente um conselho de direitos da criança, no qual as ONGs e o
governo têm representação paritária. Atualmente, o abuso praticado
contra a criança já não é aceito de maneira passiva.
Sob
a nova legislação, os problemas das crianças que não cometeram uma
transgressão específica da lei já não são tratados pelo sistema
judiciário, mas pelos conselhos de defesa comunitários. E desde o
final de 1991, uma ampla aliança nacional chamada “Pacto pela
Infância”, incluindo representantes do governo, da Igreja, do meio
empresarial, dos sindicatos, dos meios de comunicação e dos movimentos
sociais, tem atuado como vigilante dos direitos da criança e da
implementação da nova legislação”.
Essas
conquistas, em si importantes, não são porém suficientes para
garantir o padrão necessário de proteção social que a conjuntura
recessiva do país impõe.
No
Brasil, se de um lado, como se ressaltou, procura-se viabilizar uma
política de atendimento à criança e ao jovem, de outro, as políticas
de ajuste econômico se constituíram em fator de maior miséria e, por
que não dizer, de verdadeiro genocídio infantil. Aliás, poderíamos
aqui repetir a pergunta feita pelo ex-presidente Julius Neyerere:
“devemos matar nossas crianças de fome para pagar nossas dívidas?”
Publicação
do UNICEF, correspondente à situação mundial da infância em 1991,
assinala que “nos países em desenvolvimento, as políticas de ajuste
poderiam ser planejadas de modo a que os recursos para o setor social
não sofressem cortes profundos.
Essa
necessidade, segundo se afirma, está sendo amplamente reconhecida e foi
expressamente endossada tanto pelo Banco Mundial como pelo FMI.
No
Brasil, os planos de estabilização monetária foram nefastos para o
setor social e, sobretudo, para a vida de suas crianças e jovens. Para
tanto constatar, basta que se tenha em vista os índices da mortalidade
infantil (embora se verifique uma queda nos índices, passando de 75,0
em 1980 para 45,0 óbitos infantis por 1.000 nascidos vivos, em 1989.
Esta taxa permanece bastante alta quando comparada com a de outros
países como Cuba (14,0), EUA (11,0) ou Japão (5,2). Acrescente-se,
todavia, que as diferenças regionais e sócio-econômicas, no Brasil,
são extremamente acentuadas. Assim, em 1989, a taxa de mortalidade
infantil variava de 33% na região Sudeste para 75% na região Nordeste.
No mesmo ano, sua incidência entre famílias com renda per capita
de até 1 salário mínimo era de 75,2%, ao passo que, entre famílias
com renda per capita superior a 1 salário mínimo, correspondia
a 33,3%), da baixa escolaridade (em 1990 contávamos com 20,2 milhões
de analfabetos com mais de 10 anos ou mais de idade) e da falta de
atendimento à saúde.
No último
Plano, que acaba de ser editado, tem-se como pressuposto indispensável,
a criação de um Fundo Social de Emergência, para cuja composição -
o que é pelo menos curioso - retiraram-se verbas originalmente
concedidas à educação, saúde e moradia...
Se
o diagnóstico existiu por parte do Banco Mundial e do FMI, os agentes
financiadores externos limitaram-se a constatações, mas não adotaram
medidas, sequer, para compensar os efeitos maléficos das políticas de
ajuste, e muito menos para implementar medidas objetivando proteger a
saúde e a educação da população mais pobre e mais vulnerável.
Na
linha de pensamento de que as condições de vida da infância e
juventude refletem as dos adultos, convém, contudo, lembrar que somente
depois de 42 anos da promulgação da Carta dos Direitos Humanos em
1948, é que surgiu a “declaração mundial sobre a sobrevivência, a
proteção e o desenvolvimento da criança”, por ocasião do Encontro
Mundial de Cúpula pela Criança, realizado em New York, em 30 de
setembro de 1990.
Essa
declaração englobou um Plano de Ação a ser implementado até o ano
2.000, no qual se ressalta o papel da mulher e da família, no contexto
da meta a ser alcançada, do bem-estar das crianças e adolescentes.
Impõe-se,
portanto, na forma proposta, que todos os esforços devem ser feitos
para que a criança não seja separada de sua mãe e de sua família.
Quando esse afastamento ocorrer por motivos de força maior ou em
função do interesse superior da criança, é necessário que se tomem
providências para que ela receba atenção familiar alternativa
apropriada, ou seja colocada em alguma instituição, desde que se leve
em conta a importância de permanecer em seu próprio meio cultural.
Assim, os grupos familiares, os parentes e as instituições
comunitárias devem receber apoio para poderem suprir as necessidades
das crianças orfãs, refugiadas ou abandonadas (nºs. 15 a 19).
O
Estado brasileiro, como se viu, é um péssimo exemplo no que respeita
ao tratamento que se dispensa à criança e ao adolescente, não tendo
demonstrado efetiva vontade política de diminuir, nessa área, os
índices de violência.
Na
questão do extermínio de menores não existem inocentes, seja no
Estado ou na sociedade. De algum modo todos nós contribuímos, ainda
que por omissão, para a perpetuação desse genocídio continuado e
ignóbil.
A
sociedade brasileira parece ter perdido a capacidade de se indignar com
as mortes de crianças e adolescentes. Se é verdade que durante a
ditadura militar se protestava contra a tortura que atingia
preferencialmente a classe média e rica, hoje se silencia diante das
mortes de crianças e jovens, talvez porque pertençam aos bolsões de
despossuídos que não tem vez.
É
certo que já se assiste a uma reação, ainda tímida, da sociedade
como se acentuou, através das entidades de direitos humanos - e a
Igreja tem tido papel relevante nesse setor - que procuram empolgar
representações outras da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados e
o Ministério Público para a tarefa comum da construção de uma vida
digna para as crianças brasileiras..
Esse
quadro precisa, para que possa ser revertido, de maiores investimentos
na área social; da instituição de uma nova polícia democrática,
preocupada com a segurança das pessoas e não com a segurança do
Estado; de uma nova atitude do Ministério Público e da Justiça, para
que atuem na devida apuração e punição da violência contra a
criança e o jovem.
Como se vê,
temos tudo, praticamente, por fazer e somente o levedo democrático pode
apontar para a construção de uma sociedade justa e solidária. Na
minha visão não se poderá alcançar esse ideal, com a tremenda
concentração de renda inexistente no Brasil, lançando nas fronteiras
da miséria cerca de 60 milhões de pessoas num total de 150 milhões.
Enfim, esse problema que não será resolvido sem que se adotem medidas
para uma efetiva reforma agrária e para a instituição de uma
política salarial capaz de atender às necessidades de moradia,
transporte, saúde e educação da classe trabalhadora, isto é, sem que
caminhemos para uma política de real distribuição de renda.
Para
encerrar estas palavras, permito-me ler uma poesia que me ofereceu um
menino de rua, um retrato de um país violento, sem maquiagem: ]
“Os
camelôs do amanhã”
(de
um menino de rua)
Os
tempos mudaram
na
vida do trabalhador
que
a cada dia vive a batalha de sobreviver
entre
a fome e a vontade de comer...
Os
anos passaram
De
Jânio a Castelo
de
Médici a Figueiredo
de
Sarney a Collor
o
seu salário foi diminuindo
com
a falsa intenção
de
acabar com a inflação.
Dos
planos infalíveis surgiu a recessão
fazendo
sumir na mesa do trabalhador o leite,
a
carne e o feijão
levando
sua pobre família à desnutrição.
Você
foi ficando empobrecido
esquecido
descamisado e desgraçado
jogado
feito lixo nas sarjetas metropolitanas
passando
dificuldades pela sua penúria.
O
sol raiou em berço esplêndido
onde
jamais houve jus ao suor do trabalhador.
Por
detrás das janelas chiques
haverá
sempre uma mansão formosa
entre
os ternos e as gravatas do patrão
conseguidos
às custas do teu sangue e do teu suor;
trabalhador
do hoje
miserável
do amanhã...”
Hélio
Pereira Bicudo é presidente da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos da OEA
4.3.Hélio
Bicudo é eleito presidente da CIDH 4
Primeiro
presidente do Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de
São Paulo e membro de sua equipe executiva desde sua criação, Hélio
Pereira Bicudo é o primeiro brasileiro a assumir um cargo na Comissão
Interamericana de Direitos Humanos. Desde janeiro de 2000, é o
presidente da Comissão.
O
Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo foi
criado por inspiração de dom Paulo EvaristoArns, ex-arcebispo de São
Paulo, para ajudar vítimas de violência policial. A idéia da entidade
nasceu depois da morte do operário metalúrgico Santo Dias da Silva, em
1979, em frente a Fábrica Sylvania, em Santo Amaro. “Este foi um fato
emblemático da violência policial e que levou dom Paulo Evaristo a
criar o Centro, exatamente para combater a violência policial.”
Desde
sua criação, o Centro Santo Dias dedica-se exatamente a isso: o
combate à violência policial. Essa determinação levou a entidade à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, onde, em 1994, o jurista
Hélio Bicudo fez um pronunciamento sobre o problema da violência
contra as crianças e os jovens, incluindo a questão do tráfico de
entorpecentes e da prostituição infantil.
Durante
esta viagem Hélio Bicudo foi sondado sobre a possibilidade de integrar
a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, composta por sete
membros, indicados pelos governos e eleitos a título pessoal pela
assembléia anual da OEA e com mandato de quatro anos, renovado por mais
quatro. No caso de Bicudo, a sugestão
feita pelo
4
Entrevista concedida por Hélio Pereira Bicudo, em dezembro de 1999, à
jornalista Bernadete Toneto, editora do jornal O SÃO PAULO.
cardeal Arns ao
presidente Fernando Henrique Cardoso foi acatada e apresentada à
assembléia geral da OEA de 1997, em Lima, no Peru, pelo então
embaixador brasileiro junto à OEA, o ex-presidente Itamar Franco.
Hélio
Bicudo começou a exercer seu mandato na Comissão Interamericana de
Direitos Humanos em fevereiro de 1998, tendo assumido o cargo de
vice-presidente. Em fevereiro de 2000, Hélio Bicudo assumiu o posto de
presidente da Comissão, seguindo uma tradição da entidade. Essa
eleição gerou um fato inédito: o Brasil assume pela primeira vez dois
importantes postos na OEA, com a presença do professor Cançado
Trindade na presidência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, e
de Hélio Bicudo na presidência da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos.
A
Comissão Interamericana de Direitos Humanos reúne-se em três sessões
ordinárias - em Washington, nos Estados Unidos, ou em cidades de outros
países. Além disso, quando convidados seus membros fazem periódicas
visitas a países, para avaliar denúncias de violação de direitos
humanos.
A
Comissão Interamericana de Direitos Humanos mantém também relatorias
especiais, que se debruçam sobre problemas que atingem o continente:
uma especial para tratar da questão das migrações, sobre povos
indígenas, sobre os direitos da mulher, sobre prisões, sobre crianças
e adolescentes e sobre a liberdade de expressão.
O jurista
Bicudo explica que uma denúncia só é aceita pela Comissão se todos
os recursos internos tiverem sido esgotados. Aceita a denúncia, a
Comissão tem competência para examinar e fazer as recomendações
devidas ao governo brasileiro (não são feitas recomendações aos
governos dos Estados pois quem representa a Federação é a União).
“É um trabalho bastante interessante. A ignorância a respeito dos
tratados dos direitos humanos pelo próprio Judiciário brasileiro, pelo
Ministério Público, muitas vezes dificulta a atuação mais positiva
de sistema”.
Para o
coordenador do Centro Santo Dias de Direitos Humanos, nos últimos
quatro anos um movimento espontâneo da sociedade civil garantiu no
Brasil o reconhecimento da Corte e da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos. “No início o Itamarati se opôs porque temia a
violação do princípio de soberania, mas hoje, no âmbito do Direito
Internacional, não se pode mais admitir que violações de direitos
humanos fiquem apenas sujeitas aos critérios de países onde elas
ocorreram, porque não se tratam de violações internas mas de
violações que têm repercussão mundial. São crimes contra a
humanidade e os crimes contra a humanidade não podem ficar apenas
sujeitos à jurisdição de determinados países”.
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