A Utopia
Thomas Morus
THOMAS MORUS: o autor e a obra.
LIVRO PRIMEIRO.
LIVRO SEGUNDO.
Das cidades da Utopia e
particularmente da cidade de Amaurota.
Dos magistrados.
Das artes e ofícios.
Das relações mútuas entre os
cidadãos.
Das viagens dos utopianos.
Dos escravos.
Da guerra.
Das religiões da Utopia.
Notas.
THOMAS MORUS: o autor e a obra
Thomas Morus, forma alatinada por
que é literariamente conhecido Thomas Moore, Grande Chanceler da Inglaterra,
nasceu em Londres em 1478 e foi aí decapitado em 1535. Filho de um dos juizes
do banco dos reis, foi aos quinze anos colocado como pagem do Cardeal Morton,
Arcebispo de Cantuária. Em 1497 foi terminar seus estudos em Oxford, onde
conheceu Erasmo. Fez durante três anos o curso de Legislação, ao mesmo
tempo que se preparava para exercer a advocacia.
Pouco depois da ascensão de
Henrique VII, foi referendário e membro do Conselho Privado (1514).
Acompanhou o rei da Inglaterra ao campo de Drap d'or em 1520. Após a queda do
cardeal Wolsey foi nomeado Grande Chanceler (1529).
Quando Henrique VIII abjurou o catolicismo, Morus, então ligado à Igreja
Romana, pediu demissão do cargo (1532), descontentando com esse gesto o Rei.
No ano seguinte ofendeu mortalmente Ana Bolena, recusando-se a assistir à sua
coroação e a prestar fidelidade a seus descendentes. Foi condenado à prisão
perpétua e ao confisco de todos os seus bens. Pouco tempo depois foi
condenado à morte por crime de alta traição e decapitado em Londres em
1535.
A "Utopia", sua obra mais divulgada, e que lhe deu renome universal,
foi editada em Basiléia (Suíça) por Erasmo a quem Morus estava ligado por
fortes laços de amizade e a quem revelava, em sua correspondência
particular, a repugnância que sentia pela vida parasitária e faustosa da
corte: "Não podes avaliar", escrevia-lhe, "com que aversão me
encontro envolvido nesses negócios de príncipes; não há nada mais odioso
que esta embaixada"... Referia-se à embaixada diplomática enviada pelo
Rei da Inglaterra a Flandres afim de resolver um dissídio surgido entre este
pais e o príncipe Carlos de Castela.
A "Utopia" representa a primeira crítica fundamentada do regime
burguês e encerra uma análise profunda das particularidades inerentes ao
feudalismo em decadência. A forma é muito simples; é uma conversação íntima
durante a qual Morus aborda ex-abrupto as questões mais novas e mais difíceis.
Sua palavra, às vezes satírica e jovial, outras, de uma sensibilidade
comovedora, é sempre cheia de força.
A primeira parte é o espelho fiel das injustiças e misérias da sociedade
feudal; é, em particular, o martirológio do povo inglês sob o reinado de
Henrique VII. Entretanto, o povo inglês não era vítima unicamente da
avareza do rei; outras causas de opressão e sofrimento o atormentavam. A
nobreza e o clero possuíam a maior parte do solo e das riquezas públicas;
estes bens permaneciam estéreis para a grande massa de trabalhadores. Além
disso, nessa época, os grandes senhores mantinham uma multidão de vassalos,
seja por amor ao fausto, seja para assegurar a impunidade de seus crimes ou
ainda para utilizá-los como instrumentos de violência contra os vilões.
Esta vassalagem era o terror do camponês e do trabalhador.
De outro lado, o comércio e a indústria da Inglaterra não tinham muita
expansão antes das descobertas de Vasco da Gama e Colombo. E assim, as gerações
se sucediam sem finalidade, sem trabalho e sem pão. A agricultura estava em
ruínas desde que a nascente indústria da lã, prometendo lucros espantosos,
fez com que terras imensas fossem transformadas em pastagens para carneiros.
Em conseqüência disto uma multidão de camponeses viu-se reduzida à miséria,
trazendo uma multiplicação de mendicidade, vagabundagem, roubos e assassínios.
Por sua vez a lei inglesa era de uma severidade inaudita, punindo com a morte,
indistintamente, o ladrão, o vagabundo e o assassino.
Com semelhante panorama social diante dos olhos, compreende-se a dureza e
amargura das críticas de Morus contra uma sociedade tão profundamente
desorganizada e injusta.
Thomas Morus, depois de ter na "Utopia" feito uma sátira a todas as
instituições da época, edifica uma sociedade imaginária, ideal, sem
propriedade privada, com absoluta comunidade de bens e do solo, sem
antagonismos entre a cidade e o campo, sem trabalho assalariado, sem gastos
supérfluos e luxos excessivos, com o Estado como órgão administrador da
produção, etc.
Embora o caráter essencialmente imaginário e quimérico da
"Utopia", a obra de Morus fica na história do socialismo como a
primeira tentativa teórica da edificação de uma sociedade baseada na
comunidade dos bens. E o seu nome ficou para sempre incorporado ao vocabulário
universal como o significado do todo sonho generoso de renovação social...
A UTOPIA
DISCURSO
DO MUITO EXCELENTE HOMEM
RAFAEL HITLODEU
SOBRE A MELHOR CONSTITUIÇÃO DE
UMA REPÚBLICA
PELO
ILUSTRE
THOMAS MORUS
VISCONDE E CIDADÃO DE LONDRES
NOBRE CIDADE DA INGLATERRA
LIVRO PRIMEIRO
O invencível rei da Inglaterra,
Henrique, oitavo do nome, príncipe de um gênio raro e superior, teve, não
faz muito tempo, uma querela de certa importância com o sereníssimo Carlos,
príncipe de Castela. Eu fui, então, enviado às Flandres, como parlamentar,
com a missão de tratar e resolver essa questão.
Tinha por companheiro e colega, o
incomparável Cuthbert Tunstall, a quem o rei confiara a chancela do
arcebispado de Cantuária, com os aplausos de todos. Nada direi, aqui, em seu
louvor. Não por temer que se acuse a minha amizade de adulação; porém, a
sua doutrina e as suas virtudes estão acima dos meus elogios, e sua reputação
é tão brilhante que celebrar o seu mérito seria, como diz o provérbio,
chover no molhado.
Encontramos em Bruges, lugar fixado para a conferência, os delegados do príncipe
Carlos, todos personagens distintíssimos. O governador de Bruges era o chefe
e o cabeça dessa deputação, e Jorge de Tomásia, preboste de Mont-Cassel,
era a boca e o coração. Este homem, que deve sua eloqüência, menos ainda
à arte que à natureza, passava por um dos mais sábios jurisconsultos em
questões de Estado; e sua capacidade pessoal; aliada a longa prática dos negócios,
fazia dele um habilíssimo diplomata.
A conferência já realizara duas
sessões e não pudera ainda concordar sobre muitos artigos. Os enviados de
Espanha despediram-se, então de nós, para ir a Bruxelas consultar o príncipe.
Aproveitei esse lazer e rendí-me a Antuérpia.
Durante a minha estada nesta
cidade conheci muita gente; mas nenhuma relação me foi mais agradável que a
de Pedro Gil, antuerpiense de uma grande integridade. Este moço, que desfruta
de honrosa posição entre os seus concidadãos, merece, realmente, uma das
mais elevadas, já pelos seus conhecimentos, já por sua moralidade, pois, a
erudição que possui iguala à qualidade do caráter. Sua alma está aberta a
todos; mas nutre por seus amigos tanta benevolência, amor, fidelidade e
devotamento que poder-se-ia qualificá-lo, muito justamente, como o perfeito
modelo da amizade. Modesto e sem fingimentos, simples e prudente, sabe falar
com espírito, e seu gracejo não é nunca uma injúria. Em suma, a intimidade
que se estabeleceu entre nós foi tão cheia de prazer e encanto, que suavizou
em mim a saudade da pátria, do lar, de minha mulher, de meus filhos, e
acalmou as inquietações de uma ausência de mais de quatro meses.
Um dia, estava eu na Notre-Dame, igreja da grande devoção do povo, e uma das
obras primas mais belas da arquitetura; depois de ter assistido ao ofício
divino, dispunha-me a voltar para o hotel, quando, de repente, dou de cara com
Pedro Gil, que conversava com um estrangeiro já idoso. A tez trigueira do
desconhecido, sua longa barba, a capa, quase a cair-lhe, negligentemente, sua
aparência e aspecto revelavam um patrão de navio.
Logo que Pedro deu comigo, aproximou-se, e, saudando-me, afastou-se um pouco
de seu interlocutor que iniciava uma resposta, e, a propósito deste, me
disse:
Vede este homem, pois bem, ia levá-lo
diretamente à vossa casa.
- Meu amigo, respondi-lhe, por vossa causa, ele seria benvindo.
- É mesmo por causa dele, replicou Pedro, se o conhecêsseis. Não há sobre
a terra outro ser vivo que possa vos dar detalhes tão completos e tão
interessantes sobre os homens e os países desconhecidos. Ora, eu sei que sois
excessivamente curioso por essa espécie de notícias.
- Não tinha adivinhado muito mal, disse eu, então, pois que, logo à
primeira vista, tomei o desconhecido por um patrão de navio.
- Enganai-vos estranhamente; ele navegou, é certo; mas não como Palinuro.
Navegou como Ulisses, e até mesmo como Platão. Escutai sua história:
Rafael
Hitiodeu (o primeiro destes nomes é o de sua família)
conhece bastante bem o latim e domina o grego
com perfeição. O estudo da filosofia ao qual se
devotou exclusivamente, fe-lo cultivar a língua
de Atenas de preferência à de Roma. E, por isso,
sobre assuntos de alguma importância, só vos citará
passagens de Sêneca e de Cícero. Portugal é o
seu país. Jovem ainda, abandonou seu cabedal aos
irmãos; e, devorado pela paixão de correr mundo,
amarrou-se à pessoa e à fortuna de Américo Vespúcio.
Não deixou por um só instante este grande navegador,
durante as três das quatro últimas viagens, cuja
narrativa se lê hoje em todo o mundo. Porém, não
voltou para a Europa com ele. Américo, cedendo
aos seus insistentes pedidos, lhe concedeu fazer
parte dos VINTE E QUATRO ficaram nos confins da
NOVA-CASTELA. Foi, então, conforme seu desejo,
largado nessa margem; pois, o nosso homem não
teme a morte em terra estrangeira; pouco se lhe
dá a honra de apodrecer numa sepultura; e gosta
de repetir este apotegma: O CADÁVER SEM SEPULTURA
TEM O CÉU POR MORTALHA; HÁ POR TODA A PARTE CAMINHO
PARA CHEGAR A DEUS. Este caráter aventureiro podia
ter-lhe sido fatal, se a Providência divina não
o tivesse protegido. Como quer que fosse, depois
da partida de Vespúcio ele percorreu, com cinco
castelhanos, uma multidão de países, desembarcou
em Taprobana, como por milagre, e. daí chegou
em Calicut, onde encontrou navios portugueses
que o reconduziram ao seu país, contra todas as
expectativas.
Assim que Pedro acabou essa
narrativa, agradeci-lhe o empenho e solicitude em me fazer desfrutar conversação
com homem tão extraordinário; depois, abordei Rafael, e, após as saudações
e cortesias habituais num primeiro encontro, levei-o à minha casa com Pedro
Gil. Aí, sentados no jardim, sobre um banco de relva, a conversa começou.
Rafael me contou como, após a
partida de Vespúcio, ele e seus companheiros, com afabilidade e bons serviços,
grangearam a amizade dos indígenas, e como viveram com eles em paz e na
melhor harmonia. Houve mesmo um príncipe, cujo pais e nome me escapam, que
lhes deu proteção a mais afetuosa. Sua generosidade os proveu de barcos,
carros e tudo mais de que necessitavam para continuar a viagem, Um guia fiel
teve ordem de acompanhá-los e apresentá-los aos príncipes com excelentes
recomendações.
Depois de vários dias de marcha
descobriram burgos e cidades bem administradas, nações inúmeras e Estados
poderosos.
No Equador, acrescentava Hitiodeu, de uma parte e de outra, no espaço
compreendido pela órbita do sol, não viram senão vastas solidões
eternamente devoradas por um céu de fogo. Ai, tudo os aturdia de horror e
espanto. A terra inculta tinha apenas como habitantes os animais mais ferozes,
os reptis mais terríveis, ou homens mais selvagens que os animais.
Afastando-se do Equador, a natureza se abrandava pouco a pouco; o calor é
menos abrasador, a terra se cobre de uma ridente verdura e os animais são
menos selvagens. Mais longe ainda, aparecem povos, cidades, povoações, em
que se faz um comércio ativo por terra e por mar, não somente no interior e
com as fronteiras, mas entre nações muito distantes.
Estas descobertas inflamavam o
ardor de Rafael e de seus companheiros. E o que alimentava essa paixão pelas
viagens era o fato de serem admitidos sem dificuldade no primeiro navio a
partir, qualquer que fosse o seu destino.
As primeiras embarcações que
viram eram chatas, as velas formadas de vimes entrelaçados ou de fo1has de
papiros, e algumas de couro. Em seguida, encontraram embarcações terminadas
em ponta, as velas feitas de cánamo; e finalmente embarcações inteiramente
semelhantes às nossas, e hábeis nautas conhecendo muito bem o céu e o mar,
mas sem nenhuma idéia da bússola.
Esses bons homens ficaram pasmados
de admiração e cheios do mais vivo reconhecimento, quando nossos castelhanos
lhes mostraram uma agulha imantada. Antes, era tremendo que se aventuravam ao
mar, e, ainda assim, atreviam-se a navegar apenas no verão. Hoje, bússola em
mão, arrostam os ventos e o inverno mais confiados do que seguros; pois, se não
tomam cuidado, essa bela invenção que parecia dever trazer-lhes tantos benefícios,
poderá transformar-se, por sua imprudência, em uma fonte de males.
Seria muito extenso se elatasse,
aqui, tudo o que Rafael viu em suas viagens. Aliás, não é essa a finalidade
desta obra. Completarei talvez a sua narrativa num outro livro em que darei
detalhes, principalmente, dos hábitos, costumes e sábias instituições dos
povos civilizados, que freqüentou Rafael.
Sobre essas graves questões nós
o importunamos com perguntas intermináveis, e ele consentia, prazeirosamente,
em satisfazer a nossa curiosidade. Nós nada lhe perguntamos sobre esses
monstros famosos que já perderam o mérito da novidade: Cila (1),
Celenos, Lestrigões, comedores de gente, e outras hárpias da mesma espécie
que existem em quase toda parte. O que é raro, é uma sociedade sã e
sabiamente organizada.
Para dizer verdade, Rafael notou entre esses novos povos instituições tão
ruins quanto as nossas, mas, observou também um grande número de leis
capazes de esclarecer, de regenerar as cidades, nações e reinos da velha
Europa.
Todas essas coisas, repito-o, serão
objeto de uma outra obra. Nesta, relatarei apenas o que Rafael nos contou dos
costumes e instituições do povo utopiano. Antes, quero mostrar ao leitor de
que maneira a conversa foi levada para este terreno:
Rafael entremeava a sua narrativa
com as reflexões mais profundas. Examinando cada forma de governo, analisava,
com uma sagacidade maravilhosa, o que há de bom e verdadeiro numa, de mau e
de falso noutra. Ao ouvi-lo discorrer tão sabiamente sobre as instituições
e os costumes dos diferentes povos, era de pensar-se que vivera toda a vida
nos lugares por onde apenas passara. Pedro não pode conter a sua admiração.
Na verdade, disse, meu caro Rafael, espanto-me que não vos tivésseis posto a
serviço de algum rei. Certamente não haveria um só que não encontrasse em
vós utilidade e satisfação. Encheríeis de encanto os seus lazeres com o
vosso conhecimento universal das coisas e dos homens, e os incontáveis
exemplos, que poderíeis citar, proporcionar-lhe-iam um sólido ensinamento e
conselhos preciosos. Faríeis, ao mesmo tempo, uma brilhante fortuna para vós
e os vossos.
- Eu pouco me inquieto com a sorte
dos meus, retomou Hitiodeu. Creio ter cumprido sofrivelmente os meus deveres
para com eles. Os outros homens só abrem mão de seus bens já velhos e na
agonia, e é ainda chorando, que renunciam ao que suas mãos desfalecentes não
mais podem reter. Eu, cheio de saúde e juventude, tudo dei aos meus parentes
e amigos.
- Eles não se queixarão, espero,
do meu egoísmo; não exigirão que, para cumulá-los de ouro, eu me faça
escravo de um rei.
- Entendamo-nos, disse Pedro, a minha intenção não foi a de que servísseis
um príncipe como lacaio e sim como ministro.
- Os príncipes, meu amigo, põem
nisto pouca diferença; e, entre estas duas palavras latinas servire e
inservire, vêm apenas uma sílaba a mais, ou a menos.
- Chamai a coisa como quiserdes,
respondeu Pedro; é o melhor meio de ser útil ao público, aos indivíduos, e
de tornar mais feliz a própria situação.
- Mais feliz, dizeis! mas, como aquilo que repugna ao meu sentimento, ao meu
caráter, poderia fazer minha felicidade? Presentemente sou livre, vivo como
quero, e duvido que muitos dos que vestem a púrpura possam dizer o mesmo.
Muita gente ambiciona os favores do trono; os reis não sentirão falta, se eu
e dois ou três da minha têmpera não nos encontrarmos entre os cortesãos.
Então falei assim:
É evidente, Rafael, que não
procurais riquezas nem poder, e não tenho menos admiração e estima por um
homem como vós, do que por aquele que está à frente de um império.
Parece-me, entretanto, que seria digno de um espírito tão generoso, tão filósofo,
como o vosso, aplicar todos os seus talentos na direção dos negócios públicos,
embora houvesse que comprometer o seu bem estar pessoal; ora, a maneira de o
fazer com mais proveito, é ainda a de entrar para o conselho de algum grande
príncipe; estou certo de que a vossa boca não se abrirá jamais, senão para
a virtude e para a verdade. Vós o sabeis, o príncipe é a fonte de onde o
bem e o mal jorram, como uma torrente, sobre o povo; e possuís tanta ciência
e tantos talentos que, embora não tivésseis o hábito dos negócios, daríeis,
mesmo assim, um excelente ministro para o rei mais ignorante.
- Incidis num duplo erro, caro
Morus, replicou Rafael; e não só quanto ao fato em si como quanto à pessoa;
estou longe de ter a capacidade que me atribuis; e mesmo que a tivesse cem
vezes maior, o sacrifício de meu sossego seria inútil à causa pública.
Em primeiro lugar, os príncipes
cuidam somente da guerra (arte que me é desconhecida e que não tenho nenhum
desejo de conhecer). Eles desprezam as artes benfazejas da paz. Trate-se de
conquistar novos reinados, e todos os meios lhes parecem bons; o sagrado e o
profano, o crime e o sangue, não os detêm. Em compensação, ocupam-se muito
pouco de bem administrar os Estados submetidos à sua dominação.
Quanto aos conselhos dos reis, eis
aproximadamente a sua composição:
Uns se calam por inépcia, e teriam mesmo grande necessidade de ser
aconselhados. Outros, são capazes, e sabem que o são; mas partilham sempre
do parecer do preopinante, que está em melhores graças, e aplaudem, com
entusiasmo, as pobres imbecilidades que este entende desembuchar; esses vis
parasitas só têm uma finalidade: ganhar, por uma baixa e criminosa lisonja,
a proteção do primeiro favorito. Os outros, são escravos de seu amor próprio
e escutam apenas a própria opinião, o que não é de admirar, pois a
natureza insufla cada um a afagar com amor os produtos de sua invenção. É
assim que o corvo sorri à sua ninhada, e o macaco aos seus filhotes.
Que sucede então no seio desses
conselhos onde reinam a inveja, a vaidade e o interesse? Intenta, alguém,
apoiar uma opinião razoável na história dos tempos passados, ou nos
costumes dos outros países? Os outros se mostram surpresos e transtornados; e
com o amor próprio alarmado como se fossem perder a reputação de sábios e
passar por imbecis. Eles quebram a cabeça até encontrar um argumento
contraditório, e, se a memória e a lógica lhes minguam, entrincheiram-se
neste lugar comum: Nossos pais assim pensaram e assim fizeram; ah! queira Deus
que igualemos a sabedoria de nossos pais! Depois se assentam, pavoneando-se,
como se acabassem de pronunciar um oráculo. Dir-se-ia, ao ouvi-los, que a
sociedade vai perecer se surgir um homem mais sábio que os seus antepassados.
Enquanto isso, permaneçamos indiferentes, deixando subsistir as boas instituições
que eles nos legaram; e quando surge um melhoramento novo agarramo-nos à
antigüidade para não acompanhar o progresso. Vi, em quase toda a parte,
desses julgadores rabugentos, insensatos ou presunçosos. Aconteceu-me uma vez
na Inglaterra. -.
- Perdão, disse eu, então, a
Rafael, estivestes também na Inglaterra?
- Sim, estive lá alguns meses, pouco depois da guerra civil dos ingleses
ocidentais contra o rei que terminou com uma horrorosa matança dos insurretos
- Nessa ocasião, recebi enormes obséquios do reverendíssimo padre João
Morton, cardeal-arcebispo de Cantuária e chanceler da Inglaterra.
Era um homem (dirijo-me unicamente a vós, meu caro Pedro, porque Morus não
necessita dessas informações), era um homem ainda mais venerável por seu
caráter e virtude do que por suas altas dignidades. Sua estatura mediana não
se curvava ao peso da idade; sua fisionomia, sem ser dura, impunha respeito;
era de trato fácil, mas severo e majestoso. Sentia prazer em experimentar os
solicitantes com apóstrofes por vezes um tanto rudes, embora nunca ofensivas,
mostrando-se encantado se percebia neles presença de espírito e respostas
prontas, mas sem impertinência. Esta prova o ajudava a inferir do mérito de
cada qual e a classificá-lo,- segundo a especialidade. Sua linguagem era pura
e enérgica; sua ciência do direito profunda, seu julgamento seleto, sua memória
prodigiosa. Essas brilhantes disposições naturais, ele as tinha ainda
desenvolvido pelo exercício e pelo estudo. O rei fazia grande caso de seus
conselhos e o considerava como um dos mais firmes esteios do Estado - Levado
muito jovem do colégio para a corte, envolvido toda a vida nos acontecimentos
mais graves, tangido, sem descanso, pelo mar tempestuoso do destino,
adquirira, em meio de perigos sempre renovados, uma consumada prudência, um
conhecimento tão profundo das coisas que, por assim dizer, com ele próprio
se identificava.
O acaso me fez encontrar um dia,
à mesa desse prelado, um leigo reputado como douto legista - Este homem, não
sei a que propósito, se pôs a cumular de louvores a rigorosa justiça
exercida contra os ladrões. Narrava gostosamente como eles eram enforcados,
aqui e ali, às vintenas, na mesma forca.
Apesar disso, acrescentava, vejam que fatalidade! Mal escapam da forca dois ou
três desses bandidos, e, no entanto, na Inglaterra, eles formigam por toda
parte !
Com a liberdade de palavra que gozava na casa do cardeal, disse eu, então:
Nada disso devia surpreender-vos. Neste caso a morte é uma pena injusta e inútil;
é bastante cruel para punir o roubo, mas bastante fraca para impedi-lo. O
simples roubo não merece a forca, e o mais horrível suplício não impedirá
de roubar o que não dispõe de outro meio para não morrer de fome. Nisto, a
justiça de Inglaterra e de muitos outros países se assemelha aos mestres que
espancam os alunos em lugar de instruí-los. Fazeis sofrer aos ladrões
pavorosos tormentos; não seria melhor garantir a existência a todos os
membros da sociedade, a fim de que ninguém se visse na necessidade de roubar,
primeiro, e de morrer, depois?
- A sociedade previu o fenômeno, replicou o meu legista; a indústria, a
agricultura oferecem ao povo inúmeros meios de existência; existem, porém,
seres que preferem o crime ao trabalho.
- Era aí mesmo onde eu vos
esperava, respondi. Não falarei dos que voltam das guerras civis ou
estrangeiras com o corpo mutilado. Quantos soldados, entretanto, na batalha de
Cornualha, ou na campanha de França, perderam um ou vários membros a serviço
do rei e da pátria! Esses infelizes tornaram-se fracos demais para exercer o
seu antigo ofício e velhos demais para aprender um novo. Mas deixemos isso,
as guerras só se reacendem a longos intervalos. Olhemos o que se passa cada
dia ao redor de nós. A principal causa da miséria pública reside no número
excessivo de nobres, zangões ociosos, que se nutrem do suor e do trabalho de
outrem e que, para aumentar seus rendimentos, mandam cultivar suas terras,
escorchando os rendeiros até à carne viva. Não conhecem outra economia.
Mas, tratando-se, ao contrário, de comprar um prazer, são pródigos, então,
até à loucura e à mendicidade. E não menos funesto é o fato de arrastarem
consigo uma turba de lacaios e mandriões sem estado e incapazes de ganhar a
vida.
Caiam doentes esses lacaios, ou venha o seu patrão a morrer, e são jogados
no olho da rua; porque é preferível nutri-los para não fazer nada, do que
alimentá-los enfermos; muitas vezes o herdeiro do defunto não está em condições
de manter a domesticidade paterna.
Eis aí pessoas expostas a morrer de fome se não têm o ânimo de roubar. Terão
eles,, na realidade, outras possibilidades? Procurando emprego gastam a saúde
e as roupas; e quando se tornam descorados pelas moléstias e cobertos de
farrapos, os nobres lhes têm horror, desprezando os seus serviços. Os
camponeses mesmo não os querem empregar. Os camponeses sabem que um homem
criado molemente na ociosidade e nos prazeres, habituado a trazer a cimitarra
e o broquel, a olhar superiormente os vizinhos e a desprezar todo mundo; os,
camponeses sabem que um tal homem não é apto a manejar a pá e a enxada, a
trabalhar, fielmente, por um salário insignificante e uma parca alimentação,
a serviço de um pobre lavrador.
Sobre esse ponto meu antagonista respondeu:
- É precisamente essa espécie de gente que o Estado deve manter e
multiplicar com mais cuidado. Há neles mais ânimo e nobreza da alma que no
artesão e no trabalhador. São maiores e mais robustos e constituem,
portanto, a força do exército na hora de combater.
- Seria o mesmo que dizer, repliquei então, que se deve, para a glória e o
êxito dos vossos exércitos, multiplicar os ladrões. Porque esses mandriões
são uma sementeira inesgotável para o exército. Com efeito, os ladrões não
são os piores soldados, como os soldados não são os ladrões mais tímidos;
há muita analogia entre esses dois ofícios. Infelizmente, esta praga social
não é particular à Inglaterra; corrói quase todas as nações.
A França está infestada por uma peste ainda mais desastrosa. O seu solo está
inteiramente coberto e como que sitiado por inúmeras tropas arregimentadas e
pagas pelo Estado. E isto em tempo de paz; se é que se pode chamar de paz as
tréguas de um momento. Este deplorável sistema é justificado pelo mesmo
motivo que vos leva a sustentar miríades de lacaios ociosos. Pareceu a esses
políticos, timoratos e aflitos, que a segurança. do Estado exigia um exército
numeroso, forte, permanentemente em armas, e composto de veteranos. Não
confiam nos conscritos. Dir-se-ia mesmo que fazem guerras para ensinar o exercício
ao soldado a fim de que, como escreveu Salústio, nesse grande matadouro
humano, o coração ou a mão não se lhes entorpeçam no repouso.
A França aprende à sua custa o
perigo de alimentar essa espécie de animais carnívoros. No entanto,
bastar-lhe-ia olhar os romanos, os cartagineses e muitos outros povos antigos.
Que benefícios tiraram, entretanto, de seus exércitos imensos e sempre em pé
de guerra? A devastação de suas terras, a destruição de suas cidades, a ruína
de seu império. Se, ao menos, tivesse adiantado, aos franceses, exercitar,
por assim dizer, seus soldados desde o berço! Mas os veteranos da França já
combateram contra os conscritos da Inglaterra, e não estou certo se se podem
gabar muitas vezes de ter levado a melhor. Eu me calo sobre esse capítulo;
pareceria estar fazendo a corte aos que me ouvem.
Voltemos aos nossos soldados lacaios.
Têm eles, dizeis, mais coragem e
grandeza da alma do que os artesãos e os trabalhadores. Eu, de mim, não
creio que um lacaio faça muito medo nem a uns nem a outros, a não ser àqueles
em que a fraqueza do corpo paralisa o vigor da alma e cuja energia foi
aniquilada pela miséria. Os lacaios, dizeis ainda, são maiores e mais
robustos. Mas não é uma lástima ver homens fortes e belos (porque os nobres
escolhem as vítimas de sua corrupção) consumirem-se na inação,
amolecerem-se em ocupações de mulheres, quando fácil seria torná-los
laboriosos e úteis, dando-lhes um ofício honrado e habituando-os a viver do
trabalho de suas mãos.
De qualquer maneira que se encare a questão, esta massa imensa de gente
ociosa parece-me inútil ao país, mesmo na hipótese de uma guerra, que poderíeis,
aliás, evitar todas as vezes que o quisésseis. Ela é, além do mais, o
flagelo da paz; e a paz merece que se trate dela, tanto quanto da guerra.
A nobreza e a lacaiada não são
as únicas causas dos assaltos e roubos que vos deixam desolado; há uma outra
exclusivamente peculiar à vossa ilha.- E qual é ela?, disse o cardeal.
- Os inumeráveis rebanhos de
carneiros que cobrem hoje toda a Inglaterra. Estes animais, tão dóceis e tão
sóbrios em qualquer outra parte, são entre vós de tal sorte vorazes e
ferozes que devoram mesmo os homens e despovoam os campos, as casas e as
aldeias.
De fato, a todos os pontos do
reino, onde se recolhe a lã mais fina e mais preciosa, acorrem, em disputa do
terreno, os nobres, os ricos e até santos abades. Essa pobre gente não se
satisfaz com as rendas, benefícios e rendimentos de suas terras; não está
satisfeita de viver no meio da ociosidade e dos prazeres, às expensas do público
e sem proveito para o Estado. Eles subtraem vastos tratos de terra à
agricultura e os convertem em pastagens; abatem as casas, as aldeias, deixando
apenas o templo para servir de estábulo para os carneiros. Transformam em
desertos os lugares mais povoados e mais cultivados. Temem, sem dúvida, que não
haja bastantes parques e bosques e que o solo venha a faltar para os animais
selvagens.
Assim um avarento faminto enfeixa,
num cercado, milhares de geiras; enquanto que honestos cultivadores são
expulsos de suas casas, uns pela fraude, outros pela violência, os mais
felizes por uma série de vexações e de questiúnculas que os forçam a
vender suas propriedades. E estas famílias mais numerosas do que ricas
(porque a agricultura tem necessidade de muitos braços), emigram campos em
fora, maridos e mulheres, viúvas e órfãos, pais e mães com seus filhinhos.
Os infelizes abandonam, chorando, o teto que os viu nascer, o solo que os
alimentou, e não encontram abrigo onde refugiar-se. Então vendem a baixo preço
o que puderam carregar de seus trastes, mercadoria cujo valor é já bem
insignificante. Esgotados esse fracos recursos, o que lhes resta? O roubo, e,
depois, o enforcamento segundo as regras.
Preferem arrastar sua miséria mendigando? Não tardam ser atirados na prisão
como vagabundos e gente sem eira nem beira. No entanto, qual é o seu crime?
É o de não achar ninguém que queira aceitar os seus serviços, ainda que
eles os ofereçam com .o mais vivo empenho. E aliás, como empregar esses
homens? Eles só sabem trabalhar a terra; não há então nada a fazer com
eles, onde não há mais nem semeaduras nem colheitas. Um só pastor ou
vaqueiro é suficiente, agora, a fazer com que brote, de si mesma, a terra
onde, outrora, para seu cultivo, centenas de braços eram necessários.
Outro efeito desse fatal sistema é uma grande carestia de vida em diversos
lugares.
Mas não é tudo. Após a multiplicação dos pastos, uma horrorosa epizootia
veio matar uma imensa quantidade de carneiros. Parece que Deus queria punir a
avareza insaciável dos vossos açambarcadores com esta medonha mortandade que
talvez fosse mais justo lançar sobre suas próprias cabeças. Então, o preço
das lãs subiu tão alto que os operários mais pobres não as podem
atualmente comprar. E eis aí de novo uma multidão de gente sem trabalho. É
verdade que o número de carneiros cresce rapidamente todos os dias; mas nem
por isso o preço baixou; porque se o comércio das lãs não é um monopólio
legal, está, na realidade, concentrado nas mãos de alguns ricos açambarcadores
que nada pode constrangê-los a vender a não ser com altos lucros.
As outras espécies de gado encareceram proporcionalmente pela mesma causa e
por uma causa mais forte ainda, porque a reprodução destes animais está
completamente abandonada, desde a abolição das granjas e a ruína da
agricultura. Vossos grandes senhores não cuidam da criação do gado, como da
criação de seus carneiros. Vão comprar, distante, animais magros, quase por
nada, engordam-nos nos seus campos e os revendem a preços extraordinários.
Temo bastante que a Inglaterra não tenha sofrido todos os efeitos desses
deploráveis abusos. Até agora os engordadores de gado só provocaram a
carestia nos lugares onde vendem; mas à força de transportar o gado do lugar
onde compram, sem lhe dar tempo de reproduzir, o seu número acabará por
diminuir, insensivelmente, e o país acabará por cair numa horrível penúria.
Assim, o que devia fazer a riqueza de vossa ilha fará a miséria, devido à
avareza de um punhado de miseráveis.
A escassez geral obriga todo o mundo a restringir sua despesa e sua criadagem.
E os que são despedidos, para onde vão? Mendigar ou roubar, se têm coragem.
A estas causas de miséria ajuntam-se ainda o luxo e as despesas insensatas.
Lacaios, operários, camponeses, todas as classes da sociedade, ostentam um
luxo inaudito nas vestes e na alimentação. Que direi dos lugares de
prostituição, dos vergonhosos antros de embriaguez e devassidão, das
infames casas de tavolagem de todos os jogos, do baralho, do dado, do jogo da
péla e da conca, que devoram o dinheiro de seus freqüentadores, e os impelem
diretamente ao roubo para reparar as perdas?
Arrancai de vossa ilha essas pestes públicas, esses germes do crime e da miséria.
Obrigai os vossos nobres demolidores a reconstruir as quintas e burgos que
destruíram, ou a ceder os terrenos para os que quiserem reconstruir sobre as
ruínas. Colocai um freio ao avarento egoísmo dos ricos; tirai-lhes o direito
do açambarcamento e monopólio. Que não haja mais ociosos entre vós. Dai à
agricultura um grande desenvolvimento; criai a manufatura da lã e a de outros
ramos de indústria, para que venha a ser ocupada utilmente esta massa de
homens que a miséria transformou em ladrões, vagabundos ou lacaios, o que é
aproximadamente a mesma coisa.
Se não remediardes os males que vos assinalo, não vos vanglorieis de vossa
justiça; é ela uma mentira feroz e estúpida.
Abandonais milhões de crianças aos estragos de uma educação viciosa e
imoral. A corrupção emurchece, à vossa vista, essas jovens plantas que
poderiam florescer para a virtude, e, vós as matais, quando, tornadas homens,
cometem os crimes que germinavam desde o berço em suas almas. E, no entanto,
que é que fabricais? Ladrões, para ter o prazer de enforcá-los.
Enquanto eu assim falava, o meu adversário preparava a réplica. Ele se
dispunha a seguir a pomposa dialética desses polemistas categóricos, que
repetem mais do que respondem e que fazem ponto de honra de uma discussão os
exercícios de memória.
Falastes muito bem, disse-me ele, sobretudo vós que sois estrangeiro e que não
podeis conhecer estas matérias senão de outiva. Eu vos darei melhores
esclarecimentos. Eis a ordem do meu discurso: antes de tudo, recapitularei
tudo o que vos disse; em. seguida realçarei os erros a que vos induziu a
ignorância dos fatos; finalmente, refutarei os vossos argumentos e pulverizá-los-ei.
Começo, pois, como o prometi. Tendes, se não me engano, enumerado quatro...
- Eu vos detenho aí, interrompeu bruscamente o cardeal, o exórdio me faz
temer que o discurso seja um pouco longo. Nós vos pouparemos hoje desta
fadiga. Mas não vos dou. por desembaraçado dessa arenga; guardai-a
integralmente para a próxima entrevista que tiverdes com vosso adversário.
Desejo que estejam ambos aqui, amanhã, a menos que vós, ou Rafael, estejais
na impossibilidade de vir. Enquanto isso, meu caro Rafael, far-me-íeis o obséquio
de explicar por que o roubo não merece a morte, e por que outra pena a
substituireis de forma a garantir melhor a segurança pública. Como não
pensais que se deva tolerar o roubo, e se a forca não é hoje uma barreira
para o banditismo, que terror exercereis, sobre os celerados quando eles
tiverem a certeza de não perder a vida? Que sanção bastante forte dareis à
lei? Uma pena mais branda não seria um prêmio de incitamento ao crime?
Minha convicção íntima, eminência, é que é injusto matar-se um homem por
ter tirado dinheiro de outrem, desde que a sociedade humana não pode ser
organizada de modo a garantir para cada um uma igual porção de bens.
Podem objetar-me, sem dúvida, que a sociedade, tirando-lhe a vida, vinga a
justiça e as leis, e não pune somente uma miserável subtração de
dinheiro. Responderei com este axioma: Summum jus, summa injuria, O supremo
direito é uma injustiça suprema. A vontade do legislador não é tão infalível
e absoluta que seja necessário desembainhar a espada à menor infração aos
seus decretos. A lei não é tão rígida e estóica que coloque, no mesmo nível,
todos os delitos e crimes, e não estabeleça nenhuma diferença entre matar
um homem e roubá-lo. Se a eqüidade não é uma palavra cã, há entre essas
duas ações um abismo.
E como! Deus proibiu o assassínio e nós, nós matamos tão facilmente por
causa do furto de algumas moedas!
Alguém dirá, talvez: Deus, com esse mandamento, tirou o poder de matar ao
homem privado, mas não ao magistrado que condena aplicando as leis da
sociedade.
Mas se é assim, quem impede os homens de fazer outras leis igualmente contrárias
aos preceitos divinos, e de legalizar o estupro, o adultério e o perjúrio.?
Como!... Deus nos proibiu tirar a vida não somente ao nosso próximo mas também
a nós mesmos; e nós poderíamos legitimamente convencionar em degolarmo-nos
em virtude de algumas sentenças jurídicas! E esta convenção atroz
colocaria juizes e carrascos por cima da lei divina, dando-lhes o direito de
mandar à morte os que o código penal condena a morrer!
Resultaria disso esta conseqüência monstruosa: a justiça divina tem
necessidade de ser legalizada e autorizada pela justiça humana; e que, em
todos os casos possíveis, cabe ao homem determinar quando deve obedecer ou não
aos mandamentos de Deus.
A própria lei de Moisés, lei de terror e vingança, feita para escravos e
homens embrutecidos, não punia de morte o simples roubo. Evitemos pensar que,
sob a lei cristã, lei de perdão e caridade, em que Deus ordena como pai, nós
temos o direito de ser mais desumanos, e de derramar, sob qualquer pretexto, o
sangue de nosso irmão.
Tais são os motivos que me persuadem que é injusto aplicar ao ladrão o
mesmo castigo que ao assassino. Poucas palavras vos farão compreender como
esta penalidade é absurda em si mesma e como é perigosa à segurança pública.
O celerado vê que não há menos a temer furtando do que assassinando; então,
ele mata aquele a quem apenas despojara; e mata-o para a sua própria segurança.
Assim agindo, ele se descarta do seu principal denunciador, e tem maior
probabilidade de esconder o crime. Eis o belo efeito desta justiça implacável:
aterrorizando o ladrão com a expectativa da forca, fez dele um assassino!
Chego, agora, à solução deste problema tão controvertido: Qual é o melhor
sistema penitenciário?
Na minha opinião, era mais fácil encontrar o melhor do que o pior.
Primeiramente, todos vós conheceis a penalidade adotada pelos romanos, povo tão
adiantado na ciência de governar. Eles condenavam os grandes criminosos à
escravatura perpétua, aos trabalhos forçados nas pedreiras ou nas minas.
Esse modo de repressão parece-me conciliar a justiça com a utilidade pública.
Entretanto, para vos dizer o meu modo de pensar sobre esse ponto, não conheço
nada de comparável ao que ví nos polileritas, nação dependente da Pérsia.
É aquele um país bastante povoado, e `às suas instituições não falta
sabedoria. Além do tributo anual que pagam ao rei da Pérsia, gozam de
liberdade e se governam por suas próprias leis. Longe do mar, cercados de
montanhas, se satisfazem com os produtos do seu solo feliz e fértil; vão
raramente a outros lugares e raramente outros vêm ao seu país. Fiéis aos
princípios e costumes dos seus antepassados, não procuram nunca estender as
suas fronteiras, e nada têm a temer de fora. Suas montanhas, e o tributo que
pagam, anualmente, ao monarca, põem-nos ao abrigo de uma invasão. Vivem
comodamente na paz e na abundância, sem exército e sem nobreza, ocupados com
sua felicidade e despreocupados de qualquer vã celebridade; pois, seu nome,
desconhecido no resto da terra, talvez o seja mesmo aos seus vizinhos.
Quando ali um indivíduo é apanhado em furto, obrigam-no, primeiro, a
restituir o objeto roubado ao proprietário e não ao príncipe, como é de
uso em outras partes. Os polileritas julgam que o furto não destrói o
direito de propriedade. Se o objeto foi danificado ou perdido, o valor dele é
descontado dos bens do autor do furto, deixando-se o que sobrar do desconto à
sua mulher e filhos. Ele é condenado aos trabalhos públicos; e se o furto não
é acompanhado de circunstâncias agravantes, o seu autor não é jogado no
calabouço nem posto a ferros; trabalha, o corpo livre, e sem entraves.
Para forçar os preguiçosos e os rebeldes, empregam-se os castigos corporais
de preferência às correntes. Os que cumprem bem o seu dever não sofrem
nenhum mau trato. De tarde se faz a chamada nominal dos condenados,
encerrando-os nas celas onde passam a noite. Aliás, a única pena que podem
vir a sofrer é a continuidade do trabalho; porque lhes são fornecidas todas
as coisas necessárias à vida; uma vez que trabalham para a sociedade, é a
sociedade que os mantém.
Os costumes, nesse ponto, variam segundo as localidades. Em certas províncias,
o produto das esmolas e das coletas é reservado aos condenados; este recurso,
precário por si mesmo, é, na rea1idade, o mais fecundo devido à humanidade
dos habitantes. Em outros países destina-se, para este fim, uma parte das
rendas públicas, ou então um tributo particular e pessoal.
Há mesmo regiões em que os condenados não são empregados nos trabalhos públicos.
Todo indivíduo que tem necessidade de operários, ou de carregadores, vem
alugá-los por dia, pagando-lhes salário pouco menor que o de um homem livre.
A lei dá ao patrão o direito de bater nos preguiçosos. Dessa forma, os
condenados não faltam nunca ao trabalho; ganham roupas e alimentação cada
dia contribuem com alguma coisa para o Tesouro.
Eles são reconhecíveis facilmente pela cor de seu uniforme, igual para todos
e só a eles reservado. A cabeça não é raspada, exceto um pouco acima das
orelhas, uma das quais é mutilada. Os amigos podem lhes dar de beber, comer,
e uma roupa. Mas um presente em dinheiro acarreta a morte tanto do que dá
como do que recebe. Um homem livre não pode, sob nenhum pretexto, receber
dinheiro de um escravo (é assim que são chamados os condenados). O escravo não
pode tocar em armas. Estes dois últimos crimes são punidos de morte.
Cada província marca seus escravos com um sinal particular e característico.
Fazê-lo desaparecer é para eles um crime capital, assim como transpor a
fronteira e falar com os escravos de uma outra província. O simples projeto
de fugir não é menos perigoso que a própria fuga. Por ter-se envolvido em
semelhante trama o escravo perde a vida e o homem livre, a liberdade. Ainda
mais, a lei confere recompensas ao delator; dinheiro, se este é livre;
liberdade, se escravo; impunidade, se cúmplice, a fim de que o malfeitor não
se sinta mais seguro perseverando num mau desígnio, do que arrependendo-se.
Eis aí as, penalidades correspondentes ao roubo entre os polileritas. Não é
difícil divisar nelas uma grande humanidade aliada a um grande senso utilitário.
Se a lei castiga, é para matar o crime, conservando o homem. Trata o
condenado com tanta benignidade e justiça, que o força a se tornar honesto e
a reparar, durante o resto de sua vida, todo o mal que fez à sociedade.
Também é extremamente raro que os condenados voltem aos seus antigos hábitos.
Os cidadãos não têm nenhum medo deles, e é mesmo comum, entre os que
empreendem qualquer viagem, escolher seus guias entre os escravos que são
trocados de uma província a outra. Na verdade, o que Se pode temer? A lei
tira ao escravo a possibilidade, e até o pensamento, do roubo; suas mãos estão
desarmadas; o dinheiro é para ele um crime capital; se aprisionado, a morte
é bem próxima e a fuga impossível. Como quereis que um homem vestido
diferentemente dos outros possa dissimular a sua fuga? E se fugisse
completamente nu? Mas mesmo assim a sua orelha meio cortada o trairia.
É impossível igualmente que os escravos possam urdir uma conspiração
contra o Estado. A fim de assegurar à revolta alguma probabilidade de êxito,
os cabeças teriam necessidade de incitar e arrastar para o seu lado os
escravos de diversas províncias. Ora, isto é impraticável. Uma conspiração
não é fácil a pessoas que, sob pena de morte, não se podem reunir, se
falar, dar ou retribuir uma saudação. Ousariam mesmo confiar seu projeto aos
camaradas que conhecem o perigo do silêncio e a enorme vantagem da denúncia?
Por outro lado, todos alimentam a esperança de recobrar, um dia, a liberdade,
mostrando-se submissos e resignados, dando, por seu bom comportamento,
garantias para o futuro; aliás, não há um ano sequer em que grande número
deles, transformados em boas pessoas, não seja reabitado e emancipado.
Por que, acrescentei então não se estabeleceria na Inglaterra uma penalidade
semelhante? Isso valeria infinitamente mais do que esta justiça que desperta
tão exaltado entusiasmo ao meu sábio antagonista.
- Um semelhante estado de coisas, respondeu este, não poderia jamais se
estabelecer na Inglaterra, sem acarretar a dissolução e a ruína do império.
Depois sacudiu a cabeça, mordeu os lábios, e calou.
Todos os ouvintes aplaudiram com arrebatamento esta magnífica sentença, até
que o cardeal fez a seguinte reflexão:
Não somos profetas para saber, antes de experimentar, se a legislação
polilerita convém ou não ao nosso país. Todavia, parece-me que depois do
pronunciamento da sentença de morte, o príncipe poderia decretar o sursis, a
fim de experimentar este novo sistema de repressão, abolindo, ao mesmo tempo,
os privilégios dos lugares de asilo. Se a experiência desse bons resultados,
adotaríamos o sistema; se não, que os condenados continuem a ser levados ao
suplício. Essa maneira de proceder apenas suspende o curso da justiça e não
oferece nenhum perigo no intervalo. Irei mesmo além, creio que seria muito útil
tomar medidas igualmente moderadas e sábias para reprimir e acabar com a
vagabundagem. Temos acumulado leis sobre leis contra este flagelo e o mal é
hoje pior do que nunca.
Apenas terminara o cardeal, os louvores mais exagerados acolheram as opiniões
expendidas por Sua Eminência, as quais não tinham encontrado senão desprezo
e desdém quando sozinho as sustentara. O incenso das louvaminhas envolvia
particularmente as idéias do prelado referentes à vagabundagem.
Não sei se seria preferível suprimir o resto da conversação; coisas bem
ridículas lá foram ditas. Entretanto, vou relatá-las; não eram de todo
ruins e se relacionam com o assunto.
Havia na mesa um desses parasitas, cuja honra provém do ofício de fazer o
louco. A esse respeito a semelhança era tão perfeita, que poderia ser
facilmente tomada a sério. Seus gracejos eram tão estúpidos e insípidos
que o riso era provocado mais a miúdo pela própria pessoa do que por suas
graças. Mas, de vez em quando escapavam-lhe algumas palavras bastante razoáveis.
Um dos convivas observou que eu procurava remediar a sorte dos ladrões e o
cardeal a dos vagabundos; mas que existiam ainda duas classes de infelizes às
quais a sociedade devia assegurar a existência, porque são incapazes de
trabalhar para viver: os doentes e os velhos.
Deixai-me falar, disse o bufão, possuo a este respeito um plano soberbo. Para
falar francamente, grande é o meu desejo de poupar-me ao espetáculo desses
miseráveis e enclausurá-los longe de todos os olhos. eles me fatigam com as
suas lamúrias, suspiros e lamentáveis súplicas, embora deva convir que esta
lúgubre música ainda não conseguiu arrancar-me um cêntimo; aliás, sempre
acontece comigo uma destas duas coisas: ou quando posso dar não o quero, ou
quando quero não o posso. Também agora já se mostram bastante avisados:
quando me vêm passar se calam para não perder tempo. Sabem que de mim há
tanto a esperar quanto de um padre.
Eis então o decreto que sugiro:
Todos os mendigos velhos e doentes serão distribuídos e classificados como
se segue: os homens entrarão para os conventos dos beneditinos na qualidade
de irmãos leigos; as mulheres tornar-se-ão religiosas. Tal é o meu bom
desejo.
O cardeal sorriu desse repente, aprovou-o como um rasgo de espírito, enquanto
os demais ouvintes o tomaram como uma sentença séria e grave. Causou
particular bom humor a um irmão teólogo que ali se achava. Este reverendo,
desfranzindo um pouco a carrancuda fisionomia, riu-se maliciosamente, à custa
dos padres e frades, e depois, dirigindo-se ao bufo, falou:
Não tereis suprimido a mendicidade, se não provirdes à subsistência de nós
mesmos, frades mendicantes.
- Sua eminência, o cardeal, proveu perfeitamente, quando disse que se devia
encerrar os vagabundos e faze-los trabalhar. Ora, os freis mendicantes são os
maiores vagabundos do mundo.
A vivacidade da resposta, todos os olhos se fixaram sobre o cardeal, que, no
entanto, não pareceu se formalizar; o epigrama foi então ruidosamente
aplaudido. Quanto ao frei reverendo, ficou petrificado. O dardo satírico que
acabava de lhe ser lançado ao rosto, acendeu subitamente a sua cólera; e,
vermelho como fogo, desatou numa torrente de injúrias, tratando o engraçado
de velhaco, caluniador, tagarela, ameaçando-o de danação, tudo temperado
com as ameaças mais aterradoras da Santa Escritura.
Então o nosso bufão gracejou com seriedade, e, levando a melhor, replicou:
Não nos zanguemos, caríssimo irmão. Está escrito:
Com paciência dominareis as vossas almas.
O teólogo recomeçou, no mesmo instante, e foram estas as suas expressões:
Não me agasto, pícaro; ou pelo menos não peco; porque o salmista diz: --
Encolerizai-vos mas não pequeis.
O cardeal, numa admoestação cheia de doçura, convida, então, o frade a
moderar os seus transportes.
Não, monsenhor, exclamou, não, não posso Calar-me, não o devo. É um zelo
divino que me exalta, e os homens de Deus tiveram destas santas cóleras. Está
escrito: O ZELO DE TUA CASA ME CONSOME. Não se ouve cantar nas igrejas:
AQUELES QUE ZOMBAVAM DE ELISEU ENQUANTO ELE SUBIA PARA A CASA DE DEUS SOFRERAM
A CÓLERA DO CALVO? A mesma punição castigará talvez esse gracejador, esse
bufão, esse devasso.
- Sem dúvida, disse o cardeal, a vossa intenção é boa. Mas. me parece que
procederíeis mais sabiamente, senão mais santamente, evitando
comprometer-vos com um louco numa querela ridícula.
- Monsenhor, meu comportamento não poderia ser mais sábio. Salomão, o mais
sábio dos homens, disse: RESPONDEI AO LOUCO CONFORME A SUA LOUCURA. Pois bem,
é isso o que faço. Mostro-lhe o abismo onde vai se precipitar, se não se
cuida. Aqueles que riam de Eliseu eram em grande número, e foram todos
punidos por terem zombado de um único calvo. Qual será, pois, o castigo do
único homem que ridiculariza um tão grande número de frades, entre os quais
há tantos calvos? Mas o que deve, sobretudo, fazê-lo tremer é que temos
uma. bula do papa que excomunga aqueles que escarnecem de nós.
O cardeal, vendo que o caso não acabava, despediu, com um aceno, o bufão
parasita, e mudou prudentemente o curso da conversação. Logo depois
levantou-se da mesa para dar audiência a seus vassalos, e despediu todos os
convivas.
Caro Morus, fatiguei-vos com a narrativa de uma história bastante longa.
Estaria verdadeiramente envergonhado de tê-la prolongado tanto se não fosse
por ter cedido às vossas instâncias, e se a atenção que prestastes aos
detalhes não me tivesse obrigado a não omitir nenhum. Poderia ter abreviado,
mas quis esclarecer-vos sobre o espírito e o caráter dos convivas. Enquanto,
sozinho, desenvolvi minhas idéias, foi com o desprezo geral que foram
acolhidas as minhas palavras; mas assim que o cardeal me trouxe o seu beneplácito
o elogio substituiu o desprezo. Suas cortesanices iam ao ponto de achar
judiciosas e sublimes as bufonerias de um bobo, que o cardeal tolerava como
uma brincadeira frívola.
Julgai ainda que as pessoas da corte levariam em grande consideração minha
pessoa e meus conselhos?.
Respondi a Rafael: Vossa narrativa fez-me experimentar uma grande alegria. Ela
reunia o interesse e a atração a uma profunda sabedoria. Escutando-vos, eu
me acreditava na Inglaterra; porque fui educado desde criança no palácio
desse bom cardeal, e sua lembrança me reconduz aos primeiros anos da vida. Já
vos tinha dado a minha amizade, mas todo o bem que dissestes à memória do
piedoso arcebispo, torna-vos ainda mais caro ao meu coração. De resto,
persisto na mesma opinião a vosso respeito, estando persuadido de que vossos
conselhos seriam de uma alta utilidade pública, se quisésseis vencer o
horror que vos inspiram os reis e as cortes. E não é um dever para vós,
como para todo bom cidadão, sacrificar ao interesse geral as suas ojerizas
particulares? Platão disse: A humanidade. será feliz um dia, quando os filósofos
forem reis, ou quando os reis forem filósofos. Ai! Como está longe de nós
esta felicidade quando os filósofos nem ao menos se dignam assistir os reis
com seus conselhos!
Caluniais os sábios, replicou-me Rafael; eles não são bastante egoístas
para esconder a verdade; muitos a têm revelado em seus escritos; e se os
senhores do mundo estivessem preparados para receber a luz, poderiam ver e
compreender. Infelizmente cega-os uma venda fatal, a venda dos preconceitos e
dos falsos princípios, em que se formaram e dos quais foram inficionados já
na infância. Platão não ignorava isso; sabia, como nós, que os reis nunca
seguiam os conselhos dos filósofos, se eles próprios já não o eram também.
Platão teve disso a triste experiência na corte de Diniz, o Tirano. (2).
Suponhamos pois que eu seja ministro de um rei. Proponho-lhe os decretos mais
salutares; esforço-me por arrancar de seu coração e de seu império todos
os germes do mal. Acreditais que não me expulsará da corte ou que não me
exporá ao riso dos cortesãos?
Suponhamos, por exemplo, que eu seja ministro do rei de França. Eis-me
sentado à mesa do Conselho, ao passo que, no fundo do palácio, o monarca
preside, em pessoa, as deliberações dos mais judiciosos políticos do reino.
Essas nobres e poderosas cabeças estão procurando laboriosamente por quais
maquinações e intrigas, o rei, seu senhor, conservará o ducado de Milanês,
recobrará o reino de Nápoles, sempre a fugir, e como, em seguida, destruirá
a. república de Veneza e submeterá a Itália toda; finalmente, como reunirá
à sua coroa a Flandres, o Brabante, a Borgonha inteira, e outras nações que
sua ambição já invadiu e conquistou há muito tempo.
Este propõe concluir com os venezianos um tratado que durará enquanto não
houver interesse em rompê-lo. Para melhor dissipar suas desconfianças,
acrescenta o mesmo, comunicar-lhes-emos as primeiras palavras do enigma;
podemos mesmo deixar com eles uma parte do saque; fácil nos será retomá-la
depois da execução completa do plano.
Aquele aconselha aliciar alemães; um terceiro, que se atraiam os suíços com
dinheiro. Um outro pensa que se deve tornar propício o deus imperial,
sacrificando-lhe ouro em expiação; aquele julga oportuno entrar em
entendimentos com o rei de Aragão, abandonando-lhe, como garantia de paz, o
reino da Navarra, que não lhe pertence. Outro ainda quer engodar o príncipe
de Castela com a esperança de uma aliança, e manter, em sua corte, algumas
inteligências, pagando gordas pensões a alguns grandes personagens.
Depois, vem a questão difícil e insolúvel, a questão da Inglaterra,
verdadeiro nó górdio político. A fim de se prevenir contra qualquer
eventualidade, tomam-se as seguintes resoluções:
Negociar com essa potência as condições de paz, e apertar mais
estreitamente os laços de uma união sempre vacilante; dar-lhe, publicamente,
o nome de melhor amiga da França, e, no fundo, dela desconfiar como de seu
inimigo mais poderoso.
Manter os escoceses permanentemente de guarda, como sentinelas avançadas,
atentas a tudo, e, ao primeiro sintoma de movimento na Inglaterra, lançá-los
imediatamente como um exército de vanguarda.
Manter secretamente (por causa dos tratados que se opõem a uma proteção
aberta) algum grande personagem exilado, animando-o a fazer valer os seus
direitos à coroa da Inglaterra, e, assim, pôr em cheque o príncipe reinante
de quem se receia os desígnios...
Então, se, no meio dessa assembléia real onde se agitam tão vastos
interesses, na presença desses profundos homens de Estado, a concluir, unânimes,
pela guerra, se eu, homem do nada, me levantasse para transtornar suas combinações
e cálculos, e dissesse:
Deixemos a Itália em sossego e fiquemos na França; a França já é grande
demais para ser bem administrada por um só homem e o rei não deve cuidar em
aumentá-la. Escutai, senhores, o que aconteceu aos acorianos numa situação
semelhante, e a decisão que então tomaram:
Esta nação, situada em frente à ilha da Utopia, nas margens do Euronston,
fez, outrora, a guerra, porque seu rei pretendia a sucessão de um reinado
vizinho, em virtude de antiga aliança. O reino vizinho foi subjugado, mas
cedo se reconheceu que a conservação da conquista era mais difícil e
onerosa do que a própria conquista.
A todo momento havia revoltas internas a reprimir, ou tropas a enviar para o
país conquistado; a cada instante era-se forçado a combater pró ou contra
os novos súditos. Em conseqüência, o exército tinha que ser mantido de pé,
e os cidadãos eram esmagados pelos impostos; o dinheiro fugia para fora; e,
para lisonjear a vaidade de um só homem, o sangue corria em borbotões. Os
curtos instantes de paz não eram menos desastrosos do que a guerra. A dissolução
das tropas lançara a corrupção nos costumes; o soldado voltava ao lar com o
amor da pilhagem e a audácia do assassinato, resultado adquirido no trato da
violência nos campos de batalha.
Essas desordens, esse desprezo geral pelas leis, provinham de que o príncipe,
ao dividir sua atenção e cuidados entre dois reinos, não podia bem
administrar nem um nem outro. Os acorianos quiseram pôr um termo a tantos
males; reuniram-se em conselho nacional, e, polidamente, deram ao monarca a
escolher entre os dois Estados, declarando-lhe que não podia mais carregar
duas coroas, e que era absurdo que um grande povo. fosse governado por uma
metade de rei, quando ninguém desejava um almocreve que estivesse ao mesmo
tempo a serviço de outro patrão.
Esse bom príncipe resolveu-se: cedeu o novo reino a um dos seus amigos, que
foi expulso dali logo depois, e contentou-se com seu antigo domínio.
Volto à minha hipótese. Se fosse mais longe ainda; se, dirigindo-me ao próprio
monarca, o fizesse ver que essa paixão de guerrear, que transtorna as nações,
depois de ter esgotado as finanças e arruinado o povo, poderia ocasionar à
França as conseqüências mais fatais; se lhe dissesse:
Senhor, aproveitai a paz que um feliz acaso vos concede, cultivai o reino de
vossos pais, fazei nele florescer a felicidade, a riqueza e a força; amai
vossos súditos, e que o amor deles faça a vossa alegria; vivei como pai no
meio deles e não comandai nunca como déspota; deixai em paz os outros
reinos; aquele que vos coube por herança é suficientemente grande para vós.
Dizei-me, caro Morus, com que espécie de bom ou mau humor seria acolhida
semelhante arenga?
- Com péssimo mau humor, respondi.
- E não é tudo, continuou Rafael; passamos em revista a política exterior
dos ministros de França; a glória era então o de que necessitava o seu
senhor ; agora é o dinheiro. Vejamos um instante os seus novos princípios de
governo e justiça.
Este, propõe elevar o valor da moeda quando se trate de reembolsar um empréstimo,
e de fazê-lo descer muito abaixo do par quando se trate de tornar a encher o
tesouro. Com esse duplo expediente, o príncipe poderá cobrir suas enormes dívidas,
e, sem trabalho, fazer uma grande colheita em recursos.
Aquele, aconselha simular uma guerra próxima. Este pretexto legitimará um
novo imposto. Depois da arrecadação do tributo extraordinário, o príncipe
fará subitamente a paz; ordenará a celebração desse feliz acontecimento
por meio de ações de graça nos templos e de todas as pompas das cerimônias
religiosas. A. nação ficará deslumbrada, e o reconhecimento público elevará
até aos céus as virtudes de um rei tão humanamente avaro do sangue de seus
súditos.
Um outro vem, e exuma velhas leis carcomidas pelas traças e caídas em desuso
pelo tempo. Como todo mundo ignora sua existência, todo mundo as transgride.
Restaurando, assim, as multas pecuniárias contidas nessas leis, criar-se-ia
uma fonte de renda lucrativa e até honrada, pois que se agiria em nome da
justiça.
Um terceiro pensa que não seria de menos proveito lançar, sob pena de
pesadas multas, uma, multidão de novas proibições, a maioria delas em benefício
do povo. O rei, mediante soma considerável, dispensaria aqueles cujos
interesses privados fossem comprometidos por estas proibições. Dessa maneira
o rei ver-se-ia cumulado das bênçãos do povo e faria dupla receita,
recebendo, ao mesmo tempo, dinheiro dos contraventores e dos privilegiados. O
melhor do negócio é que quanto mais exorbitante fosse o preço das dispensas
tanto mais Sua Majestade ganharia em estima e consideração.
Vejam, diriam, como este bom príncipe violenta seu coração ao vender tão
caro o direito de prejudicar o povo.
Outro ainda, enfim, aconselha ao monarca ter à disposição juizes sempre
dispostos a sustentar, em todas as ocasiões, os direitos. da coroa. Vossa
Majestade, acrescenta ele, deveria chamá-los à corte, e persuadi-los a
discutir, perante a vossa augusta pessoa, os próprios negócios reais. Por
pior que seja uma causa, haverá sempre um juiz para julgá-la boa, seja pela
mania da contradição, seja por amor da novidade e do paradoxo, seja para
agradar o soberano. Então, uma discussão se trava; a multiplicidade e o
conflito de opiniões embrulham uma coisa de si mesma muito clara, e a verdade
é posta em dúvida. Vossa Majestade aproveita o momento para resolver a
dificuldade, interpretando o direito em proveito próprio. Os dissidentes se
submetem à opinião real por timidez ou por temor, e o julgamento é dado,
segundo as formalidades, com franqueza e sem escrúpulo. Faltarão jamais ao
juiz, que dá uma sentença a favor do príncipe, os necessários consideranda?
Não há o texto da lei, a liberdade de interpretação, e, acima das leis,
para um juiz religioso e fiel, a prerrogativa real?
Ouvi os axiomas de moral política proclamados unanimemente pelos membros do
nobre conselho:
O rei que sustenta um exército nunca tem dinheiro bastante.
O rei não poderia fazer o mal mesmo que o quisesse.
O rei é o proprietário universal e absoluto dos bens e pessoas de todos os
seus súditos; nada possuem senão como usufrutuários pelas boas graças do
rei.
A pobreza do povo é o baluarte da monarquia.
A riqueza e a liberdade conduzem à insubordinação e ao desprezo da
autoridade; o homem livre e rico suporta com impaciência um governo injusto e
despótico.
A indigência e a miséria degradam os caracteres, embrutecem as almas,
habituam-nas ao sofrimento e à escravidão, comprimindo-as a ponto de lhes
tirar a energia necessária para sacudir o jugo.
Se outra vez me erguesse, e falasse assim a esses poderosos senhores:
Vossos conselhos são infames, vergonhosos para o rei, funestos para o povo. A
honra de vosso senhor e a sua felicidade consistem na riqueza de seus súditos
mais ainda do que na sua própria. Os homens fizeram os reis para os homens e
não para os reis; colocaram chefes à sua frente para que pudessem viver
comodamente ao abrigo das violências e dos ultrajes; o dever mais sagrado do
príncipe é velar pela felicidade do povo antes de velar pela sua própria;
como um pastor fiel, deve dedicar-se a seu rebanho, e conduzi-lo às pastagens
mais férteis.
Sustentar que a miséria pública é a melhor salvaguarda da monarquia, é
sustentar um erro grosseiro e evidente; onde se vêm mais querelas e rixas do
que entre os mendigos?
Qual o homem que mais deseja uma revolução? Não será aquele cuja existência
atual é miserável? Qual o homem que revelará maior audácia em subverter o
Estado? Não será aquele que com isso só pode ganhar por nada ter a perder?
Um rei que provocasse o ódio e o desprezo dos cidadãos e cujo governo não
pudesse se manter senão pelas vexações, pela pilhagem, pelo confisco e pela
miséria universal, deveria descer do trono e depor o poder supremo.
Empregando estes meios tirânicos, talvez pudesse conservar o nome de rei, mas
de rei não teria mais nem o ânimo nem a majestade. A dignidade real não
consiste em reinar sobre mendigos, mas sobre homens ricos e felizes.
Fabricius, (3) esta grande alma,
estava todo penetrado desse sublime sentimento quando respondeu: Prefiro
governar ricos do que eu mesmo ser rico. E, de fato, nadar em delícias,
saciar-se de voluptuosidades em meio às dores e gemidos de um povo, não é
manter um reino e sim uma cadeia.
O médico que só sabe curar as moléstias de seus clientes dando-lhes moléstias
mais graves, passa por ignaro e imbecil; confessai, pois, - ó vós que não
sabeis governar senão arrebatando aos cidadãos a subsistência e as
comodidades da vida! - confessai que sois indignos e incapazes de dirigir
homens livres! Ou então corrigi vossa ignorância, vosso orgulho e vossa
preguiça: é isso o que excita o ódio e o desprezo pelo soberano. Vivei de
vosso patrimônio, segundo a justiça; medi vossas despesas na proporção de
vossas rendas; detei as torrentes do vício; criai instituições de benemerência,
que previnam o mal e o estiolem no germe, ao em vez de inventar suplícios
contra os infelizes que uma legislação absurda e bárbara impele ao crime e
à morte
Não ressusciteis leis carunchosas caídas no olvido e no esquecimento, lançando
sobre os vossos súditos toda a sorte de obstáculos. Não eleveis o preço de
um delito a uma taxa que o juiz condenaria, como injusta e vergonhosa, entre
simples particulares. Tende sempre diante dos olhos este belo hábito dos
macarianos.
Nesta nação, vizinha da Utopia, no dia em que o rei toma posse do império,
oferece sacrifícios à divindade, comprometendo-se, por um juramento sagrado,
a não ter nunca em seus cofres mais do que mil libras de ouro ou a soma em
dinheiro de valor equivalente. Este uso foi introduzido por um príncipe que
tinha mais desejo de trabalhar pela prosperidade do Estado, do que de acumular
mi1bões. Quis desse modo pôr um freio à avareza dos seus sucessores e
impedi-los de enriquecer pelo empobrecimento de seus súditos. Mil libras de
ouro lhe pareceram uma quantia suficiente para um caso de guerra civil ou
estrangeira, mas demasiado fraca para apoderar-se da fortuna da nação. Foi
principalmente este último motivo que o induziu a decretar esta lei; mas
visava ele ainda duas outras finalidades: em primeiro lugar, ter em reserva,
para os tempos de crise, a quantidade de dinheiro necessária à circulação
e às transações quotidianas dos cidadãos; em segundo lugar, limitar as
cifras dos impostos e da lista civil no intuito de impedir que o príncipe
empregasse o excesso da dotação legal em semear a corrupção e cometer
injustiças. Um rei como este é o terror dos maus e a veneração das pessoas
de bem.
Mas, dizei-me, caro Morus, pregar uma tal moral a homens que por interesse e
por sistema se orientam por princípios diametralmente opostos, não é contar
histórias a surdos?
- E a surdos como portas, respondí. Mas isto não me espanta., e, para vos
revelar o meu modo de pensar, é perfeitamente inútil dar conselhos quando se
tem a certeza de que serão repelidos, quer na forma, quer no fundo. Ora, os
ministros e os políticos de hoje, estão impregnados de erros e preconceitos;
como quereis bruscamente modificar suas crenças e fazer penetrar, de chofre,
em suas cabeças e em seu coração, a verdade e a justiça? Esta filosofia
escolástica está no seu lugar em uma conversação familiar, entre amigos;
está fora de propósito nos conselhos dos reis, onde grandes coisas são
tratadas com grande autoridade e em face do poder supremo.
- Era isto o que vos dizia ainda agora, retrucou Rafael, a filosofia não tem
acesso na corte dos príncipes.
- Dizeis a verdade se vos referis a esta filosofia de escola, que ataca de
frente, e cegamente, os tempos, os lugares, e as pessoas. Mas, existe uma
filosofia menos selvagem; esta conhece o teatro em que atua, e, na peça que
deve representar, desempenha seu papel com decência e harmonia. É esta a que
deveis empregar.
Suponhamos que, durante a representação de uma comédia de Plauto, no
momento em que os escravos estão de bom humor, irrompeis em cena, em trajes
de filósofo, declamando a passagem de Otávio, em que Sêneca repreende e
prega moral a Nero; duvido muito que fôsseis aplaudido. Certamente, teríeis
agido com mais acerto se vos tivésseis limitado ao papel de um personagem
mudo do que oferecer ao público este drama tragicômico. Um monstruoso amálgama
destes estragaria todo o espetáculo, mesmo que a vossa citação valesse cem
vezes mais do que a peça. Um bom ator pôe todo seu talento no papel que vai
representar, qualquer que ele seja; e não perturba o conjunto, porque lhe
ocorre à fantasia declamar uma tirada magnífica e pomposa.
Da mesma maneira convém agir quando se delibera acerca dos negócios do
Estado, no seio do conselho real; Se não se pode desarraigar de uma só vez
as máximas perversas, nem abolir os costumes imorais, não é isto razão
para se abandonar a causa pública. O piloto não abandona o navio diante da
tempestade porque não pode domar o vento.
Falais a homens imbuídos de princípios contrários aos vossos; que caso
poderão fazer de vossas palavras, se lhes atirais à face a contradita e o
desmentido? Segui o caminho oblíquo - ele vos conduzirá mais seguramente à
meta. Aprendei a dizer a verdade com propriedade e a propósito; e, se vossos
esforços não puderem servir para efetuar o bem, que sirvam ao menos para
diminuir a intensidade do mal; porque tudo só será bom e perfeito, quando os
próprios homens forem bons e perfeitos; e até lá, os séculos passarão.
Rafael respondeu:
Quereis saber o que me sucederia se assim procedesse? Ao querer curar a
loucura dos outros, acabaria demente também. Mentiria, se falasse doutra
maneira da que vos falei. A mentira é talvez permitida a certos filósofos,
mas não está em minha natureza.. Sei que minha linguagem parecerá dura e
severa aos conselheiros do rei; apesar disso, não vejo por que sua novidade
seja de tal modo estranha que toque ao absurdo. Se me referisse às teorias da
república de Platão, ou aos usos atualmente em vigor entre os utopianos,
coisas melhores e infinitamente superiores às nossas idéias e costumes, então,
poder-se-ia crer que eu vinha de outro mundo, porque aqui o direito de possuir
de seu pertence a cada um, enquanto que lá todos os bens são comuns. Mas, o
que disse eu que não fosse conveniente e mesmo necessário de se divulgar.
Minha moral mostra o perigo e dele salva o, homem. ponderado; não fere senão
o insensato que se atira de olhos fechados ao abismo.
Há covardia ou má fé em calar as verdades que condenam a perversidade
humana, sob o pretexto de que serão escarnecidas como novidades absurdas ou
quimeras impraticáveis. De outra forma, seria necessário deitar um véu
sobre o Evangelho e dissimular aos cristãos a doutrina de Jesus. Mas Jesus
proibia a seus apóstolos o silêncio e o mistério; repetia-lhes sempre: O
que vos digo em voz baixa e ao ouvido, pregai pôr toda parte, em voz alta e
às claras. Ora, a moral de Cristo está muito mais em contradição aos
costumes deste mundo, do que os nossos discursos.
Os Pregadores, homens sagazes, seguiram o caminho oblíquo de que me falastes
há pouco; vendo que repugnava aos homens acomodar seus maus costumes à
doutrina cristã, torceram o Evangelho, como se fosse uma lei de chumbo, para
modelá-lo segundo os maus costumes dos homens. Onde os conduziu esta hábil
manobra? A dar ao vício a calma e a segurança da virtude.
Quanto a mim, não obteria melhor resultado nos conselhos dos príncipes,
porque, ou minha opinião é contrária à opinião geral, e, nesse caso, não
seria tomada em consideração, ou coincide com a opinião geral, e então,
deliro também com os loucos, segundo a expressão de Micion, a personagem de
Terêncio. Assim, não vejo aonde pode levar o vosso caminho retorcido.
Dizeis: Quando não se pode atingir a perfeição, deve-se, ao menos, atenuar
o mal. Mas aqui, a dissimulação é impossível e a conivência um crime,
pois se trata de aprovar as propostas mais execráveis, de votar decretos mais
perigosos que a peste, e, neste caso, aprovar perfidamente deliberações
infames como essas, seria comportar-se tal qual um espião e um traidor.
Não há, pois, nenhuma maneira de ser útil ao Estado nessas altas regiões.
O ar que aí se respira corrompe a própria virtude. Os homens que vos cercam,
longe de corrigir-se com os vossos ensinamentos, vos depravam com seu contato
e pela inf1uência de sua perversão; e se conservais vossa alma pura e
incorruptível, servireis de manto às suas imoralidades e loucuras. Não há,
pois, esperança de transformar o mal em bem, trilhando o vosso caminho oblíquo,
aplicando os vossos meios indiretos.
Agora, caro Morus, vou revelar-vos o fundo de minha alma, e dizer-vos, os meus
pensamentos mais íntimos. Em toda a parte onde a propriedade for um direito
individual, onde todas as coisas se medirem pelo dinheiro, não se poderá
jamais organizar nem a justiça nem a prosperidade. social, a menos que
denomineis justa a sociedade em que o que há de melhor é a partilha dos
piores, e que considereis perfeitamente feliz o Estado no qual a fortuna pública
é a presa de um punhado de indivíduos insaciáveis de prazeres, enquanto a
massa é devorada pela miséria.
Também, quando comparo as instituições utopianas com as dos outros países,
não me canso de admirar a sabedoria e a humanidade de uma parte, e deplorar,
da outra, o desvario e a barbaria.
Na Utopia, as leis são pouco numerosas; a administração distribui
indistintamente seus benefícios por todas as classes de cidadãos. O mérito
é ali recompensado; e, ao mesmo tempo, a riqueza nacional é tão igualmente
repartida que cada um goza abundantemente de todas as comodidades da vida.
Alhures, o princípio do teu e do meu é consagrado por uma organização cujo
mecanismo é tão complicado quão vicioso. Há milhares de leis, e que ainda
não bastam, para que um indivíduo possa adquirir uma propriedade, defendê-la
e distinguí-la da propriedade de outrem. A prova é o número infinito de
processos que surgem todos os dias e não terminam nunca. Quando me entrego a
esses pensamentos, faço inteira justiça a Platão e não me admiro mais que
ele tenha desdenhado legislar para os povos que não aceitam a comunidade dos
bens. Esse grande gênio previra facilmente que o único meio de organizar a
felicidade pública, fora a aplicação do princípio da igualdade. Ora, a
igualdade é, creio, impossível num Estado em que a posse é particular e
absoluta; porque cada um se apoia em diversos títulos e direitos para atrair
para si tudo quanto possa, e a riqueza nacional, por maior que seja, acaba por
cair na posse de um reduzido número de indivíduos que deixam aos outros
apenas indigência e miséria.
Muitas vezes até a sorte do rico deveria caber ao pobre. Não há ricos
avaros, imorais, inúteis, e pobres simples, modestos, cujo engenho e trabalho
trazem proveito ao Estado mas não, o trazem a si mesmos?
Eis o que invencivelmente me persuade que o único meio de distribuir os bens
com igualdade e justiça, e de fazer a felicidade do gênero humano, é a
abolição da propriedade. Enquanto o direito de propriedade for o fundamento
do edifício social, a esse mais numerosa e mais estimável não terá por
quinhão senão miséria, tormentos e desesperos.
Sei que existem remédios que podem aliviar o mal; mas estes remédios são
impotentes para curá-lo. Por exemplo:
Decretar um máximo de posse individual em terras e dinheiro
Premunir-se por meio de severas leis contra, o despotismo e a anarquia.
Denunciar e castigar a ambição e a intriga. Não traficar as magistraturas.
Suprimir o fausto e a representação nos altos cargos, a fim de que o funcionário,
para sustentar sua posição, não se entregue à fraude e à rapina; ou, a
fim de que não seja obrigado a dar aos mais ricos os cargos que deveriam
caber aos mais capazes.
Estes meios, repito-o, são excelentes paliativos que podem adormecer a dor e
aliviar as chagas do corpo social; mas não espereis com isto devolver-lhe a
força e a saúde, enquanto cada um possuir solitariamente e absolutamente
seus bens; podeis cauterizar uma úlcera, mas inflamareis todas as outras;
curareis um doente, e matareis um homem são; porque o que acrescentais ao
haver de um indivíduo tirais ao de seu vizinho.
Disse eu, então, a Rafael:
Longe de compartilhar vossas convicções, penso, ao contrário, que o país
em que se estabelecesse a comunidade de bens seria o mais miserável de todos
os países. Com efeito, como produzir para as necessidades do consumo? Todo
mundo fugiria do trabalho e descansaria dos cuidados com sua existência sobre
o trabalho dos outros. E, mesmo que a miséria perseguisse os preguiçosos,
desde que a lei não mantém inviolavelmente, para e contra todos, a
propriedade de cada um a rebelião rugiria, sem cessar, esfomeada e ameaçadora,
e a matança ensangüentaria vossa república.
Que barreira oporíeis à anarquia? Vossos magistrados têm apenas uma
autoridade nominal; estão despidos, despojados de tudo que impõe o temor e o
respeito. Não chego nem mesmo a conceber a possibilidade de governo nesse
povo de niveladores que repele toda espécie de superioridade.
Não me espanto que penseis assim, replicou Rafael. Vossa imaginação não
poderia fazer a. menor idéia de uma tal república, ou dela tem apenas uma idéia
falsa. Se tivésseis estado na Utopia, se tivésseis assistido ao espetáculo
de suas instituições e de seus costumes, como eu, que lá passei cinco anos
de minha vida, e que não me decidi a sair senão para revelar esse novo mundo
ao antigo, confessaríeis que em nenhuma outra parte existe sociedade
perfeitamente organizada.
Pedro Gil disse então, dirigindo-se a Rafael:
- Não me persuadireis jamais que haja nesse novo mundo povos melhor constituídos
do que neste. A natureza não produz entre nós espíritos de têmpera
inferior. Temos, além disso, o exemplo de uma civilização mais antiga, e
uma série de descobertas, que o tempo fez brotar, para as necessidades ou
para o luxo da vida. Não me refiro às invenções nascidas do acaso, e que o
gênio mais sutil não teria podido imaginar.
- A questão da antigüidade, respondeu Rafael, vós a discutiríeis com mais
solidez se tivésseis lido as histórias desse novo mundo. Ora, segundo essas
histórias, lá houve cidades, antes que aqui houvesse homens. Pelo que se
refere às descobertas devidas ao gênio ou ao acaso, elas podem igualmente
surgir em todos os continentes. Admito que tenhamos sobre esses povos a
superioridade da inteligência; em compensação, eles nos deixam bem atrás
em matéria de atividade e engenho. Ides ter a prova:
Seus anais testemunham que não tinham jamais ouvido falar de nosso mundo,
antes de nossa chegada; somente, há aproximadamente mil e duzentos anos, um
navio impelido pela tempestade afundou em frente à ilha da Utopia. As ondas
jogaram à praia alguns egípcios e romanos, que, desde então, só com vida,
queriam deixar o país. Os utopianos tiraram desse acontecimento um partido
enorme; na escola dos náufragos aprenderam tudo que estes conheciam das ciências
e artes espalhadas no império romano. Mais tarde, esses primeiros germes se
desenvolveram, e o pouco que os utopianos tinham aprendido, levou-os a
descobrir o resto. Assim, um único ponto de contato com o mundo antigo bastou
para transmitir-lhes a indústria e o gênio.
É possível que depois desse naufrágio, a mesma sorte tenha levado alguns
dos nossos à Utopia; mas a lembrança disso está completamente apagada.
Talvez a posteridade também esqueça a minha estadia nesta ilha afortunada,
estadia esta que foi infinitamente preciosa para os seus habitantes, pois, por
este meio, puderam apropriar-se das mais belas invenções da Europa.
Mas para nós, quantos séculos nos serão precisos para aprender deles o que
há de perfeito em suas instituições? Eis o que lhes dá a superioridade do
bem-estar material e social, embora os igualemos em inteligência e riqueza:
essa atividade do espírito dirigida incessantemente para a pesquisa, o
aperfeiçoamento e a aplicação, das coisas úteis.
- Pois então, disse eu a Rafael, fazei-nos a descrição desta ilha
maravilhosa. Não suprimais nenhum detalhe, suplico-vos. Descrevei-nos os
campos, os rios, as cidades, os homens, os costumes, as instituições, as
leis, tudo o que pensais que desejamos saber, e, acreditai-me, esse desejo
abarca tudo que ignoramos.
- Com muito gosto, respondeu
Rafael; essas coisas estão sempre presentes à minha memória; mas a
narrativa exige tempo.
- Nesse caso, disse-lhe, vamos então jantar, primeiro; teremos depois todo o
tempo necessário.
- Perfeitamente, acrescentou
Rafael. Entramos então em casa para jantar, e depois voltamos ao jardim, onde
sentamo-nos no mesmo banco. Recomendei particularmente aos criados afastar os
importunos, pois havia associado minhas instâncias às de Pedro, para que
Rafael cumprisse sua promessa. Sentindo a nossa curiosidade, ávida e atenta,
recolheu-se, um instante, no silêncio e meditação, e começou com estas
palavras.
LIVRO SEGUNDO
O QUE
VOS DIGO
EM VOZ BAIXA
& AO OUVIDO,
PREGAI-O
EM VOZ ALTA &
ABERTAMENTE
A ilha da Utopia tem duzentos mil passos em sua maior largura, situada
na parte média. Esta largura diminui gradual e sistematicamente do centro
para as duas extremidades, de maneira que a ilha inteira se arredonda em um
semicírculo de quinhentas milhas de arco, apresentando a forma de um
crescente, cujos cornos estão afastados onze mil passos aproximadamente.
O mar enche esta imensa bacia; as terras adjacentes que se estendem em
anfiteatro quebram o furor dos ventos, mantendo as águas calmas e pacificas,
e dando a esta grande massa líqüida a aparência de um lago tranqüilo. Esta
parte côncava da ilha é como um único e vasto porto acessível aos navios
em todos os pontos.
A entrada do golfo é perigosa por causa dos bancos de areia de um lado, e dos
escolhos, do outro. No meio se levanta um rochedo visível de muito longe, e
que por isto não oferece nenhum perigo, Os utopianos construíram uma
fortaleza, defendida por uma boa guarnição. Outros rochedos ocultos pela água
oferecem armadilhas inevitáveis aos navegantes. Unicamente os nativos
conhecem as passagens navegáveis e por esse justo motivo ninguém pode entrar
no estreito sem ser guiado por um piloto utopiano. Esta precaução seria
ainda insuficiente, se os faróis dispostos pela costa não indicassem o rumo
a seguir. A simples transposição desses faróis seria suficiente para
destruir a frota mais numerosa, dando-lhe uma falsa direção.
Na parte oposta da ilha, encontram-se diversos portos, e a arte e a natureza
fortificaram de tal forma as costas, que um punhado de homens poderia impedir
o desembarque de um grande exército.
Se se der crédito às tradições, aliás plenamente justificadas pela
configuração do país, esta terra não foi sempre uma ilha. Chamava-se
antigamente Abraxa e se ligava ao continente; Utopus apoderou-se dela, e
deu-lhe seu nome
Este conquistador teve bastante gênio para humanizar uma população
grosseira e selvagem e para formar um povo que ultrapassa hoje todos os outros
em civilização. Desde que a vitória o fez dono deste país, mandou cortar
um istmo de quinze mil passos que o ligava ao continente; e a terra de Abraxa
tornou-se, assim, a ilha da Utopia. Utopus empregou, no acabamento dessa obra
gigantesca, os soldados do seu exército, assim como os indígenas, a fim de
que estes não olhassem. o trabalho imposto pelo vencedor como uma humilhação
e um ultraje. Milhares de braços foram então postos em movimento e o êxito,
em breve, coroava o empreendimento. Os povos vizinhos que, antes, haviam
taxado esta obra de vaidade e loucura, tomaram-se de espanto e de terror.
A ilha da Utopia tem cinqüenta e quatro cidades espaçosas e magníficas. A
linguagem, os hábitos, as instituições, as leis são perfeitamente idênticas.
As cinqüenta e quatro cidades são edificadas sobre o mesmo plano e possuem
os mesmos estabelecimentos e edifícios públicos, modificados segundo as exigências
locais. A menor distância entre essas cidades é de vinte e quatro milhas, a
maior é de uma jornada a pé.
Todos os anos, três velhos experientes e capazes são nomeados deputados por
cada cidade e se congregam em Amaurota, a fim de tratar dos negócios do país.
Amaurota é a capital da ilha; sua posição central transformou-a em ponto de
reunião mais conveniente para todos os deputados.
Um mínimo de vinte mil passos de terra é destinado em cada cidade à produção
dos artigos de consumo e à lavoura. Em geral, a extensão do território é
proporcional ao afastamento das cidades. Estas felizes cidades não procuram
aumentar os limites fixados pela lei. Os habitantes se olham mais como
rendeiros do que como proprietários do solo.
Há pelos campos casas comodamente construídas, providas de toda a espécie
de instrumentos de agricultura, e que servem de morada aos exércitos de
trabalhadores que a cidade envia periodicamente. ao campo.
A família agrícola se compõe pelo menos de quarenta indivíduos, homens e
mulheres, e de dois escravos. Está sob a direção de um pai e de uma mãe de
família, pessoas graves e prudentes.
Trinta famílias são dirigidas por um filarca (4).
Todos os anos vinte cultivadores de cada família regressam à cidade; são os
que terminaram seus dois anos de serviço agrícola. São substituídos, então,
por vinte indivíduos que ainda não serviram. Os recém-chegados recebem
instrução dos que já trabalharam um ano no campo, e, no ano seguinte, se
tornam instrutores por sua vez. Assim os cultivadores não são, nunca, todos
de uma vez, ignorantes e novatos, e a subsistência pública não tem nada a
temer da imperícia dos cidadãos encarregados de mantê-la.
Esta renovação anual tem ainda outra finalidade que é a de não consumir
por muito tempo a vida dos cidadãos nos trabalhos materiais e penosos.
Entretanto, alguns tomam naturalmente gosto pela agricultura e obtêm autorização
de passar vários anos no campo.
Os agricultores cultivam a terra, criam animais, juntam madeira e transportam
os aprovisionamentos para a cidade vizinha, por água ou por terra. Eles usam
de um processo extremamente engenhoso para conseguir grande quantidade de
pintos: não deixam às galinhas a tarefa de chocar os ovos, mas fazem-nos
romper a casca por meio de um calor artificial convenientemente temperado. E,
quando o pinto quebra a casca, é o homem que lhe serve de mãe, que o guia e
sabe reconhecê-lo. Criam poucos cavalos, e somente árdegos, destinados a
corridas, e não têm outra aplicação que a de exercitar a juventude na
equitação.
Os bois são empregados exclusivamente na lavoura e no transporte. O boi,
dizem os utopianos, não tem a vivacidade do cavalo, mas o sobrepuja em paciência
e força; é menos sujeito a moléstias, custa menos para ser nutrido, e
quando não serve mais para o trabalho serve ainda para a mesa.
Os utopianos convertem em pão os cereais; bebem o suco da uva, da maçã, da
pêra; bebem também água pura ou fervida com mel e alcaçuz, que possuem em
abundância.
A quantidade de víveres necessária ao consumo de cada cidade e de seus
territórios é determinada da maneira mais precisa. Não obstante, os
habitantes não deixam de semear o grão e criar gado, muito além das
necessidades do consumo. O excedente é posto em reserva, para os países
vizinhos.
Quanto aos móveis, utensílios domésticos, e outros objetos que não podem
ser encontrados no campo, os agricultores vão procurá-los na cidade. Eles se
dirigem aos magistrados urbanos que lhes mandam entregar sem remuneração nem
atraso. Todos os meses se reúnem para celebrar uma festa.
Quando chega o tempo da colheita os filarcas das famílias agrícolas
comunicam aos magistrados das cidades quantos braços auxiliares necessitam; e
enxames de ceifadores chegam no momento convencionado e, se o céu está plácido,
a colheita é feita quase num só dia.
-
Quem conhece uma cidade, conhece todas, porque todas são exatamente
semelhantes, tanto quanto a natureza do lugar o permita. Poderia portanto
descrever-vos indiferentemente a primeira que me ocorresse; mas escolherei de
preferência a cidade de Amaurota, porque é a sede do governo e do senado,
fato que lhe dá preeminência sobre as demais. Além disso, é a cidade que
melhor conheço, pois habitei-a cinco anos inteiros.
Amaurota se estende em doce declive sobre a
vertente de uma colina. Sua forma é de quase um quadrado. Começa a
estender-se um pouco acima do cume da colina, prolonga-se cerca de dois mil
passos sobre as margens do rio Anidra, alargando-se à medida que vai
margeando o rio.
A nascente do Anidra é pouco abundante; está
situada a oitenta milhas acima de Amaurota. A fraca corrente se engrossa na
sua marcha com o encontro de numerosos rios, entre os quais se distinguem dois
de grandeza média. Ao chegar diante de Amaurota, o Anidra mede quinhentos
passos de largo. A partir daí, segue se avolumando sempre até desembocar no
mar, após ter percorrido uma extensão de sessenta milhas.
Dentro de todo o espaço compreendido entre a
cidade e o mar, e algumas milhas acima da cidade, o fluxo e o refluxo da maré,
que duram seis horas por dia, modificam singularmente o curso do rio. À maré
crescente, o oceano invade o leito do Anidra numa extensão de trinta milhas,
rechaçando-o para a nascente. Então a vaga salina comunica seu amargor ao
rio; mas este, pouco a pouco, se purifica, e leva à cidade uma água doce e
potável, e a reconduz inalterada até perto de sua embocadura, quando a maré
baixa. As duas margens do Anidra estão ligadas por uma ponte de pedra,
construída em arcadas maravilhosamente curvas. Esta ponte se encontra na
extremidade da cidade mais afastada do mar, a fim de que os navios possam
ancorar em todos os pontos da baía.
Um outro rio, pequeno é verdade, mas belo e
tranqüilo, corre também no perímetro de Amaurota. Este ribeiro brota a
pouca distância da cidade, na montanha sobre que está assentada; e, depois
de a ter cortado ao meio, vem unir suas águas às do Anidra. Os amaurotanos
cercaram a nascente de fortificações que a ligam aos arrabaldes. Desta
forma, no caso de cerco, o inimigo não poderá envenenar o rio, nem barrar ou
desviar-lhe o curso. Do ponto mais elevado, ramificam-se em todos os sentidos
canos de barro que conduzem a água aos quarteirões baixos da cidade. Onde
este meio é impraticável, vastas cisternas recolhem as águas pluviais para
os diversos usos dos habitantes.
Uma cadeia de altas e largas muralhas circunda a
cidade e, a pequenas distâncias, erguem-se torres e fortalezas. As muralhas,
dos três lados, estão cercadas de fossos sempre secos, mas largos e
profundos, atravancados de sebes e espinheiros. O quarto lado tem por fossa o
próprio rio.
As ruas e as praças são convenientemente
dispostas, seja para o transporte, seja para abrigar-se do vento. Os edifícios
são construídos confortavelmente; brilham de elegância e de conforto e
formam duas fileiras contíguas, acompanhando de longo as ruas, cuja largura
é de vinte pés.
Atrás, e entre as casas, abrem-se vastos
jardins. Em cada casa há uma porta que dá para a rua e outra para o jardim.
Estas duas portas se abrem facilmente com um ligeiro toque, e deixam entrar o
primeiro que chega.
Os habitantes da Utopia aplicam aqui o princípio
da posse comum. Para abolir a idéia da propriedade individual e absoluta,
trocam de casa todos os dez anos e tiram a sorte da que lhes deve caber na
partilha.
Os habitantes das cidades tratam de seus jardins
com desvelo; cultivam a vinha, os frutos, as flores. e toda a sorte de
plantas. Põem nessa cultura tanta ciência e gosto que jamais vi em outra
parte maior fertilidade e abundância combinadas num conjunto mais gracioso. Não
é o prazer o único motivo que os incita à arte da jardinagem; há emulação
entre os diferentes quarteirões da cidade, que lutam à porfia por quem terá
o jardim mais bom cultivado. Na verdade, nada se pode conceber mais agradável,
nem mais útil aos cidadãos que esta ocupação. O fundador do império bem o
compreendeu, quando tantos esforços envidou para encaminhar os espíritos
nessa direção.
Os utopianos atribuem a Utopus o plano. geral de
suas cidades. Este grande legislador não teve tempo de concluir as construções
e embelezamentos que tinha projetado; isso demandava o trabalho de muitas gerações.
Assim, legou à posteridade o cuidado de continuar e aperfeiçoar sua obra.
Lê-se nos anais da Utopia, conservados
religiosamente desde a conquista da ilha e que abarcam a história de mil
setecentos e sessenta anos; lê-se que, no começo. as casas eram muito
baixas, não havia senão choupanas, cabanas de madeira, com paredes de barro
e tetos de palha, terminados em ponta. As casas, hoje, são elegantes edifícios
de três andares, com paredes externas de pedra ou de tijolo e paredes
internas de caliça. Os tetos são chatos, recobertos de uma matéria moída e
incombustível, que não custa nada e protege melhor que o chumbo dos danos do
tempo. As janelas envidraçadas (faz-se na ilha grande uso do vidro) abrigam
do vento. Algumas vezes substitui-se o vidro por um tecido de uma finura
extrema revestido de âmbar ou óleo transparente, o que oferece ainda a
vantagem de deixar passar a luz e evitar o vento.
DOS MAGISTRADOS
Trinta
famílias fazem, todos os anos, a eleição de um magistrado, chamado
sifogrante na antiga linguagem do país e filarca na moderna.
Dez sifograntes e suas trezentas famílias
obedecem a um protofilarca, antigamente denominado traníbora.
Finalmente os sifograntes, em número de mil e
duzentos, após o juramento de dar os seus votos ao cidadão mais virtuoso e
mais capaz, escolhem por escrutínio secreto e proclamam príncipe um dos
quatro cidadãos propostos pelo povo; porque a cidade sendo dividida em quatro
seções, cada quarteirão apresenta seu candidato ao senado.
O principado é vitalício, a menos que recaia
sobre o príncipe a suspeita de aspirar à tirania. Os traníboras são
nomeados todos os anos, mas só por graves motivos são eles mudados. Os
outros magistrados são renovados anualmente.
Todos os três dias, e ainda mais freqüentemente
se o caso exige, os traníboras se reúnem em conselho com o príncipe para
deliberar sobre os negócios do pais e terminar rapidamente os processos que
surgem entre os particulares, processos aliás excessivamente raros. Dois
sifograntes assistem a cada uma das sessões do senado, e esses dois
magistrados populares são alternados em cada sessão.
A lei quer que as moções de interesse geral
sejam discutidas no senado três dias antes de ir a votação e de ser
convertido em decreto o projeto.
Reunir-se fora do senado e das assembléias do
povo para deliberar sobre os negócios públicos é um crime punido com a
morte.
Estas instituições têm por finalidade impedir
o príncipe e os traníboras de conspirarem juntos contra a liberdade, de
oprimir o povo com leis tirânicas e de mudar a forma do governo. A constituição
é de tal modo vigilante a este propósito que as questões de alta importância
são relatadas nos comícios dos sifograntes, que as comunicam às suas famílias.
O caso é então examinado em assembléia popular; depois, os sifograntes, após
terem deliberado, transmitem ao senado seu parecer e a vontade do povo.
Algumas vezes mesmo a opinião de toda a ilha é consultada.
Entre os regulamentos do senado, o seguinte
merece assinalado. Quando uma proposta é feita, é proibido discuti-la no
mesmo dia; a discussão é transferida à sessão seguinte.
Desta maneira ninguém fica exposto a
desembuchar levianamente as primeiras coisas que lhe passem pela cabeça, e a
defender, em seguida, a sua opinião antes do que o bem geral; pois não é
freqüente acontecer que se recue diante da vergonha de uma retratação e do
reconhecimento de um erro irrefletido? Então, sacrifica-se o bem público
para salvar a reputação. Este perigo funesto da precipitação foi previsto,
e aos senadores é dado o tempo suficiente para refletir.
DAS ARTES E OFÍCIOS
Há
uma arte comum a todos os utopianos, homens e mulheres, e da qual ninguém tem
o direito de isentar-se, é a agricultura. As crianças aprendem a teoria nas
escolas e a prática nos campos vizinhos da cidade aonde são levadas em
passeios recreativos. Aí assistem a trabalhar e trabalham também, e este
exercício traz ainda a vantagem de desenvolver as suas forças físicas.
Além da agricultura, que, repito-o, é um dever
imposto a todos, ensina-se a cada um um ofício especial. Uns tecem a lã ou o
linho; outros são pedreiros ou oleiros; outros trabalham a madeira ou os
metais. São esses os principais ofícios.
As roupas têm a mesma forma para todos os
habitantes da ilha; esta forma é invariável, e apenas distingue o homem da
mulher, o solteiro do casado. Estas vestes reúnem a elegância à comodidade;
facilitam todos os movimentos do corpo, defendem-no contra os calores do verão
e do frio do inverno. Cada família confecciona seus próprios vestidos.
Todos, homens e mulheres, sem exceção, são
obrigados a aprender um dos ofícios mencionados acima. As mulheres, sendo
mais fracas, trabalham apenas a lã e o linho, os homens são encarregados das
coisas mais penosas.
Em geral, cada um é adestrado na profissão de
seus pais, porque é habitualmente a natureza que inspira o gosto desta
profissão. Entretanto, se alguém sente mais aptidão e é atraído por
outra, passa a fazer parte, por adoção, de uma das famílias que a exercem.
Seu pai, de acordo com o magistrado, trata de colocá-lo a serviço de um pai
de família honesto e respeitável.
Se alguém, tendo já uma profissão, quer
aprender outra, pode aprendê-la nas condições precedentes. Deixa-se-lhe a
liberdade de exercer a que melhor lhe convier, a menos que a cidade não lhe
designe uma por motivo de utilidade pública.
A função principal e quase única dos
sifograntes é a de velar por que ninguém se entregue à ociosidade e à
preguiça e todos exerçam com ânimo a sua profissão. Não se deve crer que
os utopianos se atrelem ao. trabalho como bestas de carga desde a madrugada até
à noite. Esta vida embrutecedora para o espírito e para o corpo, seria pior
que a tortura e a escravidão. E no entretanto, tal é, em outra qualquer
parte, a triste sorte do operário!
Os utopianos dividem o intervalo de um dia e de
uma noite em vinte e quatro horas iguais. Seis horas são empregadas nos
trabalhos materiais; eis a sua distribuição.
Três horas de trabalho antes do meio dia,
depois almoçam. Depois de meio dia, duas horas de repouso, três de trabalho,
em seguida jantam.
Contam uma hora onde contamos meio dia,
deitam-se às nove e reservam nove horas para o sono.
O tempo compreendido entre o trabalho, as refeições
e o sono, cada qual é livre de empregar à sua vontade. Longe de abusar
dessas horas de lazer, abandonando-se à ociosidade e à preguiça, descansam
variando suas ocupações e trabalhos. Estão aptos a assim fazer, graças a
uma instituição verdadeiramente admirável.
Todas as manhãs, antes do sol se levantar, os
cursos públicos são abertos. Somente os indivíduos especialmente destinados
às letras, são obrigados a seguir esses cursos; mas todo mundo tem direito a
assisti-los, as mulheres como os homens, quaisquer que sejam as suas profissões.
O povo acorre em massa; e cada um se apega ao ramo de ensino que tem mais relação
com sua indústria e seus gostos.
Alguns, durante as horas de liberdade,
entregam-se de preferência ao exercício de sua profissão. São os homens
cujo espírito não tem o gosto das especulações abstratas. Longe de serem
contrariados nessa preferência, são, ao contrário, aplaudidos, pois se
tornam, assim, constantemente úteis a seus concidadãos.
A noite, depois da ceia, os utopianos se
entregam, durante uma hora, aos divertimentos; no verão, pelos jardins, e no
inverno, nas salas comuns onde fazem suas refeições. Fazem música ou se
distraem conversando. Desconhecem os dados, o baralho e todos os outros jogos
de azar, tão estúpidos como perigosos. Praticam entretanto duas espécies de
jogos, que têm. muita semelhança com o nosso xadrez; um é a batalha aritmética,
na qual o número pilha o número; o outro é o combate das vícios e das
virtudes. Este último mostra, com destaque, a anarquia dos vícios entre si,
o ódio que os divide e, contudo, seu perfeito acordo quando se trata de
atacar as virtudes. Faz ver ainda quais são os vícios opostos a cada uma das
virtudes, como aqueles atacam a estas pela violência e a descoberto, ou pela
astúcia e meios sinuosos; como a virtude repele os assaltos do vício,
derruba-o e aniquila seus esforços; e como, finalmente, a vitória se decide
por um ou outro lado.
Aqui espero uma séria objeção e apresso-me em
rebatê-la.
Dir-se-á talvez: Seis horas de trabalho por dia
não são suficientes para as necessidades do consumo público, e a Utopia
deve ser um país muito miserável.
Mas não é este realmente o caso. Ao contrário,
as seis horas de trabalho produzem abundantemente para todas as necessidades e
comodidades da vida, e ainda um supérfluo bem superior às exigências do
consumo.
Compreendereis facilmente se refletirdes no
grande número de pessoas ociosas existentes nas outras nações. Antes de
tudo, são essas quase todas as mulheres, que em si já constituem a metade da
população, e a maioria dos homens, ali onde as mulheres trabalham. Em
seguida, esta imensa multidão de padres e religiosos vagabundos. Somai ainda
todos esses ricos proprietários vulgarmente chamados nobres e senhores;
acrescentai também as nuvens de lacaios e outro tanto de malandros de libré;
e o dilúvio de mendigos robustos e válidos que escondem sua preguiça sob o
disfarce de enfermidades. E achareis, em resumo, que o número dos que, por
seu trabalho, provêm ao gênero humano de todas as necessidades é bem menor
do que imaginais.
Considerai também como são poucos aqueles que
a trabalhar estão empregados em coisas verdadeiramente necessárias. Porque,
neste século de dinheiro, onde o dinheiro é o deus e a medida universal,
grande é o número das artes frívolas e vãs que se exercem unicamente a
serviço do luxo e do desregramento. Mas se a massa atual dos trabalhadores
estivesse repartida pelas diversas profissões úteis, de maneira a produzir
mesmo com abundância tudo o que exige o consumo, o preço da mão de obra
baixaria a um ponto que o operário não poderia mais viver de seu salário.
Suponde, pois, que se faça trabalhar utilmente
aqueles que não produzem senão objetos de luxo e os que nada produzem,
embora comam o trabalho e o quinhão de dois bons operários; então,
concebereis, sem dificuldade, que disporão de mais tempo do que necessitam
para prover às necessidades e mesmo aos prazeres da vida, quero dizer, os que
se fundam na natureza e na verdade.
Ora, o que afirmo aqui, na Utopia está provado
pelos fatos. Em toda a extensão de uma cidade utopiana, inclusive seu território,
não mais de quinhentos indivíduos, compreendidos os homens e mulheres na
idade e força de trabalhar, existem isentos por lei. Neste número estão os
sifograntes; mas mesmo esses magistrados trabalham como os outros cidadãos a
fim de estimulá-los pelo exemplo. Este privilégio se estende também aos
jovens que o povo destina às ciências e às artes, por recomendação dos
padres e conforme os sufrágios secretos dos sifograntes. Se um desses eleitos
ilude a esperança pública, é transferido para a classe dos operários. Se,
ao contrário, e o caso é freqüente, um operário consegue adquirir uma
instrução suficiente consagrando suas horas de lazer aos estudos
intelectuais, fica isento do trabalho mecânico e sobe à classe dos letrados.
É entre os letrados que se escolhem os
embaixadores, os padres, os traníboras e o príncipe, chamado antigamente
barzame e hoje ádemo. O resto da população continuamente ativa não exerce
senão profissões úteis e produz, em pouco tempo, uma massa considerável de
trabalhos perfeitamente executados.
O que contribui ainda para abreviar o trabalho
é que, tudo sendo bem estabelecido e conservado, há muito menos o que fazer
na Utopia do que entre nós.
Nas outras partes, a construção e a reparação
dos edifícios exigem trabalhos contínuos. A razão disto é que o pai, após
ter edificado a sua casa com grandes sacrifícios, deixa seus bens a um filho
negligente e dissipador, em cujas mãos tudo se deteriora pouco a pouco; o
resultado é que o herdeiro deste último não pode empreender reparações
sem fazer despesas enormes. Freqüentemente acontece mesmo que um mais
requintado no luxo desdenha as construções paternas, e se põe a construir,
com maiores despesas ainda, noutro terreno, enquanto a casa de seu pai cai em
ruínas.
Na Utopia, tudo está tão bem previsto e
organizado que raro é-se obrigado a construir em novos terrenos. Os estragos
são consertados no momento em que aparecem, e os que estão iminentes são
prevenidos. Assim, as construções se conservam com pouco gasto e trabalho. A
maior parte do tempo, os operários permanecem em casa para, desbastando os
materiais, talhar a madeira e a pedra. Quando há uma construção a fazer, os
materiais estão todos prontos e a obra é rapidamente terminada.
Ides ver como dispendem pouco os utopianos para
se vestirem.
No trabalho, vestem de couro ou de pele; este
trajo pode durar sete anos. Em público, cobrem-se de um casaco ou sobretudo
que tapa a roupa grosseira do trabalho. O casaco é de cor natural, e igual
para todos. Desta sorte usam muito menos casemira do que em qualquer outra
parte, e a lã lhes vem por menor preço. O linho é de uso muito difundido,
porque exige menos trabalho. Eles não dão preço senão à brancura do
linho, à nitidez e à limpeza da lã, sem considerar a fineza ou delicadeza
da fiação. Um só trajo dura de ordinário dois anos; enquanto que alhures,
cada pessoa carece de quatro a cinco roupas de diferentes cores, outras tantas
vestimentas de seda e os mais elegantes não se satisfazem com uma dezena. Os
utopianos não vêm motivo para possuir um tão grande número; não se
sentiriam por isso nem mais cômoda nem mais elegantemente vestidos.
Assim, todo mundo, na Utopia, vive ocupado em.
artes e ofícios realmente úteis. O trabalho material é de curta duração e
mesmo assim produz a abundância e o supérfluo. Quando há acúmulo de
produtos, os trabalhos diários são suspensos e a população é transportada
em massa para reparar as estradas esburacadas e estragadas. Na falta de obras
comuns ou extraordinárias a realizar, um decreto autoriza uma diminuição
nas horas de trabalho, porque o governo não procura fatigar seus cidadãos em
labores inúteis.
•O fim das instituições sociais na Utopia é
de prover antes de tudo às necessidades do consumo público e individual; e
deixar a cada um o maior tempo possível para libertar-se da servidão do
corpo, cultivar livremente o espírito, desenvolvendo suas faculdades
intelectuais pelo estudo das ciências e das letras. É neste desenvolvimento
completo que eles põem a verdadeira. felicidade.
DAS RELAÇÕES MÚTUAS ENTRE OS
CIDADÃOS
Agora
passo a expor as relações dos cidadãos entre si, seu comércio e a lei da
distribuição das coisas necessárias à vida.
A cidade se compõe de famílias, na sua maioria
unidas pelos laços de parentesco.
Desde que uma moça é núbil, é-lhe dado um
marido, e ela vai morar com ele.
Os varões, filhos e netos, não deixam as suas
famílias. O membro mais antigo de uma família é o chefe, e se os anos
enfraqueceram sua inteligência, é substituído por aquele que mais se
aproxima de sua idade.
As seguintes disposições mantêm o equilíbrio
da população, impedindo-a de tornar-se muito rara em certos pontos, muito
densa em outros.
Cada cidade deve ser constituída de seis mil
famílias. Cada família ,não pode conter senão de dez a dezesseis mancebos
na idade da puberdade. O número de crianças impúberes é ilimitado.
Quando uma família cresce além da medida, o
excedente é colocado entre as famílias menos numerosas.
Quando há numa cidade mais gente do que deve
conter, o excedente vai preencher os claros das cidades menos povoadas.
Finalmente, se a ilha inteira se visse
sobrecarregada de habitantes, seria decretada a emigração geral. Os
emigrantes iriam fundar uma colônia no continente mais próximo, onde os indígenas
dispõem de mais terreno do que cultivam.
A colônia se governa segundo as leis utopianas,
e chama a si os nativos que queiram partilhar de seus trabalhos e gênero de
vida.
Se os colonos encontram um povo que aceita suas
instituições e costumes, formam com ele uma mesma comunidade social, e esta
união é benéfica a todos. Pois, a viver todos, assim, à utopiana, uma
terra que, outrora, era ingrata e estéril para um único povo, toma-se
produtiva e fecunda para dois povos ao mesmo tempo.
Mas se os colonos encontram uma nação que
repele as leis da Utopia, eles expulsam esta nação da região do país que
querem colonizar, e, se preciso, empregam, para tal, a força das armas.
Segundo os seus princípios, a guerra mais justa é aquela que se faz a um
povo que possui imensos territórios incultos e que os conserva desertos e estéreis,
notadamente quando este mesmo povo interdiz a sua posse e o seu uso aos que vêm
para cultivá-los e deles se nutrir, conforme a lei imprescritível da
natureza.
Se acontecesse (e este foi o caso, por duas
vezes, em conseqüência de pestes horríveis) que a população do lugar
diminuísse a ponto de não poder ser restabelecida sem romper o equilíbrio e
a constituição das outras partes da ilha, os colonos regressariam à Utopia.
Nossos insulares prefeririam deixar que as colônias perecessem a permitir que
decrescesse uma única cidade da mãe-pátria.
Mas voltemos às relações mútuas entre os
cidadãos.
O mais idoso, como já o disse, preside a família.
As mulheres servem a seus maridos; as crianças, a seus pais e mães; os mais
jovens, aos mais velhos.
A cidade inteira se divide em quatro quarteirões
iguais. No centro de cada quarteirão, encontra-se o mercado das coisas necessárias
à vida. São depositados aí os diferentes produtos do trabalho de todas as
famílias. Esses produtos, depositados primeiramente nos entrepostos, são em
seguida classificados nas lojas de acordo com sua espécie.
Cada pai de família vai procurar no mercado
aquilo de que tem necessidade para si e os seus. Tira o que precisa sem que
seja exigido dele nem dinheiro nem troca. Jamais se recusa alguma coisa aos
pais de família. A abundância sendo extrema, em todas as coisas, não se
teme que alguém tire além de sua necessidade. De fato, aquele que tem a
certeza de que nada faltará jamais, não procurará possuir mais do que é
preciso. O que torna, em geral, os animais cúpidos e rapaces, é o temor das
privações no futuro. No homem em particular, existe uma outra causa de
avareza - o orgulho, que o excita a ultrapassar em opulência os seus iguais e
a deslumbrá-los pelo aparato de um luxo supérfluo. Mas as instituições
utopianas tornam este vício impossível.
Os mercados de que acabo de falar estão juntos
dos mercados de comestíveis, onde se depositam os legumes, as frutas, o pão,
o peixe, as aves domésticas e as partes de se comer dos animais quadrúpedes.
Fora da cidade, existem os matadouros onde se
abatem os animais destinados ao consumo. Esses matadouros são mantidos sempre
limpos graças a correntes de água que arrastam •o sangue e as imundícies
dos animais. É daí que é levada ao mercado a carne limpa e retalhada pelas
mãos dos escravos: pois a lei proíbe aos cidadãos o ofício de carniceiro,
temerosa que o hábito da matança destrua pouco a pouco o sentimento de
humanidade, o sentimento mais nobre do coração do homem. Esses açougues são
situados fora da cidade no intuito de evitar também aos cidadãos um espetáculo
hediondo, ao mesmo tempo que desembaraça a cidade das sujeiras e matérias
animais cuja putrefação poderia provocar moléstias.
Em cada rua amplos palácios estão dispostos a
igual distância, distinguindo-se uns dos outros por nomes particulares. É aí
que moram os sifograntes; suas trinta famílias estão alojadas nos dois
lados, quinze à direita e quinze à esquerda; é no palácio do sifogrante
que elas vão fazer as refeições em comum.
Os provedores se reúnem no mercado a uma hora
fixa e requerem uma quantidade de víveres proporcional ao número de bocas
que têm de nutrir. Começa-se sempre por servir os doentes, que são alojados
em enfermarias públicas.
Em torno da cidade e um pouco além de seus
muros estão situados quatro hospitais de tal forma espaçosos, que poderiam
ser tomados por quatro burgos consideráveis. Evita-se assim a acumulação e
o atravancamento dos doentes, inconvenientes que retardam a cura; além disto,
quando um homem é atingido por uma moléstia contagiosa, pode-se isolá-lo
completamente. Esses hospitais possuem com abundância todos os remédios e
todas as coisas necessárias ao restabelecimento da saúde. Os doentes são aí
tratados com um cuidado afetuoso e assíduo, sob a direção dos mais hábeis
médicos. Ninguém é obrigado a ir para lá; entretanto, não há quem, em
caso de doença, não prefira tratar-se no hospital do que em sua casa.
Depois que os provedores dos hospitais recebem o
que pediram, segundo as prescrições dos médicos, o que há de melhor no
mercado é distribuído, sem distinção, entre todos os refeitórios,
proporcionalmente ao número dos comedores. Serve-se, ao mesmo tempo, o príncipe,
o pontífice, os traníboras, os embaixadores, os estrangeiros, se os há, o
que é muito raro. Estes últimos, ao chegarem à cidade, encontram os seus
alojamentos já preparados e providos de todas as coisas de que podem
necessitar.
Uma trombeta marca a hora das refeições. Então
toda a sifograntia encaminha-se para o refeitório comum, com exceção dos
indivíduos acamados em casa ou no hospital. É permitido ir ao mercado à
procura de víveres para o consumo particular, mas só depois que as mesas públicas
estiverem completamente providas. Os utopianos, porém, não se utilizam
jamais desse direito, a não ser por graves motivos: se cada qual é livre de
comer em sua casa, ninguém encontra prazer em fazê-lo. Ademais, seria
loucura dar-se ao trabalho de preparar um mau jantar, quando se pode ter um
bem melhor a alguns passos.
Os escravos são encarregados dos trabalhos de
cozinha mais sujos e penosos. As mulheres cozinham os alimentos, temperam os
guisados e servem e tiram as mesas. Revezam-se nestes misteres, família por
família.
Preparam-se três mesas ou mais, de acordo com o
número de convivas. Os homens assentam-se do lado da parede; as mulheres
ficam dispostas em frente, a fim de que, se alguma for acometida de uma
indisposição súbita, o que acontece freqüentemente às mulheres grávidas,
possam se retirar sem incomodar ninguém, e ir para os aposentos das amas.
As amas se sentam a parte com as crianças de
peito, em salas particulares, sempre aquecidas e providas de água limpa e berços;
desta maneira elas podem deitar as criancinhas, desenfaixá-las e fazê-las
brincar próximo do fogo.
Cada mãe aleita seu filho, exceto em caso de
morte ou de doença. Nestes dois casos, as mulheres dos sifograntes procuram
imediatamente uma ama, o que não é difícil encontrar. As mulheres em situação
de prestar este serviço são as primeiras a se oferecer. Aliás, esta função
é uma das mais honrosas, e a criança pertence tanto à sua ama de leite como
à sua mãe.
Na sala das amas vivem também as crianças que
não têm ainda cinco anos completos. Os meninos e as meninas, da idade da
puberdade até a do casamento servem a mesa. Os mais jovens e que não têm
força para servir, conservam-se de pé e em silêncio; comem o que lhes é
dado pelos que estão à mesa, e não têm outro momento para fazer suas refeições.
O sifogrante e sua mulher são colocados no
centro da primeira mesa. Esta mesa ocupa a extremidade do fundo da sala e de lá
se descortina, num golpe de vista, toda a assembléia. Dois velhos, escolhidos
entre os mais velhos e mais respeitáveis, assentam-se com o sifogrante, e,
assim, todos os convivas são servidos e comem quatro a quatro. Se há um
templo na sifograntia, o sacerdote e sua mulher substituem os dois velhos,
presidindo a refeição.
Dos dois lados da sala estão enfileirados
alternativamente dois jovens e dois indivíduos mais idosos. Esta disposição
aproxima os iguais e mistura, ao mesmo tempo, todas as idades; e além disso
preenche uma finalidade moral. Como nada se pode dizer ou fazer que não seja
percebido pelos vizinhos, assim a gravidade da velhice, o respeito que ela
inspira, contém a petulância dos jovens, impedindo-os sair da medida tanto
nas palavras como nos gestos.
A mesa do sifogrante é servida em primeiro
lugar; em seguida as outras, segundo sua posição. Os melhores pedaços são
dados aos velhos das famílias que ocupam lugares fixos e de destaque. Todos
os demais são servidos com uma igualdade perfeita. As porções desses bons
velhos não lhes são bastante grandes para dar a todo o mundo; mas eles as
repartem, como entendem, com os vizinhos mais próximos. Assim, rende-se à
velhice a honra que lhe é devida, e esta homenagem volve ao bem de todos.
Os almoços e os jantares começam pela leitura
de um livro de moral; esta leitura é breve para que não aborreça. Quando
terminada, os mais idosos encetam conversações honestas, mas cheias de
jovialidade e alegria. Longe de falar exclusivamente, eles gostam de escutar
os jovens; provocam mesmo seus repentes, a fim de apreciar-lhes a natureza do
caráter e do espírito. Ao calor e liberdade reinantes nas horas de refeição,
essa natureza facilmente se trai.
O almoço é rápido; a ceia é demorada; porque
ao almoço seguem-se os trabalhos, enquanto que depois da ceia, vêm o sono e
o repouso da noite. Ora, os utopianos acreditam que o sono da noite é mais
favorável do que o trabalho a uma boa digestão. A ceia não se realiza sem música
e sem uma sobremesa copiosa e delicada. Os perfumes, as essências mais
recendentes, nada é poupado para o bem estar e o gozo dos convivas. Poder-se-á,
talvez, por isto, acusar os utopianos de uma tendência excessiva ao prazer?
Eles têm por princípio que a volúpia que não engendra nenhum mal é
perfeitamente legítima.
É assim que vivem entre si os utopianos das
cidades. Aqueles que trabalham no campo estão muito apartados uns dos outros
para comer em comum; tomam suas refeições em casa, individualmente. De
resto, as famílias agrícolas têm assegurada uma alimentação abundante e
variada. Nada lhes falta: não são elas as provedoras, as mães nutrizes das
cidades?
Quando
um cidadão deseja ir ver um amigo que mora noutra cidade, ou quer
simplesmente ter o prazer de uma viagem, os sifograntes e os traníboras
consentem de boa vontade em sua partida se não houver impedimento razoável.
Os viajantes Se reúnem para partir em conjunto;
munem-se de uma carta do príncipe que é um certificado de licença e que
fixa o dia de regresso. Fornecem-lhes uma carruagem e um escravo para guiar a
carruagem e cuidar dos animais. Mas habitualmente, a menos que levem mulheres
em sua companhia, os viajantes dispensam o carro como um obstáculo. Não se
provêm de nada durante o percurso; porque nada lhes pode faltar e em qualquer
lugar estão em sua casa.
Se um viajante passa mais de um dia numa
localidade, tem que trabalhar no seu ofício e recebe o mais carinhoso
acolhimento dos operários de sua profissão.
Aquele que por sua própria vontade se permite
franquear os limites de sua província, é tratado como criminoso; apanhado
sem a licença do príncipe, é reconduzido como desertor e severamente punido
Em caso de reincidência, perde a liberdade.
Se algum cidadão deseja fazer excursão nos
campos que dependem de sua cidade, pode fazê-lo com o consentimento de sua
mulher e do pai de família. Mas é necessário que compre e pague o seu
sustento trabalhando antes do almoço e da ceia tanto quanto os que aí moram.
Sob esta condição, cada indivíduo tem o direito de sair da cidade e
percorrer o território adjacente, porque ele é tão útil ali como aqui.
Vede que na Utopia a ociosidade e a preguiça são impossíveis. Não se vêm
nem tabernas, nem lugares de prostituição, nem oportunidade para deboches,
nem antros ocultos, nem assembléias secretas. Cada um, continuamente exposto
ao olhar de todos, se sente na feliz contingência de trabalhar e de repousar,
conforme as leis e os costumes do país. A abundância de todas as coisas é o
fruto desta vida pura e ativa. O bem estar se reparte igualmente por todos os
membros desta admirável sociedade; a mendicidade e a miséria são aí
monstros desconhecidos.
Já disse que cada cidade da Utopia enviava três
deputados ao senado de Amaurota. As primeiras sessões do senado são
consagradas a levantar a estatística econômica das diversas partes da ilha.
Desde que se verifica os pontos onde há demais e os pontos onde não há
bastante, o equilíbrio é restabelecido enchendo-se a carência das cidades
infelizes com a superabundância das cidades mais favorecidas. Esta compensação
é gratuita. A cidade que dá nada recebe em troca da parte que entrega; e,
reciprocamente, recebe de graça de uma outra cidade à qual nada deu.
Assim, toda a república utopiana é como uma única
e mesma família.
A ilha é sempre abastecida por dois anos, na
incerteza de uma boa ou má colheita para o ano seguinte. Exportam-se para
fora da ilha os gêneros supérfluos, tais como trigo, mel, lã, linho,
madeiras, matérias para tinturas, peles, cera, sebo, animais. A sétima parte
dessas mercadorias é distribuída aos pobres do país para onde se exporta; o
resto é vendido a um preço moderado. Este comércio permite à Utopia
importar não somente objetos de necessidade, o ferro, por exemplo, como, também,
uma massa considerável de ouro e prata.
Desde que os utopianos praticam este negócio
que acumularam uma quantidade incrível de riquezas. É por isso que lhes é
indiferente, hoje, vender a vista ou a prazo. Habitualmente, recebem vales em
pagamento; mas não se fiam em assinaturas individuais. Os vales devem estar
revestidos das formas legais e garantidos à fé e selo da cidade que os
aceita. No dia do vencimento, a cidade signatária exige o reembolso aos
devedores particulares; o dinheiro é depositado no tesouro público e o seu
valor é garantido até que os credores utopianos o reclamem.
Estes não reclamam quase nunca o pagamento da dívida
inteira; acreditariam cometer uma injustiça, tirando a um outro uma coisa que
lhe é necessária e que para ele é inútil. Entretanto, há casos em que
retiram toda a soma que lhes é devida; isto acontece quando querem se servir
desta para emprestar a uma nação vizinha ou para empreender uma guerra.
Neste último caso, juntam todas suas riquezas para fazer como que uma
trincheira de metal contra os perigos urgentes e imprevistos. Estas riquezas são
destinadas a engajar e a pagar copiosamente as tropas estrangeiras; porque o
governo da Utopia prefere expor à morte os estrangeiros que os seus cidadãos.
Ele sabe também que o inimigo mais encarniçado se vende algumas vezes, se o
preço da venda está à altura de sua cobiça; sabe que, em geral, o dinheiro
é o nervo da guerra, quer para comprar traições, quer para combater
abertamente.
Para tais fins, os utopianos têm sempre à sua
disposição imensos tesouros; mas, longe de conservá-los com uma espécie de
culto religioso, como fazem outros povos, eles os empregam em coisas que mal
ouso dizer-vos. Temo que não acrediteis, pois eu mesmo, confesso-vos
francamente, se não tivesse visto a coisa não acreditaria sobre palavra.
Isto é muito natural; quanto mais os costumes estrangeiros são opostos aos
nossos, menos estamos dispostos a acreditar neles. Contudo, o homem sábio que
julga judiciosamente, ao saber que os utopianos pensam e agem de modo
exatamente contrário aos outros povos, não se surpreenderá que eles
empreguem o ouro e a prata de modo inteiramente diverso de nós. Na Utopia não
se utiliza jamais dinheiro em moeda nas transações mútuas; são elas
reservadas para os acontecimentos críticos sempre possíveis, ainda que
incertos.
O ouro e a prata não têm, nesse país, mais
valor do que lhes deu a natureza. Esses dois metais são ali considerados bem
abaixo do ferro, o qual é tão necessário ao homem quanto a água e o fogo.
Com efeito, o ouro e a prata não têm nenhuma virtude, nenhum uso, nenhuma
propriedade cuja privação acarrete um inconveniente natural e verdadeiro.
Foi a loucura humana que pôs tanto valor em sua raridade.
A natureza, esta excelente mãe, escondeu-os em
grandes profundidades, como produtos inúteis e vãos, enquanto que expõe a
descoberto a água, o ar, a terra, e tudo o que há de bom e realmente útil.
Os utopianos não escondem seus tesouros nas
torres, ou em outros lugares fortificados e inacessíveis. O vulgo, numa
extravagante malícia, poderia suspeitar que o príncipe e o senado enganassem
o povo, enriquecendo-se e pilhando a fortuna pública. Com o ouro e a prata não
se fabricam nem vasos, nem obras artisticamente trabalhadas. Porque, se
houvesse necessidade de um dia fundi-los, para pagar o exército em caso de
guerra, os que tivessem posto sua afeição e suas delícias nesses objetos de
arte e de luxo, sentiriam, ao perdê-los, uma dor amarga.
A fim de prevenir esses inconvenientes, os
utopianos imaginaram um uso perfeitamente em harmonia com o restante de suas
instituições, mas em completo desacordo com as do nosso continente, onde o
ouro é adorado como um Deus, procurado como o bem supremo. Eles comem e bebem
em louça de barro ou vidro, que se é elegante na forma, é, no entanto,
despida do menor valor; o ouro e a prata são destinados aos usos mais vis,
tanto nas residências comuns, como nas casas particulares; são feitos com
eles até os vasos noturnos. Forjam-se cadeias e correntes para os escravos, e
marcas de opróbrio para os condenados que cometeram crimes infames. Estes últimos
levam anéis de ouro nos dedos e nas orelhas, um colar de ouro no pescoço, um
freio de ouro na cabeça.
Assim, tudo concorre para manter o ouro e a
prata na ignominia. Entre outros povos a perda da fortuna é um sofrimento tão
cruel como um dilaceramento de entranhas; mas quando se arrancasse à nação
utopiana todas suas imensas riquezas ninguém pareceria ter perdido um cêntimo.
Os utopianos recolhem pérolas na sua costa,
diamantes e pedras preciosas em certos rochedos. Sem ir à cata desses objetos
raros, eles gostam de polir os que a sorte os presenteia, a fim de adornar os
seus filhinhos, que ficam todo orgulhosos de trazer esses ornamentos. Mas, à
medida que crescem, percebem logo que estas frivolidades não convêm senão
às crianças pequenas. Então, não esperam pela observação dos pais;
espontaneamente e por amor próprio livram-se desses enfeites. É como entre nós,
quando as crianças que vão crescendo, abandonam as bolas e as bonecas.
Estas instituições, tão diferentes das dos
outros povos, gravam no coração do utopiano sentimentos e idéias
inteiramente contrárias às nossas. Fiquei singularmente chocado com esta
diferença por ocasião de uma embaixada anemoliana. Os enviados de Anemólia
vieram a Amaurota quando eu lá estava, e como deviam tratar de negócios de
alta importância, o senado esteve reunido na capital. Até então, os
embaixadores das nações limítrofes que tinham vindo à Utopia, aí levaram
a vida mais simples e modesta, porque estavam já ao par dos costumes
utopianos. Sabiam que o luxo de seus atavios não tem lá nenhum valor, a seda
é desprezada e o ouro uma coisa infame.
Mas, os anemolianos, muito mais afastados da
ilha, tinham tido muito poucas relações com ela. Ao saberem que os seus
habitantes vestiam-se de modo grosseiro e uniforme, imaginaram que esta
extrema simplicidade era causada pela miséria, e, mais vaidosos do que
sagazes, resolveram apresentar-se com a magnificência digna de enviados
celestes e ofuscar esses miseráveis insulares com o brilho de um fausto
deslumbrante.
Os três ministros, que eram grandes senhores de
Anemólia, ao entrar em Amaurota, faziam-se seguidos de cem pessoas, vestidas
de trapos de seda de diversas cores. Os próprios embaixadores traziam uma
vestimenta rica e suntuosa; trajavam uma roupa de lã tecida com ouro, traziam
colares e brincos de ouro nas orelhas, anéis de ouro nos dedos e os seus chapéus
resplandeciam de pedrarias. Enfim, estavam cobertos do que na Utopia constitui
o suplício do escravo, a marca vergonhosa da infâmia, o brinquedo da criança.
Era divertido ver a orgulhosa satisfação dos
embaixadores e das pessoas do seu séquito, que, comparavam o luxo de seus
paramentos às vestes simples e negligentes do povo utopiano, espalhado em
massa à sua passagem. De outro lado, não era menos curioso observar a
atitude da população, e como esses estrangeiros se enganavam em sua
expectativa, e como estavam longe de despertar a estima e as honras que tinham
imaginado.
A parte um pequeno número de utopianos, que
tinha viajado no exterior por graves motivos, todos os outros olhavam com
piedade todo este aparato suntuoso; os utopianos saudavam os mais ínfimos
lacaios do cortejo, tomando-os por embaixadores, e deixavam passar os
embaixadores, sem lhes dar mais atenção do que aos lacaios, porque os viam
carregados de cadeias de ouro como seus escravos.
As crianças que já tinham abandonado os
diamantes e as pérolas e que as viam nos chapéus dos embaixadores, puxavam
suas mães, gritando:
Veja este grandalhão que ainda traz pedrarias
como se fosse pequenino.
E as mães respondiam gravemente:
Calai-vos, meu filho, é, eu penso, um dos bufões
da embaixada.
Muitos criticavam a forma dessas correntes de
ouro.
Elas são, diziam, muito finas, e poderiam ser
quebradas facilmente; além disso, não estão bem fechadas e apertadas, e o
escravo poderia se desembaraçar delas, se quisesse, e fugir.
Dois dias depois de sua entrada em Amaurota, 08
embaixadores compreenderam que os utopianos desprezavam o ouro tanto quanto
ele era venerado no seu país. Tiveram ocasião de observar no corpo de um
escravo mais ouro e prata do que o que trazia toda a sua escolta. Então,
humilhados em sua vaidade e envergonhados da mistificação de que tinham sido
vítimas, despojaram-se apressadamente do fausto que tão orgulhosamente
tinham exposto. As relações íntimas que entretiveram na Utopia,
ensinaram-lhes quais eram os princípios e os costumes de seus habitantes.
Os utopianos admiram-se de que seres razoáveis
possam se deleitar com a luz incerta e duvidosa de uma pedra ou de uma pérola,
quando têm os astros e o sol com que encher os olhos. Encaram como louco
aquele que se acredita mais nobre e mais estimável só porque está coberto
de uma lã mais fina, lã tirada das costas de um carneiro, e que foi usada
primeiro por este animal. Admiram-se que o ouro, inútil por sua própria
natureza, tenha adquirido um valor fictício tão considerável que seja muito
mais estimado do que o homem; ainda que somente o homem lhe tenha dado este
valor e dele se utilize, conforme seus caprichos.
Espantam-se também que um rico, de inteligência
de chumbo, estúpido como uma acha de lenha, tão tolo quanto imoral, mantenha
em sua dependência uma multidão de homens sábios e virtuosos, apenas porque
a sorte lhe deixou algumas pilhas de escudos.
Mas, dizem, a fortuna pode traí-lo e a lei (que
tanto quanto a sorte precipita freqüentemente o homem do pináculo ao lodo)
pode arrancar-lhe o dinheiro, fazendo-o passar às mãos do mais ignóbil de
seus lacaios. Então, este mesmo rico se sentirá feliz em passar também, na
companhia de seu dinheiro, a serviço de seu antigo criado.
Há uma outra loucura que os utopianos detestam
ainda mais, e que dificilmente concebem, é a loucura dos que rendem
homenagens quase divinas a um homem porque é rico, sem serem, entretanto, nem
seus devedores nem seus súditos. Os insensatos sabem, não obstante, como é
sórdida a avareza desses Cresos egoístas; sabem, perfeitamente, que nunca
terão um vintém de todos os tesouros destes últimos.
Nossos insulares adquirem semelhantes
sentimentos, parte no estudo das letras, parte na educação que recebem no
seio de uma república cujas instituições são formalmente opostas a todas
as nossas espécies e gêneros de extravagância. É verdade que um número
muito pequeno é dispensado dos trabalhos materiais, entregando-se
exclusivamente à cultura do espírito. São, como já disse, aqueles que,
desde a infância, demonstraram aptidões raras, um gênio penetrante, vocação
científica. Mas nem por isso se deixa de dar uma educação liberal a todas
as crianças; e a grande massa dos cidadãos - homens e mulheres - consagra,
cada dia, seus momentos de repouso e liberdade aos trabalhos intelectuais.
Os utopianos aprendem as ciências em sua própria
língua, rica e harmoniosa, intérprete fiel do pensamento; ela é difundida,
mais ou menos alterada, sobre uma grande extensão do globo.
Antes de nossa chegada, os utopianos nunca
tinham ouvido falar nesses filósofos tão famosos no nosso mundo; entretanto,
fizeram as mesmas descobertas que nós, no terreno da música, da aritmética,
da dialética, da geometria. Se igualam em quase tudo os nossos antigos, são
bastante inferiores aos dialéticos modernos, porque ainda não inventaram
nenhuma dessas regras sutis de restrição, amplificação, suposição, que
se ensinam à juventude nas escolas de lógica. Ainda não aprofundaram as idéias
segundas; e, quanto ao homem em geral, ou universal, segundo a gíria metafísica,
este colosso, o maior dos gigantes, que nos mostram aqui, ninguém na Utopia
pode ainda percebê-lo.
Em compensação, conhecem de uma maneira
precisa o curso dos astros e o movimento dos corpos celestes. Imaginaram máquinas
que representam com grande exatidão os movimentos e as posições respectivas
do sol e da lua e dos astros visíveis acima do seu horizonte. Quanto aos ódios
e às amizades dos planetas e às demais imposturas de adivinhação pelo céu,
nem mesmo em sonhos disso se ocupam. Sabem prever, por indícios confirmados
por uma longa experiência, a chuva, o vento e as outras revoluções do ar.
Fazem apenas conjecturas sobre as causas desses fenômenos, sobre o fluxo e o
refluxo do mar, sobre a composição salina dessa imensa massa líqüida, a
origem e a natureza do céu e do mundo. Seus sistemas coincidem em certos
pontos com os dos nossos antigos filósofos; e em outros, se afastam. Mas, nas
novas teorias que imaginaram, há dissidências entre eles, como entre nós.
Em filosofia moral, agitam as mesmas questões
que os nossos doutores. Procuram na alma do homem, no seu corpo e nos objetos
exteriores, o que pode contribuir para sua felicidade; perguntam, procuram
saber se o nome de Bem convém indiferentemente a todos os elementos da
felicidade material e intelectual, ou só ao desenvolvimento das faculdades do
espírito. Dissertam sobre a virtude e o prazer; mas a primeira e principal de
suas controvérsias tem por fito determinar a condição única, ou as
diversas condições da felicidade do homem.
Talvez possais acusá-los de propender demais
para o epicurismo, porque, se a volúpia não é, para eles, o único elemento
da felicidade, é um dos mais essenciais. E, fato singular, invocam em apoio
dessa moral voluptuosa a religião tão grave e severa, tão triste e rígida.
Têm por princípio não discutir jamais sobre o bem e o mal, sem partir dos
axiomas da religião e da filosofia; de outra maneira, temeriam raciocinar em
bases falhas e edificar falsas teorias.
Eis aqui seu catecismo
religioso:
A alma é imortal: Deus que é bom, criou-a para
ser feliz. Depois da morte, as recompensas coroam a virtude, suplícios
atormentam o crime.
Embora esses dogmas pertençam à religião, os
utopianos pensam que a razão pode induzir a crer neles e aceitá-los Não
hesitam em declarar que, na ausência desses princípios, fora preciso ser estúpido
para não procurar o prazer por todos os meios possíveis, criminosos ou legítimos.
A virtude consistiria, então, em escolher, entre duas volúpias, a mais
deliciosa, a mais picante; e em fugir dos prazeres a que se seguissem dores
mais vivas do que o gozo que tivessem proporcionado.
Mas praticar virtudes severas e difíceis,
renunciar aos prazeres da vida, sofrer voluntariamente a dor e nada esperar
depois da morte em recompensa às mortificações da terra, é, aos olhos dos
nossos insulares, o cúmulo da loucura.
A felicidade, dizem, não está em toda espécie
de voluptuosidade; está unicamente nos prazeres bons e honestos. É para
esses prazeres que tudo, até a própria virtude, arrasta irresistivelmente a
nossa natureza; são eles que constituem a felicidade.
Os utopianos definem a virtude: viver segundo a
natureza. Deus, criando o homem, não lhe deu outro destino.
O homem que segue o impulso da natureza, é
aquele que obedece à voz da razão, em seus ódios e seus apetites. Ora, a
razão inspira, em primeiro lugar, a todos os mortais o amor e a adoração da
majestade divina, à qual nós devemos o ser e o bem estar. Em segundo lugar,
ela nos ensina e nos instiga a viver alegremente e sem lamentações, e a
proporcionar aos nossos semelhantes, que são nossos irmãos, os mesmos benefícios.
De fato, o mais enfadonho e o mais fanático
zelador da virtude, o inimigo mais odiento do prazer, ao vos propor imitar
seus trabalhos, suas vigílias e mortificações, ordena-vos, também,
mitigar, com todas as vossas forças, a miséria e as aflições dos outros.
Esse moralista severo cumula de elogios, em nome da humanidade, o homem que
consola e que salva o homem; e crê, assim, que a virtude mais nobre e mais
humana, em qualquer terreno, consiste em suavizar os sofrimentos do próximo,
arrancá-lo ao desespero e à tristeza, restituir-lhe as alegrias da vida, ou,
em outros termos, fazê-lo ter parte também na volúpia.
E por que a natureza não induziria cada um de nós
a se fazer, a si mesmo, o mesmo bem que aos outros? Pois, das duas uma: ou uma
existência agradável, isto é, a volúpia, é um bem ou um mal. Se é um
mal, não somente não se deve ajudar seus semelhantes a fruí-la, mas ainda
deve-se arrancá-la como coisa perigosa e condenável. Se é um bem, pode-se e
deve-se procurá-la para si próprio como para os outros. Por que iríamos ter
menos compaixão de nós do que dos outros? A natureza, que inspira em nós a
caridade por nossos irmãos, não ordena que sejamos cruéis conosco mesmos.
Eis o que leva os utopianos a afirmarem que uma
vida honestamente agradável quer dizer que a volúpia é o fim de todas as
nossas ações; que tal é a vontade da natureza e que obedecer a esta vontade
é ser virtuoso.
A natureza, dizem eles, convida todos os homens
a se ajudarem mutuamente e a partilharem em comum do alegre festim da vida.
Este preceito é justo e razoável, pois não há indivíduo tão altamente
colocado acima do gênero humano que somente a Providência deva cuidar dele.
A natureza deu a mesma forma a todos; aqueceu-os todos com o mesmo calor,
envolve todos com o mesmo amor; o que ela reprova, é aumentar o próprio bem
estar agravando a infelicidade de outrem.
É por isto que os utopianos pensam que é
necessário observar não só as convenções privadas entre simples cidadãos,
mas ainda as leis públicas, que regulam a distribuição das comodidades da
vida, em outros termos, que distribuem a matéria do prazer, quando estas leis
foram justamente promulgadas por um bom príncipe, ou sancionadas pelo
consentimento geral de um povo, nem oprimido pela tirania, nem embaído pelo
artifício.
A sabedoria reside em procurar a felicidade sem
violar as leis. A religião é trabalhar pelo bem geral. Calcar aos pés a
felicidade de outrem, em busca da sua, é uma ação injusta.
Ao contrário, privar-se de algum prazer, para
comunicá-lo a outrem, é indício de um coração nobre e humano, e que, aliás,
torna a achá-lo muito superior ao prazer sacrificado. Primeiro que tudo, esta
boa ação é recompensada pela reciprocidade dos serviços; em seguida, o
testemunho da consciência, a lembrança e o reconhecimento dos que foram
obsequiados causam à alma delícia maior que não poderia ter dado ao corpo o
objeto de que se foi privado. Finalmente, o homem que tem fé nas verdades
religiosas, deve estar firmemente persuadido de que Deus recompensa a privação
voluntária de um prazer efêmero e passageiro, com alegrias inefáveis e
eternas
Assim, em última análise, os utopianos reduzem
todas as ações e mesmo todas as virtudes ao prazer, como finalidade.
Eles chamam volúpia todo o estado ou todo
movimento da alma e do corpo, nos quais o homem experimenta uma deleitação
natural. Não é sem razão que eles acrescentam a palavra natural, porque não
é semente a sensualidade, é também a razão que nos atrai para as coisas
naturalmente deleitáveis; e por isto devemos compreender os bens que se podem
procurar sem injustiça, os gozos que não privem de um prazer mais vivo, e
que não arrastem consigo nenhum mal.
Há coisas fora da natureza, que
os homens, por uma convenção absurda, intitulam prazeres (como se tivessem o
poder de transformar a essência tão facilmente como modificam as palavras).
Essas coisas, longe de contribuir para a felicidade, são outros tantos obstáculos
em seu caminho; aos que seduzem, elas impedem gozarem satisfações puras e
verdadeiras; viciam o espírito, preocupando-o com a idéia de um prazer
imaginário. Há, com efeito, uma quantidade de coisas, às quais a natureza não
juntou nenhuma doçura, as quais ela chegou até a misturar de amargura e que,
no entanto, os homens olham como altas volúpias de algum modo necessárias à
vida, apesar de, na sua maioria, serem essencialmente más e só estimular as
paixões perversas.
Os utopianos classificam nessa espécie de
prazeres bastardos, a vaidade daqueles de que já falei, que se crêem
melhores porque usam uma roupa mais bonita. A vaidade desses tolos é
duplamente ridícula.
Em primeiro lugar, consideram suas roupas acima
de suas pessoas; pois, quanto ao que é de uso, em que, vos pergunto, uma lã
mais fina prevalece sobre uma lã mais grossa? Entretanto, os insensatos, como
se se distinguissem da multidão pela excelência de sua natureza, e não pela
loucura de seu comportamento, erguem orgulhosamente a cabeça, imaginando
valer um grande preço. Exigem, em virtude da rica elegância de suas vestes,
honras que não ousariam esperar com um traje simples e comum; mostram-se
indignados quando se olha a sua roupa com um olhar de indiferença.
Em segundo lugar, esses mesmos homens não são
menos estúpidos por se alimentarem de honras sem realidade e sem proveitos.
É natural e verdadeiro o prazer que se sente em frente de um adulador que
tira o chapéu e dobra humildemente o joelho? Uma genuflexão cura alguém da
febre ou da gota?
Entre aqueles que ainda seduz uma falsa imagem
do prazer, estão os nobres que se comprazem com orgulho e amor no pensamento
de sua nobreza. E de que se gabam? Do acaso que os fez nascer em uma longa série
de ricos antepassados, e, sobretudo, de ricos proprietários (porque a nobreza
de hoje é a riqueza). Todavia, se esses insensatos nada tivessem herdado de
seus pais, ou tivessem devorado todo seu patrimônio, ainda assim não se
sentiriam, por isso, diminuídos na sua nobreza de um só cabelo.
Os utopianos classificam os amadores de
pedrarias na categoria dos maníacos de nobreza. Os homens que têm essa paixão,
julgam-se uns pequenos deuses, quando encontram uma pedra bela e rara,
particularmente apreciada na sua época e no seu país, pois. a mesma pedra não
conserva sempre e por toda a parte o mesmo valor. O amador de pedras as compra
nuas e sem ouro; leva mesmo a precaução a ponto de exigir do vendedor uma
caução e até o juramento que o diamante, o rubi, o topázio são de bom
quilate, de tal modo teme que um falso brilhante impressione os seus olhos!
Que prazer há, pois, em olhar uma pedra natural de preferência a uma
artificial, desde que o olho não apreende a diferença? Tanto uma como outra
não têm realmente mais valor para um que enxerga do que para um cego.
Que dizer dos avarentos que acumulam dinheiro e
mais dinheiro, não para seu uso, mas para se consumir na contemplação de
uma enorme quantidade de metal? O prazer desses ricos miseráveis não é pura
quimera? Será mais feliz aquele que, por uma extravagância mais estúpida
ainda, enterra os seus escudos? Este último nem ao menos vê o seu tesouro, e
o medo de perdê-lo faz que o perca de fato. Mas enterrar ouro não é o mesmo
que roubar a si próprio e aos outros? No entanto, o avarento sente-se tranqüilo,
salta de alegria quando enterrou bem suas riquezas. Agora, suponhamos que alguém
se apodere desse depósito confiado à terra, e que o nosso Harpagão
sobreviva dez anos à sua ruína, sem o saber; eu vos pergunto, que lhe
importou nesse intervalo, ter conservado ou perdido o tesouro? Enterrado ou
roubado, ele lhe deu exatamente a mesma serventia.
Os utopianos encaram também como imaginários
os prazeres da caça e dos jogos de azar. Dos últimos não conhecem os
desatinos senão de nome, não os praticando jamais. Que divertimento podereis
encontrar, dizem eles, em jogar um dado sobre a mesa? E supondo que houvesse
nisso qualquer prazer, vós já vos fartastes tantas vezes dele que deve
ter-se tornado enfadonho e insípido
Não é mais fatigante do que agradável ouvir
os cães ladrarem e ganirem? Em que é mais divertido ver correr um cão atrás
de uma lebre do que vê-lo atrás de outro cachorro? Entretanto, se é a
corrida que faz o prazer, a corrida existe nos dois casos. Mas não é antes a
expectativa da morte ou a espera da carniceria o que apaixonam os homens pela
caça? E como não abrir a alma à piedade, como não ter horror a esta matança,
em que o cão forte, cruel e audaz, dilacera a lebre fraca, tímida e
fugitiva?
É por isso que os nossos insulares proíbem a
caça aos homens livres, como um exercício indigno deles; ela só é
permitida aos magarefes, que são todos escravos. E mesmo na opinião deles, a
caça é a parte mal vil da arte de matar os animais; as outras partes desse
ofício são muito mais consideradas, porque trazem maior lucro e porque nelas
só matam os animais por necessidade, enquanto que o caçador procura no
sangue e na morte um divertimento estéril.
Os utopianos desprezam todas essas alegrias, e
muitas outras semelhantes em número quase infinito, e que o vulgo considera
como bens supremos, mas cuja suavidade aparente não se encontra na natureza.
Mesmo que esses prazeres enchessem os sentidos da mais deliciosa embriaguez (o
que parece ser o efeito natural da volúpia) os utopianos sustentam que os
mesmos nada têm de comum com a verdadeira voluptuosidade; porque, dizem, esse
prazer sensual não vem da própria natureza do objeto, é o fruto de hábitos
depravados que fazem achar doce o que é amargo. É assim que as mulheres grávidas,
cujo gosto está corrompido, acham a resina e o sebo mais doces que o mel.
Os utopianos distinguem diversas espécies de
prazeres verdadeiros: uns se relacionam com o corpo, outros com a alma.
Os prazeres da alma estão no desenvolvimento da
inteligência e nas puras delícias que acompanham a contemplação da
verdade. Nossos insulares acrescentam ainda o testemunho de uma vida irreprochável
e a esperança certa de uma imortalidade bem-aventurada.
Eles dividem em duas espécies as
voluptuosidades do corpo:
A primeira espécie compreende todas volúpias
que exercem sobre os sentidos uma impressão atual, manifesta, e cuja causa é
o restabelecimento dos órgãos consumidos pelo calor interno. Essa impressão
nasce de um lado, da ação de beber e comer que devolve as forças perdidas;
de outro lado, das funções animais que expelem do corpo as matérias supérfluas.
Tais são as secreções intestinais, o coito, e o alívio de uma comichão
qualquer, ao esfregar-se ou ao coçar-se.
Algumas vezes o prazer dos sentidos não provém
das funções animais que reparam os órgãos esgotados, ou os aliviam de uma
exuberância penosa; mas pelo efeito de uma força interior e indefinível que
comove, encanta e seduz; tal é o prazer que nasce da música.
A segunda espécie de volúpia sensual consiste
no equilíbrio estável e perfeito de todas as partes do corpo, isto é, numa
saúde isenta de mal estar. Com efeito, o homem que não é afetado pela dor,
experimenta em si um certo sentimento de bem estar, mesmo que nenhum objeto
exterior agite agradavelmente os seus órgãos. É verdade que esta espécie
de volúpia não afeta nem atordoa os sentidos, como por exemplo os prazeres
da mesa; apesar disso, muitos a colocam em primeiro lugar; e quase todos os
utopianos declaram que ela é a base e o fundamento da verdadeira felicidade.
Porque, dizem, só uma saúde perfeita torna a condição da vida humana tranqüila
e apetecível; sem saúde, não há voluptuosidade possível; sem ela, a própria
ausência da dor não é um bem, é a insensibilidade do cadáver.
Uma viva disputa travou-se outrora na Utopia a
este respeito. Alguns pretendiam que não se devia contar no número dos
prazeres uma saúde estável e tranqüila, porque esta não dá a perceber um
gozo atual e diferente, como as sensações que nos vêem de fora. Mas hoje,
todos, com pequeníssima exceção, concordam em proclamar a saúde como uma
volúpia essencial. Com efeito, para eles, é a dor que, na moléstia, é a
inimiga implacável do prazer; ora, a moléstia é igualmente inimiga da saúde;
por que então não haveria prazer na saúde, da mesma forma que há dor na
moléstia? Pouco importa que a doença seja a dor ou que a dor seja inerente
à moléstia, desde que os resultados são de todo semelhantes. Ainda que se
considere a saúde como a própria voluptuosidade, ou como a causa que a
produz necessariamente, assim como o fogo produz necessariamente o calor, o
homem de saúde inalterável deve nos dois casos experimentar um certo prazer.
Quando comemos, perguntam os utopianos, não é a saúde que, começando a
desfalecer, luta contra a fome com a ajuda dos alimentos? Estes avançam,
repelindo o seu inimigo cruel e dão ao homem a alegria que acompanha o
retorno do seu vigor normal. Mas a saúde que lutara com tanto gosto, não
teria o direito de rejubilar-se após a vitória? O que ela procurava na luta
era a sua força primitiva; e obtido este resultado, é admissível que venha
a cair num entorpecimento estúpido, sem conhecer e apreciar a própria
felicidade?
Em conseqüência disto, os utopianos rejeitam
completamente a opinião de que o homem sadio não tem consciência de seu
estado. Segundo eles, é necessário estar-se doente ou adormecido para não
sentir que se está são; seria preciso ser-se de pedra, ou estar-se atacado
de letargia, para não se comprazer de uma saúde perfeita, e nisso sentir
encanto. Ora, este encanto, esta satisfação, que outra coisa é senão a
voluptuosidade?
Eles se entregam acima de tudo aos prazeres do
espírito, que encaram como o principal e mais essencial de todos os prazeres;
colocam no plano dos mais puros e mais desejáveis, a prática da virtude e a
consciência de uma vida sem mancha. Entre as volúpias corporais dão preferência
à saúde porque não se deve procurar a boa mesa e os outros prazeres da vida
animal, senão visando a conservação da saúde, visto que essas coisas não
são deleitáveis em si mesmas, mas unicamente em virtude de se oporem à
invasão secreta da moléstia.
O homem prudente previne o mal, de preferência
a empregar os remédios; evita a dor antes de recorrer aos alívios. De
conformidade com essas normas, os utopianos usam de todos os prazeres
corporais, para cuja privação fosse preciso o emprego de meios curativos.
Mas não depositam toda sua felicidade nesses prazeres; do contrário, o cúmulo
da felicidade humana seria a fome e a sede permanentes, pois que seria preciso
então comer e beber sem cessar. Certamente semelhante vida seria tão miserável
quão ignóbil.
Os prazeres animais são os mais vis, os menos
puros, e sempre uma dor os acompanha. Não está presa a fome ao prazer de
comer, e isto em proporções desiguais? Com efeito, a sensação da fome é a
mais violenta; ela é também a mais durável pois nasce antes do prazer e não
morre senão com ele.
Os utopianos, formados nesses princípios,
pensam que se não deve dar importância às volúpias carnais senão na
medida em que são úteis. Todavia, eles se entregam alegremente a elas,
agradecidos à natureza, que, ao cuidar do homem, tem a ternura de uma mãe e
mistura impressões tão doces e suaves com as funções indispensáveis da
vida.
Que triste destino seria o
nosso, se nos fosse preciso expulsar, à força de venenos e drogas amargas, a
fome e a sede de cada dia, como expulsamos as moléstias que nos assaltam de
longe em longe!
Eles mantêm e cultivam de boa vontade a beleza,
o vigor, a agilidade do corpo, os dons mais agradáveis e felizes da natureza.
Admitem também os prazeres que a natureza criou exclusivamente para o homem e
que fazem a graça e o encanto da vida. Porque o animal não demora a olhar
sobre a magnificência da criação, sobre a ordem e o arranjo do universo.
Sente o odor para distinguir a alimentação, mas não saboreia a delícia dos
perfumes; não conhece as relações dos sons, e não aprecia a dissonância
nem a harmonia.
Finalmente, em toda espécie de satisfações
sensuais, os utopianos não esquecem jamais esta regra prática:
Fugir à volúpia que impede gozar uma; volúpia
maior ou que é seguida de qualquer dor. Ora, a dor é, a seus olhos, a conseqüência
inevitável de toda volúpia desonesta.
Eis ainda um de seus princípios:
Desprezar a beleza do corpo, enfraquecer suas
forças, converter sua agilidade em entorpecimento, esgotar seu temperamento
pelo jejum e pela abstinência, arruinar a saúde, em uma palavra, repelir
todos os favores da natureza, no intuito de devotar-se mais eficazmente à
felicidade humana, na esperança de que Deus venha recompensar essas penas de
um dia por êxtases de alegria eterna, é dar mostra de religião sublime. Mas
crucificar a carne, sacrificar-se por um vão fantasma de virtude, ou para
habituar-se antecipadamente a misérias que talvez não aconteçam nunca, é
dar mostra de loucura, de uma covarde crueldade para consigo mesmo, de
orgulhosa ingratidão para com a natureza. É pisar aos pés os benefícios do
Criador, como desdenhando ser-lhe obrigado em alguma coisa.
Tal é a teoria utopiana no que se refere à
virtude, e ao prazer. A menos que uma revelação descida do céu inspire ao
homem qualquer coisa de mais santo, eles crêem que a razão humana não pode
conceber nada de mais verdadeiro.
Esta moral é boa, é má? É o que não
discutirei; não tenho tempo para tanto e não é, aliás, necessário ao meu
objetivo; faço apenas história e não uma apologia. O que é certo para mim,
é que o povo da Utopia, graças às suas instituições, é o primeiro de
todos os povos, e que não existe em parte alguma república mais feliz.
O utopiano é ágil e nervoso; sem ser de
pequeno talhe, é mais vigoroso do que parece exteriormente. A ilha não é de
igual fertilidade em todos os lugares; o ar não é em toda a parte igualmente
puro e salubre. Os habitantes combatem pela temperança as influências
funestas da atmosfera; corrigem o solo por meio de uma excelente cultura; de
modo que em nenhuma outra parte vi jamais gado tão robusto, nem mais
abundantes colheitas. Em pais nenhum a vida do homem é mais longa e as moléstias
menos numerosas.
Não somente os cidadãos agricultores executam
com grande perfeição os trabalhos que fertilizam uma terra naturalmente
ingrata; mas o povo em massa é empregado algumas vezes em extirpar florestas
mal situadas para a comodidade de transporte, e plantar novas perto do mar,
dos rios ou das cidades; porque de todos os produtos do solo, a madeira é o
mais difícil de transportar por terra.
O povo utopiano é espiritual, amável,
engenhoso, ama o lazer, é paciente no trabalho, quando o trabalho é necessário;
sua paixão favorita é o exercício e o desenvolvimento do espírito. Durante
a nossa estada na ilha tivemos a ocasião de dizer algo aos seus habitantes
das letras e ciências da Grécia. Era verdadeiramente curioso ver o ardor com
que esses bons insulares nos suplicavam interpretar-lhes os autores gregos; não
lhes falamos dos latinos, pensando que não apreciariam desses últimos senão
os historiadores e poetas. Afinal foi forçoso ceder às suas súplicas; e,
confessar-vos-ei, foi de nossa parte um ato de pura complacência de que não
esperávamos tirar grande proveito. Mas, depois de algumas lições, tínhamos
razão em nos felicitar pelo êxito do empreendimento. Ficamos maravilhados da
facilidade com que os meus discípulos copiavam a forma das letras, da nitidez
de sua pronúncia, da presteza de sua memória e da fidelidade de suas traduções.
É verdade que a maior parte dos que se tinham entregue a esse estudo, a princípio,
espontaneamente, com tão belo ardor, depois foi obrigada a fazê-lo por um
decreto do senado; eram eles os sábios mais notáveis da classe dos letrados,
e homens de idade madura. Em menos de três anos não havia nada nas obras dos
bons autores que não compreendessem perfeitamente à simples leitura, exceto
as dificuldades provenientes de erros tipográficos.
Sou de opinião que a grande facilidade com que
aprenderam o grego prova que esta língua não lhes era inteiramente
desconhecida. Creio que são gregos de origem e ainda que o seu idioma se
aproxime muito do persa, nos nomes das suas cidades e magistraturas
encontram-se alguns traços da língua grega.
Quando de minha
quarta viagem à Utopia, em lugar de mercadorias, embarquei com um lindíssimo
pacote de livros, resolvido que estava de só regressar à Europa depois de
longo tempo. Ao deixar os utopianos, leguei-lhes minha biblioteca; ficaram
assim, por meu intermédio, com quase todas as obras de Platão, um grande número
das de Aristóteles, o livro de Teofrasto sobre as Plantas, que estava rasgado
em várias passagens, o que lastimo infinitamente.
Durante a travessia descuidei-me dele e por
infelicidade um macaco deu com o livro, e pôs-se a divertir-se arrancando-lhe
as folhas ao acaso. Dentre os gramáticos, só pude dar aos nossos insulares o
Lascarias, por não ter trazido o grande Teodoro; em matéria de dicionários
dei-lhes o Hesichius e o Dioscórido.
Plutarco é o autor favorito deles; a
jovialidade, a sedução de Luciano os encantam. Entre os poetas possuem Aristófanes,
Homero, Eurípedes e Sófocles. Como historiadores, deixei-lhes Tucídides,
Heródoto e Herodiano.
De medicina, têm algumas obras de Hipócrates e
o Microtecné, de Galeno, que meu companheiro .de viagem, Tricius Apinas,
levara consigo. Os dois últimos livros são muito apreciados entre eles
porque se não há país algum onde a medicina seja menos necessária do que
na Utopia, em compensação em parte alguma é mais respeitada. Os utopianos a
situam entre as partes mais úteis e mais nobres da filosofia natural. O médico,
costumam dizer, que se aplica em penetrar os mistérios da vida, não somente
tira deste estudo admiráveis prazeres, como ainda se torna agradável ao
divino obreiro, autor da vida. Nas idéias utopianas, o Criador, assim como os
operários da terra, expõe sua máquina do mundo aos olhos do homem, único
ser capaz de compreender esta bela imensidade. Deus olha com amor aquele que
admira essa grande obra e procura descobrir suas molas e leis; olha com
piedade o que permanece frio e estúpido perante esse maravilhoso espetáculo,
como um animal sem alma.
É fácil compreender agora por que os
utopianos, cujo espírito é cultivado incessantemente pelo estudo das ciências
e das letras, são tão dotados para as artes e invenções úteis ao bem
estar da vida. Devem a nós a imprensa e a fabricação do papel; mas nisto
seu próprio gênio lhes serviu tanto quanto as nossas lições, pois não
conhecíamos bem a fundo nenhuma dessas duas artes. Não fizemos senão
mostrar as invenções tipográficas dos Aldos e falar-lhes em termos vagos da
matéria empregada na fabricação do papel, e demais processos de impressão.
Logo adivinharam o que apenas havíamos indicado.
Antes escreviam em peles, cascas, folhas de
papiros; ensaiaram logo depois fabricar papel e imprimir. Estas primeiras
tentativas foram estéreis, mas à força de experiências mil vezes repetidas
chegaram a obter um êxito completo; e se tivessem à mão todos os
manuscritos gregos poderiam tirar numerosas edições. Eles não possuem hoje
outros livros além dos deixados por mim; mas estes livros já foram
multiplicados por milhares de exemplares.
O estrangeiro que aporta à Utopia é bem
recebido, se se recomenda por um mérito real, ou se longas viagens lhe deram
uma ciência exata dos homens e das coisas.
Foi por este último título que fomos recebidos
de braços abertos ali, onde enorme é a curiosidade de conhecer-se o que se
passa no estrangeiro. O comércio com a ilha atrai pouca gente; porque, à
exceção do ferro, o que se pode levar a Utopia? Ouro? Prata? Mas quem o
fizesse certamente seria obrigado a voltar com um e outro. Quanto ao comércio
de exportação, são os próprios utopianos que o fazem; e ao fazê-lo têm
em vista dois objetivos: primeiro, pôr-se ao corrente de tudo que se passa no
exterior; e depois, manter e aperfeiçoar sua navegação.
DOS ESCRAVOS
Nem
todos os prisioneiros de guerra são indistintamente entregues à escravidão;
mas unicamente os indivíduos pegados de armas na mão.
Os filhos de escravos não são escravos. O
escravo estrangeiro torna-se livre ao tocar na terra da Utopia.
A servidão recai particularmente sobre os cidadãos
culpáveis de grandes crimes e sobre os condenados à morte pertencentes ao
estrangeiro. Estes são muito numerosos na Utopia; os utopianos vão mesmo
procurá-los no exterior onde os compram a vil preço; algumas vezes obtêm-nos
até de graça.
Todos os escravos são submetidos a um trabalho
contínuo, e trazem correntes. Os que são tratados, porém, com mais rigor, são
os indígenas, que são tidos como os mais miseráveis dos celerados, dignos
de servir de exemplo aos outros por uma pior degradação. Com efeito, eles
receberam todos os germes da virtude; aprenderam a ser felizes e bons, e, no
entanto, abraçaram o crime.
Há ainda uma outra espécie de escravos, os
trabalhadores pobres das regiões vizinhas que vêm se oferecer
voluntariamente para trabalhar. São em tudo tratados como cidadãos; apenas são
obrigados a trabalhar um pouco mais, uma vez que têm o hábito de fadiga
maior. São livres de partir quando querem e nunca são devolvidos de mãos
vazias.
Já disse dos cuidados afetuosos que têm os
utopianos pelos enfermos; nada é poupado que possa contribuir para sua cura,
quer em remédios, quer em alimentos.
Os infelizes afetados de males incuráveis
recebem todos os consolos, todas as atenções, todos os alívios morais e físicos,
capazes de lhes tornar a vida mais suportável. Mas quando a esses males incuráveis
se juntam sofrimentos atrozes, que ninguém pode suprimir ou suavizar, os
padres e magistrados se apresentam ao paciente e lhe levam a exortação
suprema.
Mostram-lhe que ele está despojado dos bens e
das funções da vida; que não faz senão sobreviver à própria morte,
tornando-se assim um peso para si e os outros. Persuadem-no, então, a não
alimentar mais o mal que o devora, e a morrer com resolução, uma vez que a
existência não é para ele senão uma horrenda tortura.
Confiai - dizem-lhe - quebrai as cadeias que vos
amarram, e desprendei-vos, por vossas próprias mãos, da masmorra da vida; ou
pelo menos consenti que outros dela vos libertem. Vossa morte não é uma ímpia
repulsa aos benesses da existência, mas o termo de um cruel suplício.
Obedecer, neste caso, à voz dos padres, intérpretes
da divina vontade, é fazer obra religiosa e santa.
Os que se deixam persuadir põem fim a seus dias
pela abstinência voluntária ou são adormecidos por meio de um narcótico
mortal, e morrem sem se aperceber. Os que não querem a morte, nem por isso
passam a receber menos atenções e cuidados; quando cessam de viver a opinião
pública honra sua memória.
O homem que se mata sem motivo reconhecido pelo
magistrado e pelo padre, é julgado indigno da terra e do fogo; seu corpo é
privado de sepultura e atirado ignominiosamente nos pântanos.
As raparigas não se podem casar antes dos
dezoito anos; os rapazes, antes dos vinte e dois.
Os indivíduos de um e doutro sexo, convictos de
se terem entregue ao prazer antes do casamento, são passíveis de uma censura
severa; e o casamento lhes é completamente interdito, a menos que o príncipe
releve a falta. O pai e a mãe de família, em cuja casa foi o delito
praticado, ficam desonrados por não terem velado com bastante cuidado pelo
comportamento de seus filhos.
res garantias de probidade política.
O utopiano não se deixará corromper pelos atrativos da riqueza, por mais
brilhante que ela possa ser, porque dentro de pouco já lhe não serviria para
nada: quando tivesse de retornar à pátria dentro de poucos anos ou meses. Tão
pouco o utopiano deixar-se-ia levar pelo amor ou pelo ódio, pois é
completamente desconhecido dos seus administrados.
Infeliz do país onde a avareza e as afeições
privadas sentam-se no banco do magistrado! Adeus justiça! a mola mais firme
dos Estados!
A república utopiana reconhece como aliados os
povos que lhe vêm pedir chefes, e por amigos os que lhe devem um benefício.
Quanto aos tratados que as outras nações assinam tão freqüentemente para
rompê-los e renová-los em seguida, ela nunca os assina.
Para que servem os tratados? interrogam os
utopianos. Não uniu a natureza o homem ao homem por laços bastante indissolúveis?
Aquele que despreza esta aliança íntima e sagrada terá escrúpulo em violar
um protocolo?
Consolida-os nesta opinião o fato de que nas
terras desse novo mundo é raro que as convenções entre príncipes sejam
observadas de boa fé
Na Europa, e principalmente nas regiões onde
reinam a fé e a religião do Cristo, a majestade dos tratados é santa e
inviolável. Isso decorre em parte da justiça e da bondade dos monarcas, em
parte do temor e do respeito que lhes inspiram os soberanos pontífices. Os
papas em nada se comprometem que não executem religiosamente; por isso
obrigam os outros soberanos a cumprirem exatamente as suas promessas,
empregando o interdito pastoral e a severidade canônica para forçar os que
tergiversam. Os papas crêem com razão que seria vergonhoso para a
cristandade ver aqueles que se glorificam acima de tudo do nome de Fiéis, se
mostrarem infiéis As suas próprias convenções.
Mas, nesse novo mundo separado do nosso, menos
ainda pelo círculo equatorial do que pelos usos e costumes, não se presta
nenhuma confiança aos tratados. Uma repentina ruptura segue de ordinário os
juramentos de paz mais solenes e que receberam a consagração das mais santas
cerimônias. É muito fácil descobrir matéria para chicana no texto de uma
aliança; os negociadores insinuam de má fé, nos textos, manhosas escapatórias,
a fim de que o príncipe não fique jamais indissoluvelmente preso, e possa
encontrar sempre uma saída secreta para seus compromissos.
E, entretanto, este mesmo ministro que se
vangloria de falsificar assim as negociações, por conta do rei, seu senhor,
se percebesse que semelhantes embustes, ou melhor, velhacarias, eram
introduzidas num contrato entre simples particulares, este mesmo diplomata,
franzindo o sobrolho do alto de sua probidade, condenaria a fraude como um
sacrilégio digno da forca.
Por este exemplo, dir-se-ia que a justiça é
uma virtude plebéia e de baixo nível, a rastejar muito abaixo dos tronos dos
reis. A menos que se distingam duas espécies de justiças: uma boa para o
povo, que anda a pé e de cabeça baixa, encerrada numa estreita muralha que não
pode transpor; outra, para uso dos reis, infinitamente mais augusta e mais
elevada, infinitamente mais livre, e a qual só está inibida de fazer o que não
quer.
Sou levado a pensar que a deslealdade dos príncipes
nesses países longínquos é a causa que determina os utopianos a não
assinar nenhuma espécie de convenção diplomática. Mudariam talvez de opinião
se morassem na Europa.
Contudo, em tese, encaram como um mal a introdução
de tratados entre os povos, mesmo que fossem observados religiosamente. Este
uso habitua os homens a se considerarem mutuamente inimigos, nascidos para se
guerrearem sempre e para legitimamente se entredevorarem, na falta de um
tratado de paz; como se não houvesse mais uma sociedade natural entre duas nações
só porque uma colina ou. um rio as separa.
Ainda se as alianças garantissem a amizade dos
confederados, mas, na realidade, nunca eliminam elas todos os pretextos de
rompimento, e por conseguinte, de saque e de guerra, dada a leviandade dos
diplomatas que redigem os artigos. É raro que os plenipotenciários possam
abarcar todos os casos possíveis de proibições e compromissos, ou que os
formulem de uma forma perfeitamente clara e precisa.
Os utopianos têm por princípio que não se
deve ter por inimigo senão aquele que se torna culpado de injustiça ou violência.
A comunhão na mesma natureza parece-lhes um laço mais indissolúvel do que
todos os tratados.
O homem, afirmam, está unido ao homem de uma
maneira mais íntima e mais forte pelo coração e pela caridade do que pelas
palavras e protocolos.
DA GUERRA
Os
utopianos abominam a guerra como uma coisa puramente animal e que o homem, no
entanto, pratica mais freqüentemente do que qualquer espécie de animal
feroz. Contrariamente aos costumes de quase todas as nações, nada existe de
tão vergonhoso na Utopia como procurar a glória nos campos de batalha. Não
se quer dizer com isto que eles não se exercitem com muita assiduidade na
disciplina militar; as próprias mulheres são a isto obrigadas tanto quanto
os homens; certos dias são fixados para os exercícios, a fim de que ninguém
fique sem habilitação para o combate quando chegar o momento de combater.
Mas os utopianos não fazem a guerra sem graves
motivos. Só a empreendem para defender suas fronteiras ou repelir uma invasão
inimiga nas terras de seus aliados, ou ainda para libertar da escravidão e do
jugo de um tirano um povo oprimido. Neste caso, não consultam os seus
interesses; vêm apenas o bem da humanidade.
A república da Utopia presta gratuitamente
socorros a seus amigos, não só no caso de agressão armada, mas também para
vingar e obter reparação de uma injúria. Entretanto, no caso, ela só age
assim quando foi consultada antes da declaração de guerra; examina então
conscienciosamente a justiça da causa, e se o povo que cometeu o dano não o
quer reparar, é, então, declarado o único autor e o único responsável
pelos males da guerra.
Os utopianos tomam esta deliberação extrema
todas as vezes que se dá um saque em conseqüência de uma invasão armada.
Mas a sua cólera nunca é tão terrível como quando os negociantes de uma nação
amiga, sob o pretexto de algumas leis iníquas, ou de conformidade com uma
interpretação pérfida de leis justas, sofreram no estrangeiro vexações
injustas em nome da justiça.
Tal foi a origem da guerra que empreenderam
pouco antes da atual geração contra os alaopólitas e a favor dos nefelógitas.
Os alaopólitas, no dizer dos nefelógitas, causaram a alguns de seus
comerciantes prejuízos consideráveis, sob um pretexto legal qualquer. Fosse
ou não a queixa fundamentada, o fato é que resultou uma guerra atroz. Aos ódios
e às forças dos dois inimigos principais, juntaram-se as paixões e os
socorros dos países vizinhos. Nações poderosas foram violentamente
sacudidas, outras derrocadas. Esta deplorável sucessão de males só terminou
com a derrota completa e a escravidão dos alaopólitas. Estes últimos foram
submetidos à dominação dos nefelógitas, dado que a guerra não envolvia
interesse direto dos utopianos. Entretanto, os nefelógitas estavam longe da
situação florescente dos primeiros.
É com tamanho vigor que os nossos insulares
vingam o ultraje feito a seus amigos, mesmo que esteja em jogo apenas o
dinheiro destes últimos. São menos ciosos quanto a seus próprios negócios.
E se acontece que alguns de seus cidadãos são despojados de seus bens no
estrangeiro, vítimas de alguma trapaça, vingam-se do povo que cometeu o
ultraje cessando todo comércio com ele, a menos que tenha havido atentado
contra as pessoas.
Não é que tenham menos apego aos interesses de
seus concidadãos do que aos de seus aliados; porém suportam com menos paciência
as trapaças praticadas em prejuízo desses últimos, porque o negociante que
não é utopiano perde então uma parte de sua fortuna privada, e esta perda
representa para ele uma pura desgraça, ao passo que o utopiano não perde senão
para a fortuna pública, ou. melhor, para a abundância e o supérfluo de seu
país; e, então, a exportação é proibida. É por isso que as perdas em
dinheiro só debilmente afetam na Utopia os indivíduos. Eles julgam, e com
razão, que seria demasiado cruel vingar, com a morte de um grande número de
pessoas, um dano que não pode afetar nem a vida, nem o bem estar de seus
concidadãos.
Aliás, caso um utopiano seja maltratado ou
morto injustamente, em conseqüência de deliberação pública ou premeditação
privada, a república encarrega seus embaixadores de verificarem o fato; pede
que lhe sejam entregues os culpados e, no caso de recusa, somente a imediata
declaração de guerra pode apaziguá-la. No caso contrário, os autores do
crime são punidos com a morte ou com a escravidão.
Os utopianos choram amargamente sobre os louros
de uma vitória sangrenta; envergonham-se mesmo, considerando absurdo comprar
as mais brilhantes vantagens ao preço do sangue humano. Para eles, o mais
belo título de glória é o de ter vencido o inimigo à força de habilidade
e artifício. É então quando celebram os triunfos públicos e erguem os troféu;
como após uma ação heróica; é então quando se vangloriam de ter agido
como homens e como heróis, uma vez que venceram unicamente pela força da razão,
coisa de que não é capaz nenhum animal, exceto o homem. Os leões, dizem, os
ursos, os javalis, os lobos, os cães e outros animais ferozes não sabem
empregar no combate senão as forças corporais; a maioria deles nos sobrepuja
em audácia e vigor, mas todos, no entretanto, se dobram ao império da
inteligência e da razão
Fazendo a guerra, os utopianos não têm outra
finalidade senão obter o que lhes teria evitado declará-la, caso suas
reclamações fossem satisfeitas antes da ruptura da paz. Quando toda satisfação
é impossível, vingam-se sobre os provocadores, de forma a impedir, no
futuro, pelo terror, os que ousassem tentar repetir semelhantes acometimentos.
Tal é o fito dos utopianos na execução dos seus projetos, fito que se esforçam
por atingir com presteza, procurando antes evitar o perigo que colher uma fama
inútil.
Uma vez declarada a guerra, eles tratam de
mandar pregar, secretamente, no mesmo dia, nos lugares mais visíveis do país
inimigo, proclamações revestidas com o selo do Estado. Essas proclamações
prometem magníficas recompensas ao assassino do príncipe inimigo; outras
recompensas menos consideráveis, ainda que bastante sedutoras, pelas cabeças
de um certo número de indivíduos, cujos nomes são escritos nessas fatais
proclamações. Os utopianos proscrevem, desta maneira, os conselheiros ou os
ministros, que são, depois do príncipe, os principais autores da ofensa.
O preço prometido pelo homicídio é dobrado
para quem entregar vivo um dos proscritos. Mesmo aqueles cujas cabeças foram
postas a prêmio são convidados a trair seus partidários por oferecimento de
iguais recompensas e pela promessa de impunidade.
Esta medida tem por efeito colocar imediatamente
os chefes do partido adverso em estado de suspeição mútua. Não há mais
confiança entre eles, e não se sentem mais seguros; temem uns aos outros e
este temor não é quimérico. Não é raro acontecer que muitos têm sido traídos,
sobretudo o príncipe, por aqueles em que depositavam mais confiança. Tal é
o poder que tem o ouro para arrastar ao crime! Também, os utopianos não
poupam dinheiro nessa circunstância. Recompensam com a gratidão mais
generosa àqueles que impelem aos perigos da traição; eles têm o cuidado de
fazer com que a grandeza do perigo seja largamente compensada pela magnificência
do prêmio.
É por isso que prometem aos traidores não só
imensas somas em dinheiro, mas ainda a propriedade perpétua de terras de
grande rendimento situadas em lugar seguro no país aliado. E cumprem
fielmente a palavra.
O uso de negociar os seus próprios inimigos,
pondo suas cabeças a prêmio, é reprovado nos outros países como uma infâmia
digna unicamente de almas degradadas. Os utopianos, porém, se gabam disso
como de uma ação de alta sabedoria que termina sem combate as guerras mais
terríveis. Honram-se disso como de uma ação humanitária e misericordiosa,
que resgata, ao preço da morte de um punhado de culpados, a vida de vários
milhares de inocentes, de um como de outro lado, destinados a morrer nos
campos de batalha. A piedade dos utopianos também se estende aos soldados de
todas as bandeiras; sabem que o soldado não vai por sua própria vontade à
guerra, mas é arrastado pelas ordens e pelos furores dos príncipes.
Se os meios precedentes não dão resultados, os
nossos insulares semeiam e alimentam a discórdia, dando ao irmão do príncipe
ou a alguma outra personagem a esperança de se apoderar do trono. Se as facções
internas definham amortecidas então eles instigam as nações vizinhas do
inimigo, jogando-as contra ele, exumando mesmo alguns desses velhos títulos
que nunca faltam aos reis; ao mesmo tempo, prometem socorros aos novos
aliados, dando-lhes dinheiro em caudal, mas os seus cidadãos não lhes
entregam senão muito poucos.
Os cidadãos são para a república da Utopia o
tesouro mais caro e mais precioso: a consideração que os habitantes da ilha
têm uns pelos outros é de tal modo elevada que não consentiriam de bom
grado em trocar qualquer dos seus por um príncipe inimigo. Prodigalizam ouro
sem pena porque este não é empregado senão para os usos já referidos e
porque nenhum deles seria exposto a viver menos comodamente, mesmo que lhes
fosse necessário gastar o último escudo.
Aliás, além das riquezas guardadas na ilha, são
os utopianos ainda, creio já vos tê-lo dito, credores para muitos Estados de
imensos capitais. É com parte deste dinheiro que eles alugam soldados de
todos os países e principalmente do país dos zapoletas, situado a leste da
Utopia, numa distância de quinhentos mil passos.
O zapoleta, povo bárbaro, feroz e selvagem, não
sabe viver senão no meio das florestas e rochedos em que foi nutrido.
Calejado na fadiga, suporta pacientemente o frio, o calor, o trabalho. As delícias
da vida lhe são desconhecidas; menospreza a agricultura, a arte de bem morar
e de bem vestir. Não possui outra indústria que a criação dos rebanhos, e,
as mais das vezes, não conhece outros meios de vida além da caça e da
pilhagem.
Nascidos exclusivamente para a guerra, os
zapoletas procuram avidamente e não perdem nenhuma oportunidade de fazê-la;
então descem aos milhares das montanhas e vendem a baixo preço seus serviços
à primeira nação que deles necessita. O único ofício que sabem exercer é
o que dá a morte; batem-se com bravura e incorruptível fidelidade a serviço
dos que os contratam. Nunca se alistam por tempo determinado; e sempre sob a
condição de passar no dia seguinte para o inimigo se lhe oferecer melhor
paga, ou voltar à primeira bandeira se aí lhes concedem ligeiro aumento no
soldo.
É raro haver uma guerra nessas regiões sem que
haja zapoletas nos dois campos. É também comum ver-se parentes muito próximos,
amigos estreitamente ligados, enquanto serviam a mesma causa, combatendo-se
com o mais vivo encarniçamento, desde que a sorte os dispersou pelas fileiras
das duas partes contrárias. Eles esquecem família, amizade e se matam
furiosamente só pelo fato de dois soberanos inimigos pagarem alguns patacos
por seu sangue e seu furor. A paixão do dinheiro é entre eles tão forte que
um vintém a mais no soldo diário basta para fazê-los mudar de campo. Esta
paixão degenerou numa avareza desenfreada, mas inútil; porque o que o
zapoleta ganha pelo sangue derramado, gasta-o na devassidão.
Este povo faz a guerra pelos utopianos, contra
todo o mundo, porque em parte alguma encontra melhor pagamento. De seu lado,
os utopianos, que tratam a gente séria convenientemente, ajustam com muito
gosto essa infame soldadesca para enganá-la e destruí-la. Quando precisam
dos zapoletas começam por seduzi-los com brilhantes promessas; depois expõem-nos
sempre nos postos mais perigosos. A maior parte perece e não volta para
reclamar o que se lhes prometera; os que sobrevivem recebem exatamente o preço
convencionado e esta rígida boa fé anima-os a afrontar outra vez o perigo
com a mesma audácia. Aos utopianos pouco se lhes dá perder grande número
desses mercenários, pois estão persuadidos de que terão bem merecido do gênero
humano se puderem um dia expurgar a terra desta raça impura de bandidos.
Além dos zapoletas, os utopianos empregam
ainda, em tempo de guerra, as tropas dos Estados de que tomam a defesa, e mais
as legiões auxiliares de seus outros aliados; só depois, por último,
recorrem a seus próprios concidadãos, entre os quais escolhem um homem de
talento .e coragem para colocar à frente de todo o exército
Este general-chefe tem sob suas ordens dois
lugares-tenentes que não possuem nenhum poder enquanto ele pode comandar.
Assim que o general é morto ou aprisionado, um dos seus dois lugares-tenentes
lhe sucede como por direito de herança; este último é, por sua vez substituído
por um terceiro. Resulta disto que os perigos a que está exposto pessoalmente
o general, sujeito como qualquer um aos azares da guerra, não poderão jamais
comprometer a sorte do exército.
Cada cidade recruta e exercita suas tropas
formadas pelos que se alistam voluntariamente. Ninguém é alistado contra a
vontade para as expedições longínquas, pois um soldado naturalmente
medroso, em lugar de se comportar valorosamente, não pode senão infundir em
seus camaradas a própria covardia. Entretanto, em caso de invasão, em caso
de guerra no interior, todos os poltrões robustos e válidos são utilizados;
enquanto uns são postos entre os melhores soldados, a bordo dos navios do
Estado, os outros são disseminados pelas praças fortes. Aí, não há
possibilidade de retirada; o inimigo está a dois passos, a fuga é impossível,
e os camaradas os observam. Esta posição extrema sufoca o temor da morte; e
muitas vezes o excesso do perigo faz leão o mais covarde dos homens.
Se a lei não obriga ninguém a marchar contra
sua vontade para a fronteira, permite às mulheres que o queiram, acompanhar
seus maridos no exército. Longe de serem impedidas, são, ao contrário,
estimuladas a seguir, constituindo tal gesto para elas brilhante título de
honra. Durante o combate, os esposos são colocados no mesmo posto, cercados
de seus filhos, de seus aliados e parentes, a fim de que se prestem um mútuo
e rápido socorro, os que a natureza impele a se protegerem entre si com maior
afinco.
A desonra e a infâmia esperam o esposo que
volta sem a mulher e o filho sem o pai. Também quando os utopianos são forçados
a passar às vias de fato e o inimigo resiste, uma longa e lúgubre refrega
precipita a carnificina e a morte. Lançam mão de todos os meios para não se
expor pessoalmente ao combate e terminar a guerra apenas por meio dos
auxiliares que mantêm às suas custas. Mas se surge a necessidade imperiosa
de entrar realmente em combate, sua intrepidez, na ação, não é menor do
que a prudência despendida quando era possível.
Não põem todo o entusiasmo no primeiro choque.
A resistência e a duração de uma batalha reforçam pouco a pouco o seu
valor, exaltando-os a ponto de tornar-se mais fácil matá-los que fazê-los
recuar.
O que lhes inspira este valor sublime, esse
desprezo pela morte e pela vitória é a certeza de ter, sempre, em sua terra,
de que viver perfeitamente, sem carecer inquietar-se sobre a sorte da família,
inquietação essa que, em todos os outros lugares, alquebra as almas mais
generosas. O que ainda lhes aumenta a confiança é a habilidade extrema na tática
militar; é enfim, acima de tudo, a excelente educação que recebem, desde a
infância, nas escolas e instituições da república. Desde cedo aprendem a não
desdenhar tanto a vida, para esbanjá-la estouvadamente; mas também a não amá-la
tanto para guardá-la com vergonhosa avareza, quando a honra exige que seja
arriscada.
No mais forte da peleja, um troço seleto de
jovens, conjurados e devotados até à morte, tem por objetivo perseguir a
todo o transe o chefe do exército inimigo. Ataca-o de surpresa ou a
descoberto, de perto ou de longe. Esta pequena tropa disposta em triângulo não
faz alto nem conhece repouso. É continuamente renovada com novos recrutas
perfeitamente descansados que substituem os soldados fatigados; é raro que não
consiga o seu fim, isto é, matar o general inimigo ou aprisioná-lo, a menos
que este não escape pela fuga.
Os utopianos, uma vez vitoriosos, não matam
inutilmente os vencidos. Preferem prender a matar os fugitivos, e nunca os
perseguem sem ter ao mesmo tempo um corpo de reserva disposto em ordem de
batalha e preparado. Salvo no caso em que, desbaratadas as suas primeiras
linhas, a retaguarda arrebate a vitória, os utopianos preferem deixar escapar
todos os inimigos a ter que correr atrás deles e a habituar, com isso, os
soldados a romperem as próprias filas, desordenadamente. Não se esquecem que
muitas vezes deveram sua salvação a esta tática.
Realmente, muitas vezes o inimigo, depois de ter
derrotado completamente o grosso do exército utopiano, tem-se arremessado,
sem ordem, embriagado pelo triunfo, no encalço dos fugitivos. Nesse momento
uma pequena reserva, atenta às oportunidades, pode mudar rapidamente a face
do combate, atacando os vencedores de improviso, quando estes, dispersos aqui
e ali, se esquecem de toda a precaução por excesso de confiança. Desta
forma, a vitória mais segura tem sido algumas vezes arrebatada das mãos que
a detinham e, por seu turno, os vencidos batem os vencedores
É difícil
afirmar-se se os utopianos são mais hábeis em armar emboscadas do que
prudentes em evitá-las Acreditaríeis que preparam uma fuga quando preparam
justamente o contrário; e, reciprocamente, se tinham intenção de fugir não
o poderíeis adivinhar. Quando se sentem bastante inferiores em posição ou
em número, levantam o acampamento de noite, em profundo silêncio, ou, então,
contornam o perigo com qualquer outro estratagema. Algumas vezes retiram-se em
pleno dia mas em tão boa ordem que não é menos perigoso atacá-los durante
a retirada do que quando oferecem batalha.
Têm o maior cuidado em defender o próprio
campo com fossas grandes e profundas; os entulhos são jogados no interior do
campo. Estas construções não são entregues a operários mas aos próprios
soldados; todo o exército trabalha, excetuando-se os sentinelas que velam
armados em redor do campo, prontos a fazer abortar qualquer surpresa. Por esse
meio, poderosas fortificações são erguidas prontamente, abrangendo uma
imensa extensão de terreno.
As armas defensivas dos utopianos são muito sólidas,
e, entretanto, prestam-se tão bem a toda espécie de movimentos e gestos que
não embaraçam nem mesmo o soldado a nado. Um dos primeiros exercícios
militares ensinados aos soldados da Utopia, é o de nadar armado. Combatem de
longe com a azagaia, que lançam com vigor e segurança, tanto cavaleiros como
infantes. De perto, em lugar de espadas, combatem com machados, cujo corte ou
peso ocasionam inevitavelmente a morte, qualquer que seja a direção do
golpe. São extremamente engenhosos em inventar máquinas de guerra, e as
novas máquinas ficam cuidadosamente secretas até o momento de ser postas em
uso, por temor de que, sendo conhecidas anteriormente, se tornem mais um
brinquedo ridículo do que um objeto de real utilidade. O que mais procuram,
ao fabricá-las, é a facilidade de transporte e a aptidão a girar em todos
os sentidos.
Os utopianos observam tão religiosamente as tréguas
concluídas com o inimigo, que não as violam mesmo em caso de provocação Não
devastam as terras do país conquistado; não queimam suas colheitas; vão até
a impedir, tanto quanto possível, que elas sejam esmagadas sob os pés dos
homens e dos cavalos, na previsão de que venham a necessitar delas um dia.
Nunca maltratam um homem sem armas, a menos que
seja espião. Conservam as cidades que se rendem e não abandonam à pilhagem
as que tomam de assalto. Apenas, matam os principais chefes que puserem obstáculos
à rendição da praça,e condenam à escravidão o resto dos que sustentaram
o sítio. Quanto à massa indiferente e pacífica, deixam-na em paz. Se sabem
que um ou mais sitiados haviam aconselhado a capitulação, dão-lhes uma
parte dos bens dos condenados; a outra parte é para as tropas auxiliares. Não
tocam no despojo.
Com a terminação da guerra, não são os
aliados em favor dos quais foi a guerra empreendida que suportam os seus
gastos; são os vencidos. Em virtude desse princípio, os utopianos exigem dos
últimos, primeiramente dinheiro, que empregam para os fins que já conheceis,
em caso de guerra futura; em segundo lugar, a concessão de vastos domínios
situados no território conquistado, domínios que trazem à república
pingues rendas.
Atualmente, esta república conta em vários países
do estrangeiro com imensas rendas desta espécie; oriundas de diversas causas,
foram pouco a pouco se acumulando e dão hoje mais de setecentos mil ducados.
O Estado envia para essas propriedades cidadãos com o título de questores
que vivem magnificamente, possuem grande séquito e fornecem ainda fortes
somas ao tesouro. Muitas vezes, também, os utopianos cedem o produto dessas
propriedades ao povo do país onde elas se acham, enquanto não sentem
necessidade dele. É raro que reclamem o reembolso total. Uma parte desses domínios
é reservada aos que, cedendo à sedução, afrontam os perigos de que já vos
falei.
Assim que um príncipe pegou em armas contra a
Utopia e se prepara para invadir uma das terras de seu domínio, os utopianos
reúnem imediatamente um exército formidável e o expedem para atacar o
inimigo fora das suas fronteiras. Só em medida extrema fazem nossos insulares
a guerra em sua terra; e não há necessidade no mundo que os force a deixar
entrar na ilha um socorro de tropas estrangeiras.
DAS RELIGIÓES DA UTOPIA
As
religiões, na Utopia, variam não unicamente de uma província para
outra, mas ainda dentro dos muros de cada cidade; estes adoram
o sol, aqueles divinizam a lua ou outro qualquer planeta. Alguns
veneram como Deus supremo um homem cuja glória e virtude brilharam
outrora de um vivo brilho
Não obstante, a maior parte dos
habitantes, que é também a mais sábia, repele estas idolatrias
e reconhece um Deus único, eterno, imenso, desconhecido, inexplicável,
acima das percepções do espírito humano, enchendo o mundo inteiro
com sua onipotência e não com sua vastidão corpórea. Este Deus
é chamado Pai; é a ele que atribuem as origens, o crescimento,
o progresso, as revoluções e o fim de todas as coisas. É a ele
unicamente que rendem homenagens divinas.
De resto, apesar da diversidade
de suas crenças, todos os utopianos concordam numa coisa: que
existe um ser supremo, ao mesmo tempo Criador e Providência. Este
ser é designado, na língua do país, sob o nome comum de Mitra.
A dissidência consiste em que Mitra não é o mesmo para todos.
Mas qualquer que seja a forma pela qual cada um represente seu
Deus, cada um adora, sob esta forma, a natureza majestosa e potente,
a quem somente pertence o soberano império de todas as coisas,
por consentimento geral dos povos.
Esta variedade de superstições tende,
dia a dia, a desaparecer e a converter-se numa única religião,
a qual parece muito mais razoável. É mesmo provável que a fusão
já se teria operado, sem os infortúnios imprevistos e pessoais
que impedem a conversão de um grande número. Muitos, em lugar
de atribuir ao acaso acidentes desse jaez, metem-se a interpretá-los,
sob o terror supersticioso que sentem, como uma vingança do Deus
que estavam prestes a abandonar. Temem que este Deus se vingue
de sua apostasia.
Entretanto, quando aprenderam conosco
o nome do Cristo, sua doutrina, sua vida, seus milagres, a admirável
constância de tantos mártires, cujo sangue voluntariamente vertido
submeteu à lei do Evangelho a maioria das nações da terra, não
podeis imaginar com que afetuosa inclinação ouviram esta revelação.
Talvez que Deus agisse secretamente em suas almas; talvez o cristianismo
lhes pareceu em todos os pontos conforme à seita que entre eles
goza de maior prestígio.
O que na minha opinião contribuiu
sobretudo para inspirar-lhes estas felizes disposições foi a narração
da vida em comum dos primeiros apóstolos, tão cara a Jesus Cristo,
e atualmente ainda em uso nas sociedades dos verdadeiros e perfeitos
cristãos.
Como quer que seja, muitos dentre
os utopianos abraçaram nossa religião e foram purificados pelas
águas sagradas do batismo; infelizmente, de nós quatro (a morte
de outros dois companheiros nos tinha reduzido a este número),
nenhum era padre. Eles não puderam, portanto, ainda que já iniciados
nos outros mistérios, receber os sacramentos que, entre nós, unicamente
os padres têm o poder de conferir; não obstante, têm uma idéia
perfeitamente exata desses sacramentos e de tal modo os desejam
que ouvi-os discutir acaloradamente a questão de saber se um cidadão,
escolhido por eles, não poderia adquirir o caráter de padre. A
minha partida, não tinham ainda eleito ninguém, mas pareciam resolvidos
a fazê-lo.
Os habitantes da ilha que não crêem
no cristianismo, não se opõem à sua propagação e não maltratam
de nenhuma maneira os neo-convertidos. Apenas um dos nossos neófitos
foi preso em minha presença. Recém-batizado, pregava em público,
não obstante os meus conselhos, com mais zelo que prudência. Arrebatado
por seu ardente fervor, não se contentava em elevar ao primeiro
plano o cristianismo; e condenava todas as outras religiões, vociferando
contra seus mistérios, que classificava como profanos, contra
seus sectários, que qualificava de ímpios e sacrílegos, dignos
do inferno. Este neófito, depois de ter deblaterado neste tom
durante muito tempo, foi preso, não sob prevenção de ultraje ao
culto, mas por ter provocado tumulto entre o povo. Foi a julgamento
e condenado ao exílio.
Os utopianos incluem no número de
suas mais antigas instituições a que proíbe prejudicar uma pessoa
por sua religião. Utopus, na época da fundação do império, apurou
que, antes de sua chegada, os indígenas viviam em guerras contínuas
por motivos religiosos. Notara também que tal situação lhe facilitara
a conquista do país, porque as seitas dissidentes em vez de se
reunirem em massa, combatiam isoladamente e a parte. Assim que
se viu vitorioso e senhor do país, apressou-se em decretar a liberdade
de religião. Entretanto, não proscreveu o proselitismo, que propaga
a fé pelo raciocínio, com doçura e modéstia; que não procura destruir
pela força bruta a religião contrária, quando não consegue persuadir;
que, finalmente, não emprega a violência nem a injúria.
Utopus, decretando a liberdade religiosa,
não tinha unicamente em vista a manutenção da paz outrora perturbada
por combates contínuos e ódios implacáveis; pensava ainda que
o próprio interesse da religião exigia tal medida. Nunca ousou
ele estatuir temerariamente qualquer coisa, em matéria de fé,
na incerteza de que o próprio Deus não tenha inspirado aos homens
as diversas crenças no intuito de experimentar, por assim dizer,
esta grande variedade de cultos. Quanto ao emprego da violência
e de ameaças para constranger alguém a adotar a mesma crença que
outrem, pareceu-lhe tirânico e absurdo. Previa que se todas as
religiões fossem falsas, à exceção de uma, tempo viria em que,
com o auxílio da doçura e da razão, a verdade se desprenderia
espontaneamente, luminosa e triunfante, da noite do erro
Ao contrário, quando a controvérsia
se faz pelo tumulto e de armas na mão, dado que os piores homens
são os mais teimosos, sucede que a melhor e mais santa das religiões
acabaria sepultada sob uma multidão de vãs superstições, como
uma bela seara coberta pelo mato e os espinhos.
Foi por isto que Utopus deixou a
cada um inteira liberdade de consciência e de fé
Não obstante, castigou severamente,
em nome da moral, o homem que degrada a dignidade de sua natureza
a ponto de pensar que a alma morre com o corpo ou que o mundo
marcha ao léu sem que exista alguma providência
Os utopianos crêem, pois, numa vida
futura, onde castigos são preparados para os crimes e recompensas
para as virtudes. Não dão o nome de homem àquele que nega estas
verdades e que rebaixa a natureza sublime de sua alma à vil condição
de um corpo de animal; com mais forte razão, não o honram com
o título de cidadão, persuadidos de que, se o tal não estivesse
amarrado pelo temor, calcaria aos pés como flocos de neve os hábitos
e as instituições sociais. Quem pode duvidar, com efeito, que
um indivíduo que não tem outro freio senão o código penal, outra
esperança que a matéria e o nada, não encontra prazer em iludir,
astuciosa e secretamente, as leis de seu país, ou violá-las pela
força, desde que satisfaça a sua paixão e o seu egoísmo?
A esses materialistas não se rendem
homenagens, não se confiam magistraturas ou cargos públicos. São
desprezados como seres de natureza inerte e impotente. Entretanto,
não são condenados a pena, na convicção generalizada de que não
está no poder de ninguém sentir segundo sua fantasia. Não se fazem
ameaças para obrigá-los a dissimular a própria opinião. A dissimulação
é proscrita na Utopia e a mentira é detestada tanto quanto a trapaça.
Unicamente não têm o direito de sustentar seus princípios em público
perante o vulgo; podendo fazê-lo, entretanto, em particular, junto
aos padres e outras graves personagens. São mesmo insistentemente
convidados para essas conferências, na esperança de que seu delírio
ceda enfim à razão.
Grande número de utopianos professa
um sistema diametralmente oposto ao materialismo; e como suas
idéias não são perigosas nem totalmente desprovidas de bom senso,
a propaganda não lhes é proibida. Estes últimos, caindo no extremo
oposto, pretendem que as almas dos animais são imortais como as
nossas, ainda que muito inferiores quanto ao quinhão da dignidade
e da felicidade que lhes são destinadas.
Todos os utopianos, a parte pequena
minoria, alimentam a convicção íntima de que uma felicidade imensa
aguarda o homem além túmulo. É por isto que choram pelos doentes
e jamais pelos mortos, excetuado o caso em que o moribundo deixa
a vida inquieto ou a contragosto. O temor da morte é para eles
um mau augúrio; parece-lhes que este temor não existe senão nas
almas sem esperança e cujas consciências intranqüilas tremem diante
da eternidade, como se sentissem já o aproximar do suplício. Além
disso acreditam que Deus não recebe com prazer o homem que não
acorre de bom grado ao seu chamado, mas é pela morte arrastado
à sua presença entre rebelde e aflito.
Aqueles que vêm alguém morrer assim
tomam-se de horror; levam o defunto, tristes e silenciosos; e
após suplicar à divina clemência perdão às suas fraquezas, enterram-no.