Brasília – DF
agosto de 2000
1. Descrição do Problema
De todas as violações de direitos humanos, a tortura é
universalmente reconhecida como uma das mais odiosas e é também uma das mais
frequentes no Brasil. Utilizada em todo o território nacional por agentes
públicos das forças de segurança como instrumento de coação para obter
confissões forçadas, chega a ser considerada por analistas como o principal
mecanismo de investigação policial no país. Também é largamente aplicada como
meio de punição e imposição de disciplina em presídios e em centros de
cumprimento de medidas sócioeducativas para adolescentes, além de meio de
extorsão econômica aplicada contra suspeitos e autores de crimes.
Embora o Brasil seja signatário das convenções e tratados
internacionais contra a tortura e tenha incorporado em seu ordenamento jurídico
lei tipificando o crime, ele continua a ocorrer em larga escala, conforme tem
sido demonstrado por instituições públicas e organizações não-governamentais de
direitos humanos nacionais e internacionais dignas de credibilidade. Depois de
três anos de vigência de lei autônoma, aprovada em abril de 1997, que tipificou
a tortura, não se conhece nenhum caso de condenação de torturadores julgada em
última instância, embora tenham sido registrados nesse período centenas de
casos, além de numerosos outros presumíveis mas não registrados. Mesmo repudiada
por autoridades públicas e pela sociedade civil, prevalece a impunidade dos
autores, evidenciando que as vítimas e testemunhas da tortura não têm tido
acesso satisfatório à Justiça.
2. Quem tortura?
Para este estudo, o foco é sobre os torturadores que ocupam
funcões de agentes do Estado, geralmente policiais civis e militares, que formam
a imensa maioria dos autores dessa modalidade de violação. Estatísticas citadas
em reportagem da revista Veja indicam que cerca de 15 mil policiais –
representando 3% do efetivo das forças policiais em todo o Brasil - são acusados
de homicídio ou graves lesões a cidadãos. Enquanto isso, há no país uma
população carcerária de 200 mil pessoas - o que é pouco mais de 0,1% de toda a
população. Tais dados indicam que a proporção de policiais envolvidos em crimes
no país é bem maior que a parte não policial da população.
Segundo a Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, de 121
denúncias de tortura e espancamento recebidas durante um ano, 80 converteram-se
em inquéritos, envolvendo cerca de 200 policiais. Dessas denúncias, 67
referiam-se a torturas cometidas dentro de delegacias da Polícia Civil,
responsáveis pela investigação. Os outros 54 casos tinham como acusados policias
militares, que fazem o policiamento ostensivo e preventivo. Isso demonstra que
ocorrem mais agressões por policiais quando esses têm dominados os agredidos do
que no enfrentamento com eles.
3. Quem é torturado?
As pessoas vítimas de tortura e que encontram dificuldade em
acessar a Justiça para denunciá-la e obter reparação são em geral pobres e sem
influência econômica, social ou política. Uma parte numerosa é de pessoas
detidas acusadas ou suspeitas de delitos. Durante os interrogatórios ou mesmo no
ato da detenção são submetidas à tortura e outros tratamentos desumanos. Para
arrancar uma confissão do acusado sobre a pratica de determinado ilícito ou para
extorquir uma informação útil, a tortura é empregada como instrumento de
apuração de crimes. É tão disseminada essa prática que "muitas vezes o crime de
tortura é mais grave do que aquele que o policial está apurando", afirma a
diretora do Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, Cecília Coimbra.
Nos presídios e delegacias superlotados, é disseminada a prática
da tortura como meio de manutenção da disciplina e como castigo aos que tentam
fugir. Segundo a Pastoral Carcerária da Igreja Católica de São Paulo, somente em
1998 foram registrados cerca de 500 casos de tortura no sistema penitenciário do
Estado.
Nas instituições destinadas a abrigar adolescentes infratores para
o cumprimento de medidas sócioeducativas, os jovens são frequentemente
espancados e torturados por monitores e policiais.
Em regiões agrícolas, onde grandes fazendeiros detêm forte poder
político e econômico, trabalhadores rurais sem-terra que se atrevem a ocupar
áreas rurais desses proprietários, por vezes são severamente punidos fisicamente
quando detidos. Não raro participam das operações de despejo e das agressões aos
sem-terra agentes de segurança privada dos fazendeiros. A tortura tem o objetivo
de castigar e dissuadir os lavradores de novas ocupações de terra.
4. Fatores que reforçam a impunidade
Herança do período colonial escravista, a imposição de castigos
físicos têm sido reservada às pessoas situadas na base piramidal da sociedade,
na classe trabalhadora. Se ontem os desamparados da Justiça eram em sua maioria
os escravos negros, hoje os excluídos desse direito são trabalhadores braçais,
urbanos e rurais, muitos dos quais negros (o perfil das vítimas revela a
persistência de uma componente racial nessa exclusão social). A maioria desses
cidadãos carece de educação fundamental e apresentam ignorância jurídica, o que
concorre para dificultar a realização de seus direitos.
Tal conjunto de caraterísticas parece encorajar os torturadores a
perpetrar os maus-tratos contra seus portadores. Essa atitude sustenta-se em
tradições sociais e culturais discriminatórias e restritivas da liberdade,
legado do patrimonialismo escravista, segundo o qual delinquentes e pobres não
são reconhecidos como titulares de direitos. Os algozes sentem-se então seguros
de sua impunidade, pois percebem que as vítimas, além de desprezadas
socialmente, desconhecerem seus direitos e não estão equipados para transitar na
intrincada estrutura judiciária. Resulta que tais pessoas estão virtualmente
incapacitados de recorrer à justica.
Mesmo entre cidadãos conhecedores de seus direitos formais e dos
fundamentos do ordenamento jurídico, há forte descrédito nas instituições do
Estado, principalmente na Justiça. É comum entre esses indivíduos a percepcão de
que não compensa correr sérios riscos de represálias, perder tempo e amargar uma
via-crucis em busca de direitos formais para, ao fim e ao cabo, receber em troca
a indiferença burocrática, a lentidão e as manobras sem fim do processo
judicial.
Entre os próprios agentes públicos operadores do direito ainda
persistem a ignorância e a resistência em reconhecer a aplicabilidade e
exigibilidade, ainda que complementar, dos instrumentos internacionais de
proteção dos direitos humanos. Embora o Estado venha incorporando ao sistema
jurídico as obrigações contraídas em razão de tratados internacionais de
direitos humanos e admitindo a legitimidade do interesse da comunidade
internacional sobre a questão da tortura, setores importantes do aparelho do
Estado ignoram essas obrigações ou recusam-se a aplicá-las em nome de uma
superada concepção de exclusividade de competência nacional.
Ainda há autoridades públicas e lideranças políticas,
principalmente em âmbito estadual e municipal, que silenciam-se de modo
conivente diante dessa odiosa prática, não agindo à altura do imperativo da lei
e dos valores humanistas que regem a ordem consititucional. Há apresentadores de
programas populares na televisão, rádio e jornais que clamam sistematicamente
por castigos e violências contra delinquentes, mesmo adolescentes, num claro
estímulo à tortura.
Analistas mais céticos, como o ex-delegado da Polícia Civil do Rio
de Janeiro e hoje deputado estadual Hélio Luz, do Partido dos Trabalhadores,
acreditam que, apesar do crescimento da consciência cívica e de uma opinião
pública mais vigilante, perdura expressivo suporte social para a prática da
tortura e outras violências pela polícia. Para Hélio Luz, "a polícia é o que a
sociedade quer que ela seja". E cita, com base em sua experiência de delegado de
polícia, alguns exemplos.
O primeiro é de uma respeitável senhora da alta sociedade,
promotora de festas beneficentes, que estimulou policiais a torturar sua
empregada doméstica para confessar o roubo de uma jóia. Outro exemplo foi a
transferência do delegado para uma pequena cidade. Lá ele pôde montar uma equipe
de sua confiança, que encantou a cidade com sua eficiência, passando a receber
excelente tratamento da sociedade. Porém, três meses depois, ao processar um
agente de segurança de um armazém que espancou um adolescente por ter furtado
uma caixa de alimento, e ao prender em flagrante um rico fazendeiro homicida, o
delegado e sua equipe passaram a ser hostilizados pela mesma sociedade que lhe
homenageara. O delegado Luz afirma também que é comum cidadãos da classe média
sugerir tortura contra suspeitos para tentar reaver seus carros roubados.
5. Trajetória da tortura no Brasil
A tortura no Brasil, como meio de obtenção de prova através da
confissão e como forma de castigo a prisioneiros, remonta aos primórdios da
ocupacao do país pela metrópole portuguesa, no ano 1500. Legado da Inquisição
promovida pela Igreja Católica, a tortura nunca deixou de ser aplicada durante
os 322 anos de período colonial e, posteriormente, nos 67 anos do Império
brasileiro e nos 111 de República.
Nos dois períodos ditatoriais republicanos, de 1937 a 1945 (o
chamado Estado Novo) e entre 1964 e 1985 (a ditadura militar), a prática da
tortura não só passou a alcançar opositores políticos de esquerda, como
sofisticou-se nas técnicas adotadas. No final dos anos 60 e início dos anos 70,
as ditaduras militares do Brasil e de outros países da região criaram a chamada
Operação Condor, para perseguir, torturar e eliminar opositores. Receberam o
suporte de especialistas militares norte-americanos, ligados à CIA, que
ensinaram novas técnicas de tortura para obtenção de informações. A Escola das
Américas, instalada nos EUA, foi identificada por historiadores e testemunhas
como um dos centros de difusão de técnicas associadas à prática da tortura e
maus-tratos.
O "Relatório Azul", documento produzido pela Comissão de Direitos
Humanos e Cidadania da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, citando o
célebre relatório "Brasil, nunca mais", informa que pelo menos 1.918
prisioneiros políticos atestaram ter sido torturados entre 1964 e 1979. Este
documento descreve 283 diferentes formas de tortura utilizadas pelos órgãos de
segurança à época.
Com a redemocratização, em 1985, cessou a prática da tortura com
fins políticos. Mas as técnicas foram incorporadas por muitos policiais, que
passaram a aplicá-las contra os presos comuns, os "suspeitos" e os detentos.
Pode-se, portanto, afirmar que a tortura existente hoje no Brasil principalmente
"contra pretos e pobres" é herdeira de uma tradição totalitária e foi
intensificada principalmente durante o Estado Novo e a ditadura militar.
A prática da tortura como instrumento de investigação muito
provavelmente tem sido fator de inibição do desenvolvimento da investigação
criminal científica. Em contraste com o expressivo padrão de desenvolvimento
científico e tecnológico ostentado pelo Brasil em outros campos, o país carece
de qualificação técnica na área. A explicação para esse descaso é que a tortura
tem sido considerada método barato, rápido e eficaz.
6. Evolução normativa
O Estado brasileiro é signatário dos instrumentos internacionais
de proteção dos direitos humanos relativos à tortura. Aderiu, sem demoras nem
reservas, à Declaração Universal dos Direitos Humanos e ao Pacto Internacional
de Direitos Civis e Políticos.
A Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes, adotada pela ONU em 1984, veio a ser aprovada e
ratificada em 1991. Mas, "antes da Constituição Federal de 1988, a expressão
"tortura" figurava apenas no Código Penal, meramente como circunstância
agravante para qualificar o homicídio. Ou seja, não existia como delito
autônomo, apenas como fim ou meio de execução de outros delitos", registrou o
juiz Rui Stoco. Em âmbito regional, a Convenção Interamericana para Prevenir e
Punir a Tortura, aprovada pela OEA em 9 de dezembro de 1985, foi ratificada e
promulgada pelo Brasil em 1989.
A adesão voluntária do Brasil a esses tratados internacionais
legitimou o interesse da comunidade internacional sobre tais questões no Brasil
e fortaleceu a capacidade processual dos atingidos por violações de direitos
humanos. Assim, casos graves, como a tortura, passaram a ter o acompanhamento do
sistema internacional e do interamericano de proteção dos direitos humanos, além
das organizações não-governamentais que atuam no setor. Embora difícil de
comprovar e dimensionar, é válido supor que essa supervisão internacional vem
inibindo a ocorrência ainda maior da prática da tortura, quer pela sua
capacidade direta de dissuasão, quer pelo caráter pedagógico da ação dos
sistemas junto aos operadores do direito e formadores de opinião pública no
Brasil.
Em abril de 1997, o Brasil aprova, afinal, a Lei 9.455/97, que
puniu autonomamente as várias modalidades de tortura, prevendo os crimes e as
penas respectivas. A lei contém poucos artigos e, no essencial, observa os
conceitos da Convenção de Nova Iorque (ONU).
7. Institucionalização dos direitos humanos
São inegáveis os avanços jurídicos e políticos na proteção e
promoção dos direitos humanos no país nos últimos anos. Conforme ressaltou o
Relatório Oficial do Estado Brasileiro sobre a Tortura, apresentado pelo Governo
em abril de 2000, "além dos avanços jurídicos, a prática dos governos
democraticamente eleitos com relação às violações de direitos humanos mudou
muito se comparada com a prática dos governos do regime militar".
De fato, atualmente há diálogo entre o Governo federal e a maioria
dos governos estaduais com as entidades de direitos humanos nacionais e
internacionais. Antes os governos ignoravam ou negavam as denúncias. Hoje há um
discurso e algumas ações que estimulam o respeito a esses direitos. Foi lançado
em 1996, pelo Governo federal, o Programa Nacional de Direitos Humanos que,
embora pouco esteja sendo implementado, é um roteiro, uma referência para a
sociedade e um compromisso assumido pelo Estado com a população e a comunidade
internacional. Foi criada a Secretaria de Estado de Direitos Humanos para
coordenar as ações governamentais do setor.
O Ministério Público, sobretudo o federal, passou a atuar
vigorosamente na defesa dos direitos humanos após a promulgação da nova
Constituição Federal, em 1988. Dotada de novos poderes de representação da
cidadania e de fiscalização das ações do Estado, o Ministério Público tem
realizado um trabalho corajoso e obstinado, só limitado pelo número ainda
reduzido de quadros profissionais face à grandiosidade da demanda.
Em 1995, quando foi criada a Comissão de Direitos Humanos da
Câmara dos Deputados - a primeira na história do parlamento federal brasileiro –
só havia seis comissões similares nos Estados. Hoje, em agosto de 2000, dos 26
Estados e o Distrito Federal, só um Estado não possui, ainda, sua comissão
(Alagoas). Nesse período multiplicaram-se também as comissões municipais de
direitos humanos.
Cabe registrar, ainda, os progressos no âmbito da sociedade civil,
com o adensamento da consciência sobre a dimensão universal e indivisível dos
direitos humanos, o repúdio e a indignação face aos episódios de violações como
a tortura. Setores crescentes na mídia, que exercem forte influência na vida
brasileira, cumprem papel relevante na fiscalização do respeito aos direitos
humanos. As denúncias de tortura e outros tratamentos desumanos feitas por
órgãos de imprensa, por ONGs nacionais e internacionais têm repercutido
fortemente, contribuindo para mobilizar a opinião pública. De tema secundário,
os direitos humanos tornaram-se assunto presente na agenda política nacional.
8. Causas de dificuldades de acesso à Justiça contra a
tortura
É imenso o descompasso entre os progressos normativos e
institucionais citados e a realização prática dos direitos humanos, inclusive o
de se não ser torturado. Nesse sentido, há que se destacar uma realidade
incontestável: a criminalização da tortura, por meio de lei de 1997, não gerou
os efeitos esperados. Como já mencionamos, não se tem conhecimento de nenhuma
condenação julgada em última instância por esse crime, depois de três anos de
vigência da lei. As razões para as dificuldades que têm as vítimas e testemunhas
da tortura para obter acesso à Justiça podem ser explicadas, inicialmente, pelo
referido suporte cultural e político, remanescente de períodos históricos
autoritários, cujas manifestações, por vezes sutis, são impassíveis de
criminalização. Outras razões, mais evidentes, passamos a enumerar:
1. Ameaças de represálias contra os denunciantes -
As ameaças dos torturadores inspiram muito temor, por que eles atuam em grupo,
detêm poder de força, estão habituados à violência e não demonstram escrúpulos
ou compaixão. Não raro as ameaças se concretizam no assassinato de vítimas e
seus familiares e testemunhas. Policiais, membros do Ministério Público e do
Poder Judiciário, eventualmente podem também se intimidar e omitir-se de agir na
plenitude de suas competências institucionais.
À guisa de ilustração, eis um exemplo da audácia de algumas
ameaças, neste caso dirigidas a autoridades públicas. Em outubro de 1999, em
Belo Horizonte, três promotores descobriram uma sala dentro da Delegacia de
Crimes contra o Patrimônio utilizada para torturar presos. Ao tentar fazer o
flagrante, os representantes do Ministério Público foram retirados do local por
policiais de armas em punho, tiveram seus carros danificados, foram injuriados e
receberam ameaças de morte. Já em Pernambuco, estado pioneiro na proteção de
vítimas e testemunhas de crimes, metade das pessoas incluídas no programa está
sendo protegida de policiais.
2. É difícil comprovar a tortura - Muitas técnicas
de tortura de domínio de policiais brasileiros não deixam marcas nos corpos e as
declarações de muitas vítimas, por serem autores ou suspeitos de atos
infracionais, não é digna de credibilidade na concepção de muitas autoridades. E
enquanto o ônus da prova couber à vítima, continuará extremamente difícil formar
a prova. Há que se referir também que, frequentemente, faltam independência,
recursos, tempo e coragem a muitos promotores, que acabam por determinar o
arquivamento de inquéritos sem proceder a uma investigação mais acurada. Em
outros casos o problema é com a falta de independência dos institutos de perícia
e medicina legal, que no Brasil estão subordinados às Secretarias de Segurança
Pública, que controla as polícias, no âmbito dos Estados. A prática da tortura
se vale da cumplicidade e acobertamento em muitos setores influentes.
3. Faltam organismos confiáveis para encaminhar os processos
contra crimes de tortura - A maioria dos organismos de correição das
polícias, as Corregedorias, pouco funcionam. Vejamos um exemplo: segundo o
testemunho do promotor Mauro Faria de Lima, a Corregedoria de Polícia Civil do
DF não apura a contento os casos de violência policial. "A Corregedoria tem um
sentido corporativo. Serve para justificar os atos praticados pelos policiais e
apura os casos com muita negligência". Para ele, o Poder Judiciário também é
responsável por essa violência, na medida em que não pune, na maiorira das
vezes, o policial infrator. E o Ministério Público é conivente quando não apura
e leva os casos ao Judiciário. Uma experiência positiva mas ainda embrionária é
a Ouvidoria da Polícia. Das 27 unidades da Federação brasileira, há ouvidorias
instaladas em apenas 6 delas, sendo que há diferentes níveis de independência.
Algumas são formadas por policiais, o que não as difere das corregedorias, que
têm a citada prática corporativa.
9. Implicações da prática da tortura
Sendo a tortura uma das mais graves violações dos direitos
humanos, e estando ela associada a outras formas de desrespeito à dignidade do
cidadão, sua prática representa um obstáculo importante à consolidação do
sistema democrático e do Estado de Direito. Eliminá-la ou reduzi-la
drasticamente é condição indispensável para a prevalência dos direitos humanos,
dos fundamentos da democracia e do desenvolvimento de uma cultura de paz.
Pressuposto do valor da Justiça é acreditar-se nela. Enquanto
significativa parte dos brasileiros mantiverem a percepção de que "não adianta
procurar a Justiça", sobretudo num crime como a tortura, a crença em todas as
instituições públicas, no Estado de Direito, estarão ameaçadas. E o "ovo da
serpente", o germe do fascismo, o campo aberto para o populismo e a noção de
"fazer justiça com as próprias mãos" poderá prosperar, ameaçando a estabilidade
social, política e econômica do país.
10. Alternativas de superação
Importantes iniciativas têm sido tomadas no sentido de coibir a
prática da tortura e maus-tratos. Vejamos algumas delas:
1. Uma das frentes de luta que mais êxito obteve na luta contra o
regime de arbítrio foi constituída pelos grupos de defesa dos direitos humanos,
integrados por familiares e religiosos que denunciavam, no Brasil e no exterior,
a tortura contra militantes políticos nos porões da ditadura militar.
Originários desse movimento, persistem hoje os chamados Grupos Tortura Nunca
Mais, organizados em vários Estados, organizados por militantes políticos e
familiares que tinham sido vítimas de tortura durante o regime militar. Há
também a Comissão Nacional de Familiares de Desaparecidos Políticos. Essas
organizações têm sido voz legítima e vigorosa contra a tortura e a impunidade
dos torturadores. Denunciam quando responsáveis por tortura são indicados para
ocupar funções públicas relevantes e sustentam importantes processos de natureza
moral. Mantém arquivos e difundem a memória da tortura durante a ditadura
militar, trabalham para resgatar a verdade histórica sobre episódios obscuros e
desempenharam papel fundamental no reconhecimento, pelo Estado, em 1995, da
responsabilidade sobre a morte e o desaparecimento forçado de militantes
políticos de esquerda durante os chamados "anos de chumbo".
2, Em 1999, o presidente da República nomeou o delegado João
Batista Campelo para o importante cargo de diretor da Polícia Federal. Um padre,
que havia sido torturado por esse delegado, veio a público denunciar o fato. A
Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados convidou então o delegado e
o cidadão torturado. Os depoimentos de ambos foram vistos com grande interesse
pela opinião pública. Face à indignação generalizada que se seguiu, os setores
que apoiavam a designação do delegado foram obrigados a recuar e o presidente da
República a demitir o recém-nomeado diretor. Acabou ocupando o cargo um novo
diretor cuja trajetória simboliza o claro compromisso com o respeito aos
direitos humanos na Polícia Federal. O episódio demonstrou que investigar
possível vínculo com a prática da tortura de pessoas nomeadas para cargos
públicos em que o compromisso com direitos humanos é essencial e deveria ser uma
regra.
3. A Rede Brasileira contra a Tortura foi constituída em maio de
2000 pela V Conferência Nacional de Direitos Humanos - principal evento anual do
setor no Brasil. A rede é integrada por cidadãos, organizações
não-governamentais e instituições públicas comprometidas com a erradicação da
prática da tortura. Seu objeivo é divulgar os instrumentos legais que proíbem e
criminalizam esta conduta, receber denúncias e encaminhá-las às autoridades
competentes e recomendar políticas e ações voltados ao combate à tortura. A Rede
conta com voluntários dispostos dar orientações sobre como proceder diante de um
caso envolvendo torturas e maus-tratos. Em outras palavras, ensina como ter
acesso à Justiça no caso de tortura.
A Rede também pretende ser um mecanismo de troca de experiências e
reflexão sobre o tema. As experiências exitosas no combate à tortura integrarão
um banco de dados ligado à rede onde todos os interessados poderão acessar.
Haverá uma pauta permanente de atividades como manifestações, proposições
legislativas, inspeções em delegacias de polícia e estabelecimento de deternção,
acompanhamento de processos udiciais, envolvendo a tortura, articulação de
instituições como o Ministério Público, Judiciário, secretarias de segurança
publica, etc. A rede está sendo implantada na internet, acessível pelo
site da Rede de Direitos Humanos (http://www.dhnet.org.br)/.
11. Propostas para combater a tortura e reparar as vítimas
As propostas a seguir relacionadas foram selecionadas entre as
apresentadas à V Conferência Nacional de Direitos Humanos, por diferentes
autores, e em outros eventos recentes da área no Brasil.
-
Instituir o exame de corpo de delito nas pessoas presas ou
detidas, logo após os interrogatórios, para verificar se houve tortura para
extrair confissão;
-
2. Entidades deverão entrar com ações de perdas e danos contra
os Estados onde se derem atos de tortura por agentes públicos ou sob sua
direção; será definida data anual simbólica para ingresso simultâneo de ações;
-
3. Responsabilização judicial do Estado pela proteção às vítimas
e testemunhas de tortura, prevendo indenização e apoio psicológico às
vítimas;
-
4. Mudanças na formação dos policiais, valorizando conteúdos
sobre direitos humanos e propiciando acesso aos modernos métodos científicos
de investigação;
-
5. Criacão de Ouvidorias independentes e com recursos adequados
para as polícias em todos os Estados e nos presídios;
-
6. Criação de mecanismos de controle externo das polícias
militar e civil, exercidos pelo Ministério Público;
-
7. Democratização da polícia e combate à impunidade, incluindo a
transferência, da Justica Militar para a Justica Comum a competência sobre
lesões corporais de qualquer natureza;
-
8. Substituição do inquérito policial por apuração coordenada
pelo Ministério Público;
-
9. Desvinculação dos Institutos Médico Legais e dos Institutos
de Criminalística, em todo o território nacional, dos organismos policiais;
com vista a oferecer-lhes autonomia administrativa, funcional e orçamentária,
visando ao aperfeiçoamento dos laudos periciais, especialmente nos casos de
tortura;
-
10. Difundir amplamente a Educacão em direitos humanos entre
agentes públicos, escolas em todos os graus, por meio da mídia etc;
-
11. Criar mecanismos mecanismos para apuração e sanção de
funcionários, guardas, carcereiros, policiais e outros, que espancam e
torturam presos (adultos) e adolescentes em cumprimento de medidas
sócio-educativas, combatendo a impunidade desfrutada por estes agentes do
Estado;
-
12. Realizar campanhas públicas e pressionar os governos
estaduais para a instalação e funcionamento da Defensoria Pública, para
oferecer assistência jurídica de qualidade a todos os presos pobres e
carentes;
-
13. Garantir inspeções por reconhecidas ONGs de direitos humanos
e instituicões públicas nacionais e internacionais, para assegurar
transparência ao sistema prisional-penitenciário;
-
14. Promover a capacitação de agentes do Estado anti-tortura,
através de discussões, cursos, seminários, conferências etc;
-
15. Ampliacão para todos os Estados do Brasil do Programa de
Proteção às Vítimas e Testemunhas Ameaçadas.
12. Casos emblemáticos sobre tortura denunciados à Comissão de
Direitos Humanos
A Comissão possui em seus registros diversos dossiês elaborados
por entidades de direitos humanos relacionando as denúncias de tortura. Além
desses dossiês, há dezenas de processos administrativos abertos nesta Comissão
objetivando acompanhar a apuração dessas denúncias. Ao todo, são mais de 100
casos registrados nesta CDH. Para uma amostragem, selecionamos alguns desses
casos e que servem para demonstrar como tem sido esta prática criminosa no
Brasil.
1- Vítima: JOSÉ IVANILDO SAMPAIO DE SOUZA - Preso em 24 de outubro
de 1995 pela Polícia Federal em Fortaleza, sob acusação de porte de drogas, foi
encontrado morto, no dia 25 de outubro, nas dependências da Superintendência da
Polícia Federal com graves lesões no tórax, abdômen e pescoço. O laudo do IML
confirmou lesões corporais, no entanto concluiu pela ausência de elementos que
pudessem configurar a tortura. Posteriormente, um laudo independente, realizado
pela equipe de legistas da Universidade de Campinas (Unicamp), confirma que José
Ivanildo morreu em decorrência de espancamento. Oito policiais foram indiciados.
Na defesa judicial, a polícia tentou forjar uma versão de que o rapaz foi morto
por um companheiro de cela, o que foi posteriormente desmentido. A União
reconheceu sua responsabilidade e, num caso até então inédito, concedeu à
família da vítima uma pensão mensal.
2- Vítima: PEDRO ALVES FRANÇA - No dia 09 de junho de 1996, foi
detido por policiais estaduais em Manaus sob a suspeita de envolvimento em crime
de latrocínio. Quatro policiais civis foram identificados pela vítima, todos
lotados na Central de Informações da Polícia Civil na cidade de Manaus- AM. O
laudo do IML comprovou que a vítima foi torturada. Os policiais colocaram um
saco de lixo na cabeça da vítima na tentativa de asfixiá-lo enquanto deferiam
socos e pontapés. As sessões de tortura se repetiram por mais outras vezes
enquanto a vítima encontrava-se nas dependências policiais. Em 1998 a
corregedoria de polícia instaurou para apurar a conduta dos policiais.
03- Vítima: WALTER DE JESUS, CARPEGIANE DE OLIVEIRA e DELSON JULIO
DE ARAGÃO FILHO - No dia 29 de setembro de 1997, foram as vítimas abordadas por
seis policiais militares na cidade de Itamaraju, Bahia, entre eles o
subcomandante local, sargento, cabos e soldados. As vítimas foram surpreendidas
pelos policias que não vestiam a farda. Os policiais estavam procurando quem
tinha baleado um policial e roubado um parque de diversão. Os rapazes foram
levados para as margens de um rio e várias tentativas de afogamento foram
deferidas juntamente com espancamentos. Foi instaurado na Procuradoria de
Justiça da Bahia procedimento para apuração dos crimes, mas até o momento não
houve desfecho.
4- Vítima: MANOEL BALDUÍNO ALVES- Em 01 de janeiro de 1997, a
vítima foi presa por policiais militares lotados no município de Chupinguaia,
Estado de Rondônia, e levado ao quartel da cidade. Lá foi trancado numa sala por
três policiais fardados e torturado com choque elétrico e pancada. Em razão da
tortura, perdeu 90% da audição. Foi ameaçado de morte, caso quisesse processar
os policiais. O Ministério Público instaurou procedimento, mas até o momento não
houve conclusão.
5- Vítima: SHEILA BARBOSA DA SILVA: A vítima participou de um
assalto a banco na cidade de Campina Grande, Estado de Minas Gerais. A quadrilha
rendeu policiais militares e civis juntamente com a delegada da Polícia do
município. Os policiais conseguiram reverter a situação e prenderam toda a
quadrilha resultando, no entanto, na morte de dois assaltantes. A vítima e os
demais assaltantes foram detidos e levados para a cadeia pública da cidade, onde
sofreram todo o tipo de tortura como espancamento, choque elétrico, telefone
etc. Os policiais justificam suas atitudes como uma forma de revidar a ação da
quadrilha. A vítima Sheila sofreu diversas sessões de tortura e através de
advogado e do próprio Ministério Público solicitou a realização de exame de
corpo e delito no IML, porém este não foi realizado.
6- Vítima: JOSÉ ROBERTO CORREIA LEITE: No dia 14 de setembro de
1999, a vítima foi presa por policiais militares, na cidade de Pedregal, Estado
de Goiás, juntamente com um menino de 9 anos de idade. Não havia nenhuma
denúncia formulada contra a vítima e tudo indica que a mesma foi confundida
pelos policiais. Os dois foram presos perto da residência de José Roberto e
levados ao quartel da cidade do Novo Gama. No quartel, José Roberto foi
brutalmente torturado. As sessões de tortura foram assistidas pelo menino que
relatou o fato posteriormente no Ministério Público. O menino descreveu como
eram as dependências do quartel. Após este depoimento, os policiais ensejaram
mudanças no interior do estabelecimento com o intuito de não confirmar a
declaração do menino. Porém, a perícia realizada confirmou a versão do menino.
Dois dias após a detenção, foi encontrado o corpo da vítima com marcas de
tortura e sem os órgãos genitais, num lugar ermo da cidade. O mesmo foi
enterrado como indigente. A família e instituições procuram durante meses o
paradeiro da vítima. A elucidação do caso somente foi possível porque a perita,
responsável pelo exame cadavérico, identificou a autoria do corpo. Os policiais
nunca assumiram a detenção arbitrária. O Ministério Público de Goiás teve uma
atuação eficiente e pediu a prisão de nove policiais, que já eram envolvidos em
outros crimes contra a administração da justiça. Todos os policiais estão presos
com prisão provisória. O processo ainda não foi concluído.
07- Vítima: ASCENDINO CAIXETA DA SILVA: Foi preso, sob a acusação
de roubo, em dezembro 1999, e levado para a Delegacia de Polícia de Valparaíso
de Goiás onde sofreu várias sessões de tortura. Posteriormente, foi transferido
para a delegacia de polícia de Luziânia, cidade vizinha onde, segundo
testemunhas de outros presos e familiares, recebeu mais torturas que teriam sido
consentidas pelo próprio delegado de polícia responsável. Representantes da CDH
junto com familiares da vítima e promotor de justiça visitaram o preso,
constataram as torturas e colheram a termo o depoimento da vítima.
Posteriormente, a CDH foi informada que o depoimento do mesmo havia sumido do
procedimento administrativo instaurado pela Secretaria de Segurança Pública de
Goiás. A corregedoria da Polícia Civil arquivou a denúncia.
08- Vítima: WALISON DOS SANTOS DA SILVA: A vítima é menor e foi
detido durante três dias numa delegacia comum da polícia civil que não é
especializada nos direitos do menor, como determinada o Estatuto da Criança e
Adolescente (ECA). O fato ocorreu em junho de 1999, em Xinguara, município do
Estado do Pará. Na delegacia, o jovem sofreu violência física e psicológica,
provocada por policiais civis. A mãe do adolescente e sua representante legal
sequer teve o direito de falar com a vítima durante os dias de detenção. Nunca
houve qualquer processo judicial criminal instaurado contra o menor. Os
policiais alegavam que o jovem usava drogas e que daria informações importantes
de traficantes, por isso foi detido. A vítima, com as torturas sofridas, ficou
com problemas psiquiátricos e necessita de tratamento até os dias de hoje.
Também ficou com deficiências físicas. O Ministério Público do Pará instaurou
procedimentos para apurar as denúncias de tortura, o que ainda não ensejou ação
judicial. Já pela corregedoria de polícia, encarregada de também apurar o fato,
são os próprios delegados da cidade os responsáveis pela sindicância instaurada,
delegados estes que inclusive já tiveram envolvimento em outros casos de
tortura. Este caso foi levado ao CDDPH (Conselho de Defesa dos Direitos da
Pessoa Humana) vinculado ao Ministério da Justiça. Porém, a intervenção do
Conselho praticamente em nada ajudou, visto que os delegados daquele município
em fez de receberem represálias, ao contrário estão sendo promovidos na
carreira, recebendo toda a proteção do Superientendente da Polícia Civil do sul
do Pará.
Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos
Deputados