O
Dossier dos Mortos e Desaparecidos Políticos
Brasil
PREFÁCIO
Tocar nos corpos para machucá-los e matar.
Tal foi a infeliz, pecaminosa e brutal função
de funcionários do Estado em nossa pátria
brasileira após o golpe militar de 1964.
Tocar nos
corpos para destruí-los psicologicamente
e humanamente. Tal foi a tarefa ignominiosa
de alguns profissionais da Medicina e de
grupos militares e paramilitares durante
16 anos em nosso país. Tarefa que acabamos
exportando ao Chile, Uruguai e Argentina.
Ensinamos outros a destruir e a matar. Lentamente
e sem piedade. Sem ética nem humanismo.
Macular pessoas
e identidades. Perseguir líderes políticos
e estudantis. Homens e mulheres, em sua
maioria jovens. É destas dores que trata
este livro. É desta triste história que
nos falam estas páginas marcadas de sangue
e dor.
Vejo o próprio
Cristo crucificado nestas páginas e suas
sete chagas de novo abertas diante de nossos
olhos. Nossa missão humana e cristã ainda
não terminou, pois ainda existem corpos
na cruz. Existem pessoas injustamente torturadas
em novos antros de tortura. Os impérios
do poder especializaram-se nas armas e nos
métodos. Dos pregos, correias e espinhos
que mataram Jesus em Jerusalém, passou-se
às fitas de aço, fios elétricos forjando
cruzes maiores e mais pesadas. Com a inteligência
do demônio e a vontade de fazer o mal.
Em documento
publicado pelo Comitê Brasileiro pela Anistia,
secção do Rio Grande do Sul, sob os auspícios
da Assembléia Legislativa do Estado do Rio
Grande do Sul, em 1984, tínhamos já uma
lista incompleta de 339 mortos ou desaparecidos
sob o domínio da macabra Ideologia da Segurança
Nacional, fiel suporte das ditaduras militares
latino-americanas.
Hoje temos
em mãos documento mais longo, fruto de séria
pesquisa dos próprios familiares nestes
últimos dez anos. Fatos novos surgiram.
Documentos e valas foram abertas com muita
luta e muito empenho. Também com muita dor
e muito sofrimento.
Vejo, com
o olhar da fé, nestes que morreram assassinados,
também surgir a esperança na ressurreição.
Deles e de toda a nossa gente brasileira.
Pois, como dizia santamente nosso amigo
e mártir, Monsenhor Oscar Arnulfo Romero
y Gadamez, Arcebispo assassinado pelas mesmas
forças da repressão em El Salvador: "Se
me matarem ressuscitarei no povo Salvadorenho.
Sim, para
os que crêem e têm fé, a certeza da morte
nos entristece, mas a promessa da imortali-dade
nos consola e reanima. A certeza de que
Deus Pai não suporta ver seus filhos amados
na cruz, nos confirma a ressurreição como
o grande gesto vitorioso diante de todos
os poderes da morte, do mal e da mentira.
Pois, como diz o Apóstolo Paulo: "Realmente
está escrito: Por tua causa somos entregues
à morte todo o dia, fomos tidos em conta
de ovelhas destinadas ao matadouro. Mas,
em tudo isso vencemos por Aquele que nos
amou". (Rm 8,36-37).
Ainda há muito
o que fazer para que toda a verdade venha
à tona.
Ainda há muito
que fazer para que nossa juventude jamais
se esqueça destes tempos duros e injustos.
Ainda há muito
por esclarecer para que a verdade nos liberte
e para que não tenhamos aquele Brasil nunca
mais.
Há ainda muito
amor e compaixão em nossos corações capazes
de vencer toda dor e todo sofrimento que
nos infligiram.
Existem ainda
muitos ombros amigos junto aos familiares
dos mortos e desaparecidos que tornaram
palpável e possível a esperança. E que afastaram
o desânimo e o medo nas horas difíceis.
Ombros largos
como os do grande Senador Teotônio Vilela
até ombros femininos e corajosos da impecável
prefeita Luiza Erundina de Sousa. Ombro
de apoio incondicional da nossa Comissão
de Justiça e Paz de São Paulo, até o próprio
ombro chagado e vitorioso do Cristo, visível
em sua Igreja, seus discípulos e seus mártires.
Carregando em sua cruz a cruz destes que
morreram pela justiça em nossa terra. Carregando
nestas cruzes a cruz do próprio Cristo.
Este é um
livro de dor. É um memorial de melancolias.
Um livro que fere, e machuca, mentes e corações.
Um livro para fazer pensar e fazer mudar
o que deve ainda ser mudado e pensado em
favor da vida e da verdade.
Um livro dos
trinta anos que já se passaram.
Mas também
um livro que faça a verdade falar, gritar
e surgir como o sol em nossa terra. Um livro
que traga muita luz e esclarecimento nos
anos que virão.
Um livro,
vários brados, uma certeza verdadeira. Nunca
mais a escuridão e as trevas. Nunca mais
ao medo e à ditadura. Nunca mais à exclusão
e à tortura. Nunca mais à morte. Um sim
à vida!
São Paulo, 21 de novembro de 1994
Paulo Evaristo, CARDEAL
ARNS
Arcebispo Metropolitano de São Paulo
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