Algumas Influências na
Constituição Federal
A Declaração Universal dos
Direitos Humanos, síntese jurídica que pretende exercer a tutela dos
direitos fundamentais do homem, principalmente contra os cometimentos
arbitrários por parte do Estado, se revela um estatuto privilegiado
que alinha os tradicionalmente chamados direitos e garantias
individuais, em seguida contemplando os direitos difusos e coletivos.
Através de uma superposição
de conquistas ao longo da história contemporânea, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos acabou por se constituir em base e
fundamento para um verdadeiro direito internacional de natureza
humanitária.
Trata-se de um diploma jurídico
que passou a conferir status de ente internacional ao indivíduo,
protegendo-o como pessoa em todas as partes do mundo, consagrando três
fundamentos essenciais: a certeza dos direitos, a segurança dos
direitos e a possibilidade dos direitos.
“Com a Declaração de 1948,
tem inicio uma terceira e última fase, na qual a afirmação dos
direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva: universal no
sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são
mais apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens;
positiva no sentido de que põe em movimento um processo em cujo final
os direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados ou
apenas idealmente reconhecidos, porém efetivamente protegidos até
mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado. No final desse
processo, os direitos do cidadão terão se transformado, realmente,
positivamente, em direitos do homem. Ou. pelo menos, serão os
direitos do cidadão daquela cidade que não tem fronteiras, porque
compreende toda a humanidade; ou, em outras palavras, serão os
direitos do homem enquanto direitos do cidadão do mundo.”
(Norberto Bobbio - A Era dos
Direitos)
Tal ordenamento implica na
fixação de direitos e deveres mútuos entre os indivíduos de todas
as origens e procedências, de modo a não subsistir qualquer excludência
ou exceção.
Estabelece prerrogativas e
obrigações inescusáveis, tanto ao Estado como ao cidadão comum,
constituindo-se em um dever de todos, e que tem como referencial a
permanente reciprocidade.
Necessário enfatizar, ainda,
a sua importância não apenas como um simples conjunto de normas jurídicas,
mas principalmente como ideário da humanidade em prol da construção
de uma sociedade universalizada, invariavelmente submisso apenas a parâmetros
fundamentais de conduta, cuja dinâmica vem se expressando através de
uma evolução consubstanciada tanto pelos diplomas temáticos específicos
que a ela vão se aderindo, como pela ação prático de cada Estado e
de cada cidadão no sentido de materializar efetivamente essas normas
na vida cotidiana.
“(...) quero chamar a tenção
para o fato de que a Declaração Universal é apenas o início de um
longo processo, cuja realização final ainda não somos capazes de
ver. A Declaração é algo mais do que um sistema doutrinário, porém
algo menos do que um sistema de normas jurídicas. De resto, como já
várias vezes foi observado, a própria Declaração proclama os princípios
de que se faz pregoeira não como normas jurídicas, mas como ‘ideal
comum a ser alcançado por todos os povos e por todas as nações’.”
(Norberto Bobbio - A Era dos
Direitos)
Na verdade, sob uma visão
relativista, percebe-se que o exercício cotidiano dos princípios
estabelecidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos,
encontra-se ainda muito distante da realidade comum dos cidadãos em
qualquer parte do mundo, funcionando mais como um ideal a ser alcançado,
do que propriamente como uma coleção de regras em contínuo
cumprimento, estabelecendo assim um profundo e permanente paradoxo
existente entre o discurso jurídico e a ação social.
“Não se poderia explicar a
contradição entre a literatura que faz a apologia da era dos
direitos e aquela que denuncia a massa dos ‘sem direitos’. Mas os
direitos de que fala a primeira são somente os proclamados nas
instituições internacionais e nos congressos, enquanto os direitos
de que fala a segunda são aqueles que a esmagadora maioria da
humanidade não possui de fato (ainda que sejam solene e repetidamente
proclamados).”
(Norberto Bobbio - A Era dos
Direitos)
Em última análise, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, apesar de já revelar algumas lacunas
do espírito humano contemporâneo em seu texto original, muito em
decorrência do tempo decorrido em face dos direitos que foram
surgindo nesse ínterim, proporciona uma visão dos Direitos Humanos básicos
potenciais, fundamentalizados pelo reconhecimento e pela positivação,
sob forma concisa e objetiva, não perdendo de vista os múltiplos
aspectos do universo extremamente rico em modalidades de manifestações,
onde trafega.
“A Declaração Universal de
1948 apresenta hoje, meio século após a sua proclamação pela
Assembléia Geral das Nações Unidas, duas deficiências evidentes.
Ela desconhece o direito à identidade cultural das minorias étnicas,
religiosas ou lingüísticas como contraponto necessário ao princípio
da isonomia. direito este que só veio a ser reconhecido com a aprovação
do Pacto sobre Direitos Civis e políticos de 1966 (art. 27). Ela é,
ademais, anterior ao surgimento dos chamados direitos da humanidade,
como o direito à paz, à utilização dos bens comuns a todos os
homens e à preservação do meio ambiente.”
Já a Constituição Federal
promulgada em 1988, denominada informalmente como Constituição Cidadã,
se revela como o diploma constitucional brasileiro mais afinado e
melhor identificado com os propósitos declaratórios, reconhecendo
uma plêiade de Direitos Humanos como essenciais e fundamentais,
inserindo-os no ápice do ordenamento jurídico pátrio - arduamente
conquistado e democraticamente construído - ao qual tudo o mais se
subordina, principalmente as leis, enquanto regulamentadoras pela via
das normas infraconstitucionais.
“A Carta de 1988 é a
primeira Constituição brasileira a ele recai o princípio da prevalência
dos direitos humanos, como principio fundamental a reger o Estado
brasileiro nas relações internacionais.”
(Flávia Piovesan — Direitos
Humanos e o Direito Constitucional Internacional)
“A Constituição trouxe
enorme progresso na área da proteção dos direitos individuais ao
conferir tratamento especial aos direitos humanos, reconhecendo sua
universalidade e eficácia imediata. Em flagrante contraste com o Código
Penal dos anos 1940, que dá ênfase à idéia do patrimônio, toma
uma clara posição na enumeração das garantias fundamentais, pela
defesa da vida e da pessoa humana.”
(Paulo Sérgio Pinheiro — O
Passado não está morto: nem passado é ainda)
No entanto, é forçoso
reconhecer que, aqui e ali subsistem críticas, algumas severas, com
relação aos textos legais que elencam apenas os direitos, sem
explicitar em contrapartida os respectivos e correspondentes deveres.
“Ora, uma Constituição não
tem que fazer declaração de deveres paralela à declaração dos
direitos. Os deveres decorrem destes na medida em que cada titular de
direitos individuais tem o dever de reconhecer e respeitar igual
direito do outro, bem como o dever de comportar-se, nas relações
inter-humanas, com postura democrática, compreendendo que a dignidade
da pessoa humana do próximo deve ser exaltada como a sua própria.
Na verdade, os deveres que
decorrem dos incisos do art. 5 têm como destinatários mais o Poder Público
e seus agentes em qualquer nível do que os indivíduos em
particular.”
(José Afonso da Silva - Curso
de Direito Constitucional Positivo)
A Constituição Federal
concede, através do Artigo 4-lI, a prevalência dos Direitos Humanos
sobre os demais, num contexto de cooperação entre os povos para o
progresso da humanidade (Artigo 4 - IX), reconhecendo e reproduzindo
os princípios e direitos estipulados na Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
O diploma constitucional
brasileiro vai além, especificando novos e garantindo outros direitos
que surgiram e se consolidaram nas consciências contemporâneas
durante esse interregno de exatos quarenta anos verificado entre a
proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos”,
ocorrida em 1948, e a elaboração da mais recente carta
constitucional brasileira.
“0 texto de 1988, traz uma
ordem econômica que tem como princípios a livre iniciativa, a livre
concorrência, a propriedade privada, princípios de origem liberal
que ao lado de princípios de origem socialista, como a função
social da propriedade, o pleno emprego, a dignidade do trabalho
humano, somam-se a direitos de terceira geração como o direito do
consumidor e o meio ambiente, para apontar para uma ordem econômica
que embora avançada, pois incorpora o que há de mais atual em termos
de direitos fundamentais, pode no máximo ser interpretada como uma
ordem econômica neoliberal em sentido amplo, com um modelo de Estado
Social não clientelista, dentro de um modelo intervencionista estatal
com a finalidade de promover a diminuição das desigualdades sociais
e regionais dentro de um capitalismo social.”
(José Luiz Quadros de Magalhães
– Princípios Universais de Direitos Humanos e o Novo Estado Democrático
de Direito)
Para tanto, até concepções
e conceitos como, soberania e autodeterminação sofreram reavaliações
de conteúdo, principalmente sob o aspecto da subordinação sem
subalternização, tudo com vistas a se compatibilizar com os
preceitos declaratórios, bem como com as recentes imposições
constitucionais.
“Os motivos da resistência
militar aos Direitos Humanos são, basicamente, ligados à questão da
soberania brasileira.”
(Dalmo de Abreu Dallari -
Direitos Humanos no Brasil: uma Conquista Difícil)
“Verifica-se no presente
momento histórico a necessária análise revisional do conceito de
soberania, conferindo-lhe amplitude democrática. mediante afirmativa
presença da cidadania na vida nacional.
O espaço público passa
finalmente a dispor de agentes sociais, cada vez mais dotados de
consciência e capacitação para propiciar eficácia normativa e
operacional de observância dos valores básicos dos seres humanos.”
(Nilmário Miranda —
Direitos Humanos, Soberania e Desafios da Nacionalidade para o
Terceiro Milênio)
Na realidade, toda a estrutura
da Constituição Federal aproveita as emanações jurídicas
fundamentais dispostas pela Declaração Universal dos Direitos
Humanos, ao ponto de essa última poder ser até considerada como sua
mentora e matriz.
“A Constituição democrática,
que pensamos, deve se aproximar de um texto que reduza os seus princípios
àqueles considerados universais, somados a princípios regionais,
desde que não inibidores da evolução de modelos locais,
principalmente no que diz respeito ao estabelecimento de modelos sócio-econômicos
pré-fabricados pelos conglomerados econômicos mundiais.”
(José Luiz Quadros de Magalhães
— Princípios Universais de Direitos Humanos e o Novo Estado Democrático
de Direito)
Por outro lado, o caráter
extremamente dinâmico do reconhecimento dos múltiplos Direitos
Humanos potenciais, num contexto de elevada pluralidade de expressões
em todo o mundo, fundamentalizados exatamente através desses
reconhecimentos, ou seja, passaram a se constituir em fundamento legal
para sua sustentação ética e jurídica, tem exigido do Brasil uma
postura de agilidade incomum ao Estado para acompanhar seu
desenvolvimento.
“Para o próximo milênio,
aguarda-se do Brasil uma posição de concordância dos instrumentos e
tratados de proteção à pessoa humana, a revisão de cláusulas
facultativas e a conjunção harmoniosa entre a Constituição Federal
e as normas internacionais de direitos humanos. Somente assim, nossa
integração ao mundo dar-se-á de forma satisfatoriamente global.”
(Nilmário Miranda - Direitos
Humanos, Soberania e Desafios da Nacionalidade para o Terceiro Milênio)
Apesar da premissa de que o
ordenamento jurídico de cada país obrigatoriamente se submete às
ocasiões e forças determinantes do momento histórico especifico de
sua elaboração, oferecendo variadas alternativas de estrutura, o
mesmo não acontece com as disposições mandamentais, que revelam uma
origem comum, uma matriz ética mundial, uma chancela que imprime um
extrato normativo capaz de concentrar um ideário, uma escala ética
de valores, tudo com vistas a expressar um mínimo denominador comum
contra o qual a humanidade não pode transigir.
“A maioria, se não a
totalidade, dos preceitos desta Declaração nos deixa a impressão de
slogans comuns. E de fato o são. Sua maior força está justamente
nisso. A evidência é o melhor sinal de sua procedência. Um
documento como esse não procura a originalidade mas a veracidade.
Quanto menos provocar a contestação, como hoje se diz, do leitor,
mais terá alcançado o seu objetivo, que deve ser, antes de tudo,
tornar patente o que está latente em todas as consciências. Numa
obra literária, o lugar-comum é uma prova de inferioridade
substancial. Numa obra científica, o lugar-comum é um grau inicial
ou elementar da aproximação da verdade. Mas, numa obra moral ou jurídica,
o lugar-comum é um sinal de perfeição.”
(Alceu Amoroso Lima — Os
Direitos do Homem e o Homem sem Direitos)
Em idêntico sentido, por tudo
quanto já foi dito, pode-se facilmente concluir que não podem
existir políticas públicas de qualquer natureza, sem que em sua
formulação incidam, obrigatoriamente, a prevalência e as
prerrogativas conferidas aos Direitos Humanos como referencial
permanentemente obrigatório.
Por outro lado, os Direitos
Humanos somente se materializam através de políticas públicas
eficazes, capazes de conferir sustentação ao pleno exercício da
cidadania, contemplando políticas e ações que garantam o efetivo
cumprimento dos preceitos e normas fundamentais e, principalmente,
resultem na redução as desigualdades sociais.
Em suma, o entrelaçamento dos
diversos conceitos e princípios abrigados tanto na Declaração
Universal dos Direitos Humanos como na Constituição Federal, que
algumas vezes se imbricam e até mesmo se confundem, sem que haja uma
troca ou simbiose que lhes disfarce a origem, não permite que se
estabeleça um percentual exato de incidência, mas o grau de influência
entre um texto e outro é extremamente significativo, sendo que, em
muitos casos, a identidade é absoluta, como que vertida da mesma
pena, e por uma consciência mundial, que todo ser humano, a final,
também acaba por reconhecer como sua.
Tais observações continuam
proporcionando diversificadas reflexões, uma delas o reconhecimento
da existência de uma ordem e um direito supraconstitucional, que
parecem defender direitos e interesses supranacionais, mas que diz
respeito tanto a uma ordem jurídica e social multinacional, como ao
cotidiano de cada uma das pessoas indistintamente, e as atinge sem
exceção, de forma contundente e naquilo que lhes é mais profundo e
essencial.
“A luta pelos direitos
humanos se dá no cotidiano, no nosso dia-a-dia, e afeta profundamente
a vida de cada um de nós e de cada grupo social. Não é mera convicção
teórica que faz com que os direitos sejam realidade, se essa adesão
não é traduzida na prática em atitudes e comportamentos que marquem
nossa maneira de pensar, de sentir, de agir, de viver.”
(Vera Maria Candau - Tecendo a
Cidadania)
Num segundo momento, a
constatação da existência de “normas-matriz de comportamento
social e jurídico, que neste último meio século vêm servindo de
molde, matriz e modelo, tal qual uma chancela imprime um padrão, que
confere ou não autenticidade a determinado Estado para participar,
seja por convicção ou simples adesão, do conjunto das nações.
Outra reflexão que se faz
necessária pela contundência do paradoxo, é a virtual imposição
dos Direitos Humanos como matéria imperativa, a salvo de discussões
e alternativas, em contraposição ao caráter essencialmente popular,
controverso e plural da democracia, que inclusive lhes serve de
ambiente e adubo, estabelecendo um dilema quando da confrontação
entre a supremacia dos Direitos Humanos e a supremacia da vontade
popular.
“Por outro lado, se se
admite que o Estado nacional pode criar direitos humanos, e não
apenas reconhecer a sua existência, é irrecusável admitir que o
mesmo Estado também pode suprimi-los, ou alterar de tal maneira o seu
conteúdo a ponto de torná-los irreconhecíveis. Ademais, a criação
dos direitos humanos pelo Estado nacional conduziria à
impossibilidade de se lhes atribuir o caráter de exigências postas
por normas universais. sem as quais, como salientou Kant. não há ética
racionalmente Justificável.”
(Fábio Konder Comparato - A
Afirmação Histórica dos Direitos Humanos)
Contudo, parece necessário
repensar a democracia como simples elemento de participação
eleitoral, questionando até a própria legitimidade da via da
representação como manifestação da vontade popular, procurando
estabelecer um maior envolvimento conceitual com a cidadania, com a
participação do cidadão e com a adesão aos Direitos Humanos como
postulado básico e como vontade popular dos povos.
Malgrado os dados e índices
assustadores revelados nas mais diversas áreas de atuação dos
Direitos Humanos, e as situações no mínimo angustiantes pelos quais
atravessa o mundo contemporâneo, com a aparente decretação do fim
das utopias políticas, emergem os Direitos Humanos como utopia possível,
lançando mão de sua matriz ética como único sonho indelével,
reconhecendo a bandeira dos Direitos Humanos como um processo não
messiânico de salvação da humanidade através de seu próprio esforço
e determinação. Mais que isso, reconhecendo a importância de não
apenas fundamentá-los, proclamá-los, ou mesmo expressar sua garantia
formal, mas principalmente internalizá-los, assumi-los, exercê-los e
protegê-los.
“Surge agora à vista o
termo final do longo processo de unificação da humanidade. E com
isto, abre-se a última grande encruzilhada da evolução histórica:
ou a humanidade cederá à pressão conjugada da força militar e do
poderio econômico-financeiro fazendo prevalecer uma coesão puramente
técnica entre os diferentes povos e Estados, ou construiremos enfim a
civilização da cidadania mundial, com o respeito integral aos
direitos humanos, segundo o princípio da solidariedade ética.”
(Fábio Konder Comparato - A
Afirmação Histórica dos Direitos Humanos)
“A utopia de um país de
pessoas verdadeiramente livres, iguais em direitos e dignidade, começou
a se converter em realidade. As barreiras do egoísmo, da arrogância.
da hipocrisia, da insensibilidade moral e da injustiça institucional,
que até hoje protegeram os privilegiados, apresentam visíveis
rachaduras. Já começou a nascer o Brasil de amanhã, que por vias
pacificas deverá transformar em realidade o sonho de justiça e de
paz, que muitos já ousam sonhar.”
(Dalmo de Abreu Dallari -
Direitos Humanos no Brasil: uma conquista difícil)
Pare e Reflita 20
A partir daquilo que já foi
lido até agora, como você vê a importância dos Direitos Humanos na
sua vida cotidiana?