O
ciberactivismo e a experiência
da cidadania global
Rui Bebiano
Síntese de intervenção pública
produzida no Porto, em Setembro de 1999.
1. A mobilização
em defesa do povo de Timor-Leste tem passado por grande variedade
de manifestações, algumas delas bastante imaginativas e por
vezes inesperadas. Nas semanas mal dormidas em que as ruas de
Portugal se encheram de cidadãos genuinamente emocionados e
colectivamente indignados, um clamor não menos ruidoso foi
levantado por pessoas de todo o mundo que, em complemento a outras
formas de protesto ou como única possibilidade de se
manifestarem, resolveram actuar de maneira diversa. A Internet
serviu por esses dias como instrumento de informação, de
organização e de expressão de sentimentos e de opiniões,
dotado de uma dimensão e de um poder que levariam o próprio
secretário-geral das Nações Unidas, na declaração pública
sobre o início da intervenção da força multinacional, a
referir-se à importância desse imenso protesto digital.
O facto confirmou
afinal aquilo que um volume crescente de cidadãos tem vindo a
perceber, mas que diversos outros, entre os quais se podem contar
muitos daqueles que regularmente se empenham nas grandes causas
que envolvem as sociedades, se têm recusado a ver. Por
preconceito ideológico, por fobia das tecnologias ou muitas vezes
por simples ausência de conhecimentos. Vale a pena, por isso,
observar um pouco daquilo que, no que respeita à utilização das
novas tecnologias no combate político e na experiência da
cidadania, justifica o empenho e a militância ou instiga à
recusa e ao temor.
2. Num
artigo da Manière de Voir de Julho, Ignacio Ramonet,
apesar de reconhecer inicialmente que "algumas das lutas
mais interessantes conduzidas à escala planetária pelo movimento
social" não teriam sido tão eficazes sem a Internet,
sublinha, com grande vigor, que essas manifestações electrónico-democráticas
não devem fazer esquecer que, "ao mesmo tempo, as
censuras e manipulações, sob aspectos diversos, também aí
regressam em força". Os novos instrumentos seriam assim,
também eles, "novos e sedutores ópios das massas, que
propõem uma espécie de melhor dos mundos e distraem os cidadãos
desviando-os da acção cívica". Aliás, já em 96, num
outro número da revista, Eduardo Galeano considerava os média
electrónicos como dispostos "ao serviço da incomunicação
humana" e da "adoração unânime da sociedade
neoliberal", e um outro articulista, Asdrad Torrès,
criticava aquilo que tomava como uma espécie de euforia míope
dos entusiastas, notando que essa atitude, como toda a atitude que
aproxima muito rapidamente a utopia, "encontra facilmente
os seus cruzados mas não belisca de facto as relações
sociais", as quais entendia que "não são resolúveis
na fibra óptica". Mais recentemente, Dominique Wolton, o
director do laboratório "Communication et Politique" do
CNRS que publicou Internet et après?, tem procurado
demonstrar que a Internet está a criar um mundo fictício de uma
comunicação que se situa marginalmente em relação à realidade
social. Inferindo daí, como escreveu há pouco no Monde
Diplomatique, que se pretendemos efectivamente participar na
transformação do mundo, é preciso, palavras dele, "aprendermos
a desligar-nos do e-mail".
Na origem destas
reservas encontram-se, sem representarem causalidade única mas
com um peso muito significativo, encontram-se os dois rostos, as
duas metades, de um extermismo afirmado em relação à Internet.
O lado optimista é o daqueles que aderem imediata e mais ou menos
incondicionalmente aos novos processos. Pessoas para quem a evolução
tecnológica se ergue como uma espécie de vaca sagrada. Que não
duvidam que a telemática solucionará um dia os problemas de
sociabilização e será capaz até de preencher a maior parte das
falhas da democracia, através da afirmação dos instrumentos
possíveis, constantemente inventados, de um "populismo
informático" que promoverá uma espécie de ágora global.
Ciberentusiastas e visionários como Roger Fidler, jornalista,
designer, cientista e professor de jornalismo e comunicação, que
desde 1979 desenvolve projectos de jornais apoiados em tecnologias
de ponta e se mostra um ilimitado missionário desta espécie de
experiências, ou Derrick de Kerckhove, antigo discípulo de
McLuhan e militante da Internet, insistem nas capacidades imensas
da máquina computacional, esse "cérebro que nunca para
de trabalhar, de pensar, de produzir informação, de analisar e
combinar". Do outro lado, a metade negativa,
declaradamente pessimista, é aquela protagonizada pelos muitos
inforcépticos que olham as novas máquinas comunicantes com
desconfiança, com temor, desenvolvendo fobias, precisamente
porque elas perturbam o equilíbrio de um mundo que, seja qual for
a sua cor, lhes custa ver mudar ou, pior do que isso, porque
diante da rapidez da óbvia mudança se autoexcluem ou se julgam
marginalizados.
As duas atitudes
distanciam-se da realidade dos factos, coisa que percebemos quando
reflectimos um pouco sobre o possível papel da revolução informática
no aperfeiçoamento da democracia. Esta reflexão exclui a fábula
imaginosa de um paraíso recém-encontrado. Mas também a antevisão
pessimista da apocalíptica subordinação do ser humano em relação
à máquina.
3. O
uso da rede pode, em termos práticos, produzir efeitos que têm a
maior importância para uma experiência democrática e dinâmica
da cidadania. Na verdade, através de um simples processo de
enunciação torna-se possível e fácil entender como a Internet
pode servir de ferramenta para criar e desenvolver, em termos
positivos, quatro conjuntos de possibilidades.
O primeiro tem a
ver com a tentativa de ampliar a participação dos cidadãos no
debate político. É agora possível criar e publicitar opiniões,
de uma forma individual ou colectiva, através de texto, do som,
da imagem ou da combinação de todos estes elementos. É possível
exprimi-las e permutá-las de maneira interactiva, com reduzidos
limites de natureza geográfica, tecnológica ou económica.
Qualquer um pode trocar mensagens, participar em listas de discussão
através do correio electrónico, entrar em toda a sorte de fórum
ou criar outros novos, produzir um jornal electrónico ou intervir
naqueles já existentes. Formalmente não existe censura, embora
estejam a ser procuradas – como seria inevitável diante de um
tal instrumento de liberdade – formas de, aqui ou além, e em
alguns domínios, poder impor a sua presença. Todavia, a coincidência
autor-editor-público, que a Internet permite exercitar, limita
desde logo, sobretudo por comparação com aquilo que se passa
desde há séculos no universo gutemberguiano, a acção previsível
dos mecanismos censórios.
O segundo conjunto
relaciona-se com a simplificação e o alargamento das formas de
exprimir a vontade política dos indivíduos e das comunidades. É
principalmente deste aspecto que se fala quando, repetidamente, se
referem nos média as possibilidades da chamada "democracia
electrónica". Trata-se da possibilidade de usar a telemática
– através de tecnologias crescentemente seguras e simplificadas
– na execução de formas de sufrágio democrático que
completam ou simplificam o seu exercício físico, bem como na
organização e na apresentação aos órgãos de decisão de petições,
na expressão de protestos e de anseios ou ainda na formulação
de apoios a iniciativas.
O terceiro conjunto
relaciona-se com as modalidades de organização cívica dos cidadãos
e as possibilidades de, por esta via, elas funcionarem de uma
forma mais próxima daqueles que nela participam. Em particular,
partidos e movimentos, bem como organizações não governamentais
de todo o tipo, cedo entenderam aquilo que nesta área poderiam
desenvolver: muitas delas foram criadas e cresceram, ou então
passaram a funcionar de uma forma mais rápida e eficaz, com
recurso aos novos meios.
O quarto e último
grupo de possibilidades prende-se com a universalização gradual
do acesso à cultura, ao conhecimento e à informação, que a
Internet permite materializar de uma forma razoavelmente rápida.
Esta universalização comporta, naturalmente, riscos de aculturação
e dificuldades no que toca ao equilíbrio dos meios, mas
proporciona um espaço de partilha e de desenvolvimento sem igual,
encurtando crescentemente a distância entre centros e periferias,
entre ricos e pobres, e proporcionando um esbater das limitações
impostas pelo isolamento físico, psicológico ou geográfico dos
indivíduos e das comunidades.
4. A
observação optimista destas faculdades não exclui no entanto
– como área alguma da actividade humana pode excluir – o seu
reverso. Afinal, todos os instrumentos que manipulamos podem
aparecer-nos como "bons" ou como "maus",
consoante o uso que lhes damos, e a Internet, como criatura nossa,
não constitui excepção. Aceitando pacificamente este facto, será
útil que se adiantem e comentem alguns dos "argumentos"
que têm conduzido à desconfiança por vezes experimentada diante
deste utensílio, e à recusa da sua aplicação no
desenvolvimento da experiência social da cidadania. Podem
definir-se aqui alguns dos ídolos e mostrar de que maneira podem
eles facilmente cair:
a) A Internet
olhada como uma espécie de "centro virtual da depravação",
por onde circulam em larga escala e quase sem entraves os pornógrafos,
as mais obscuras associações do mundo do crime, os agentes do
terrorismo internacional, toda a sorte de seitas e de loucos
partidários da violência. Ou então vista como uma espécie de
gigantesco "salão de jogos", voltado para a pura diversão,
para o mais alienante entretenimento, para discussões infindáveis
sobre jogos de computador ou os defeitos e as qualidades dos
dirigentes desportivos, conversas sem nexo madrugada fora de
milhares de adolescentes frequentadores dos canais ínvios e
tortuosos do IRC que usam o chat como sucedâneo do Ecstasy.
A realidade dos factos não contradiz no entanto o seu carácter
parcial, passageiro, e que, apesar de ainda muito importante,
tende a "passar de moda" e a ocupar um lugar cada vez
mais reduzido no volume de tráfego em linha.
b) A Internet vista
como instrumento de comunicação que isola o indivíduo e o
conduz à passividade. O carácter falível deste argumento não
resiste à comparação da sua utilização com a da televisão,
instrumento que na sua forma actual nada tem de interactivo e que,
por isso mesmo, induz o indivíduo ao isolamento e convida-o a uma
atitude de mero espectador numa escala incomparavelmente superior.
Ainda assim, não caberia na cabeça de ninguém ignorar o uso da
televisão como instrumento de comunicação. Porquê fazê-lo então
em relação à Internet? Tomando como exemplo o lançamento
dentro da própria rede, pela EFF (Electronic Frontier Foundation),
de uma campanha contra a administração Clinton, quando esta
tentou, em nome daquilo que chamou de "decência",
cercear determinados aspectos da liberdade de informação, será
fácil perceber como essa possibilidade não existiria no universo
a televisão.
c) A Internet como
instrumento do processo de globalização, que exponencia o papel
imperialista do modelo cultural americano (apoiado aqui, em
primeiro lugar, no uso do inglês como "língua franca"
na Net), e alarga como nenhum outro a actividade tentacular da
empresas "globais". Não discutindo aqui o valor deste
facto, ele apenas parece poder ser contrariado através da emergência
online de alternativas que captem o interesse dos cidadãos. Que
promovam a diferença na forma, na invenção, na língua, nos
conteúdos. Além disso, um ciberactivismo planetário
possibilitado pela rede pode projectar também um combate, à
escala planetária. Existe uma "globalização das
causas" que as redimensiona, como, aliás, o caso recente de
Timor-Leste comprova.
d) A Internet como
espaço "silencioso" que os poderes não atendem, dada a
sua limitada visibilidade. As pioneiras iniciativas em linha dos
zapatistas, o trabalho de ruptura do cerco desencadeado nos dias
mais difíceis de Sarajevo, a acção dos sem-abrigo que a partir
dos terminais da Biblioteca Pública de Seattle desenvolveram uma
campanha pelos seus direitos com resultados claros práticos, as
recentes iniciativas planetárias pela libertação do activista
americano negro Mumia Abu-Jamal, o uso da rede como espaço
aproveitado em permanência pelas ONGs (a Amnistia Internacional,
a Organização Derechos Humanos em Chile, a Human Rights Web ou
os Repórteres sem Fronteiras), as sucessivas iniciativas electrónicas
nas quais se tem empenhado homens como Noam Chomsky, e, em
Portugal, a recente campanha "pela acessibilidade na
Net" denunciam o inverso. Não será aliás por um acaso que
regimes autocráticos como os dependentes do fundamentalismo islâmico,
a China e a Coreia do Norte, ou mesmo Cuba, têm colocado os
maiores entraves a uma utilização livre da Internet.
e) A Internet como
elemento determinante da chamada "infoexclusão",
acentuando a distância entre aqueles que possuem a capacidade
tecnológica de a manipular e aqueles que a observam à distância.
Existe até quem, de acordo com esta ideia e na pista dos antigos
ludistas, entenda os computadores como máquinas potencialmente
opressoras que é preciso destruir ou reduzir a um funcionamento mínimo.
Afinal nada de muito diferente daquilo que no início do século
alguns activistas consideravam em relação ao telefone: a
generalização de "tecnologias de massas", como a
Internet, tendem rapidamente a diminuir os custos, a
generalizarem-se, a serem colocadas ao dispor, se não de todos,
pelo menos da generalidade dos cidadãos, a possibilitarem o até
há pouco impossível. Para muita gente, como seria possível
aceder, numa aldeia do interior da África, a uma biblioteca ou a
um noticiário constantemente actualizado? A iniciativa dos
governos e dos grupos de cidadãos desempenhará no entanto, no
que se refere à transformação do acesso à Internet num
direito, determinante.
f) A Internet é um
instrumento de "menorização cultural" das novas gerações,
inibindo a actividade intelectual, em particular a prática da
leitura. Ora, contrariando esta ideia, de facto nunca se escreveu
nem se leu tanto como agora, e isto deve-se em larga medida à
Internet. O tipo de leitura é certamente diverso e o seu
desenvolvimento nem sempre muito claro. Existe, evidentemente,
muita informação de má qualidade ou demasiado condensada
(observe-se a superficialidade dos novos "portais", como
o Netc e o Portal.Pt, ou das publicações exclusivamente electrónicas,
como o Diário Digital), fornecendo, entre anúncios de carros e
cotações da bolsa, uma informação extremamente abreviada,
demasiado asséptica e que, como tal, se pode revelar perigosa.
Mas nem por isso o meio deixará de ser usado com profusão. E por
isso mesmo requer um esforço no sentido de melhorar e de
diversificar os conteúdos.
5. A
Internet tende pois a transformar-se num espaço de comunicação
vital para as sociedades. Pode constituir um fórum para a livre
discussão de ideias, no qual é ainda possível – apesar das
tentativas em contrário – reduzir ao mínimo os filtros criados
entre o emissor e o receptor de informação. Onde é possível,
necessário e urgente o florescimento de meios de expressão
alternativos, graças aos quais um cada vez maior número de cidadãos
poderá ter acesso a múltiplas formas de informação e ampliar a
sua capacidade para emitir e para fazer ouvir opinião. Numa
escala nunca antes sonhada.
Cabe às forças
civicamente mais empenhadas, diante deste fenómeno absolutamente
incontornável, combaterem para que essas possibilidades não
sejam limitadas mas antes alargadas. Poderosamente alargadas. E
para que a informação produzida não seja apenas aquela que os
poderosos do mundo permitem. A luta pelo progresso das sociedades
passa também, e numa larga medida, por aqui.
Out.99
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