Relatório
COMISSÃO
DE DIREITOS HUMANOS - RELATÓRIO
- ALCÂNTARA-MA
Este relatório
presta contas da viagem à cidade maranhense de Alcântara, onde
foram feitas visitas às comunidades e uma audiência pública na
igreja de São Matias, com a finalidade de analisar o impacto da
instalação da base de lançamentos na vida e cultura dos
descendentes dos quilombos, tradicionais habitantes da região.
Originalmente a
comissão seria composta do relator e mais três deputados
maranhenses: Neiva Moreira (PDT), Sebastião Madeira (PSDB) e Nice
Lobão (PFL). Por razões diferentes, os deputados do Maranhão não
puderam participar, ficando o trabalho restrito ao relator e a
procuradora Débora Duprat, sendo apoiados pelo ex-deputado
Domingos Dutra, dirigentes do Sindicato de Trabalhadores Rurais e
religiosos.
A referência de
nosso trabalho é o documento anexo, uma denúncia enviada à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em
Washington. Descreve a desestruturação sociocultural e a violação
ao direito de propriedade e ao direito à terra, tradicionalmente
ocupada pelas comunidades de Samucangaua, Iririzal e Ladeira.
Acusado: Centro de Lançamentos de Alcântara, base de onde devem
ser lançados os satélites brasileiros e objeto de um acordo de
cessão aos Estados Unidos, tema relatado pelo deputado Waldir
Pires. O texto do deputado Waldir Pires, explicitando suas
ressalvas críticas ao acordo, está anexado a este relatório.
Alcântara fica a
22 quilômetros de São Luís . Elas se ligam pelo serviço de
barcos que cruzam a Baia de São Marcos. As estradas terrestres
para Alcântara estão cheias de crateras, como se tivessem sido
levemente bombardeadas. Mesmo as estradas próximas ao Centro de
Lançamentos estão em estado precário, indicando que um dos
objetivos do acordo com os Estados Unidos é o de buscar fontes
adicionais para financiar o projeto.
Chegamos a Alcântara
ao anoitecer e fomos visitar a comunidade de Ladeira, a uns 20
quilômetros do centro. A comunidade, de descendentes dos
quilombolas, não tem luz. Com a ajuda de lamparinas, realizamos
uma reunião informal, para convidá-los a participar da audiência
pública. Como as visitas faziam parte de nossa missão, registro
que a comunidade de Ladeira tem dificuldades para produzir e quase
nenhuma ajuda para desenvolver um projeto de sustentação.
Registro essa passagem para acentuar que a situação da Ladeira
tem ligações com o conjunto de denúncias apresentadas. Ela
reflete também as dificuldades que uma população de 18.950
habitantes, descendentes de quilombolas e indígenas, compondo o
que o antropólogo Alfredo Wagner Berno definiu como um Território
Étnico, enfrenta com a instalação do Centro de Lançamentos. O
remanejamento das comunidades que dividiam o uso da terra e da
pesca de uma forma complexa e ecologicamente sustentável
dificultou a própria capacidade de produzir sua sobrevivência,
tudo isso associado ao impacto cultural de deixar seu espaço,
separar-se dos mortos (o cemitério ficou dentro da Base) usar
crachá para se deslocar num território que sempre foi livre (ver
artigo do relator , anexo, Folha de São Paulo).
No entanto,
encerrada a primeira fase da missão, era necessário realizar a
audiência pública e analisar o material recebido, conferindo com
as denúncias contidas no documento enviado à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos. A terceira etapa da missão
seria a de ouvir as autoridades responsáveis no Ministério da
Aeronáutica e na Agência Espacial e Ministério de Ciências e
Tecnologia, concluída em Brasília na semana posterior.
A AUDIÊNCIA PÚBLICA
Realizada na manhã
do dia 6 de novembro de 2001, no interior da Igreja de São Matias
a audiência pública foi presidida pelo relator e contou também
com a presença da deputada estadual maranhense Helena Helluy,
chegando em seguida o prefeito Malaluel Morais e o presidente da Câmara
de Vereadores, Sr. José Ribamar, ambos do PFL.
O primeiro
depoimento tomado foi o de Inaldo Faustino da Silva Diniz que
pertence a uma das 312 famílias transferidas para as agrovilas,
conjunto de casas com 50m2, destinadas a substituir as residências
desapropriadas. Inaldo Faustino da Silva vem da Agrovila Espera.
Conta que o Centro de Lançamentos, ao ser instalado no princípio
da década de 80, com uma proposta de mudar a vida dos habitantes
tradicionais de Alcântara. Cada comunidade designou uma comissão
de três pessoas para a discussão do processo e Inaldo Faustino
da Silva foi um dos primeiros a ser deslocado.
Como são
descendentes dos quilombolas e ocupam a terra de uma forma
complexa onde se integram as chamadas terras de negro, as terras
da igreja, abandonadas por ordens religiosas, que deram origem as
terras de santo e terras do santíssimo relacionando-se também na
descrição do antropólogo Alfredo Wagner Berno as terras de
caboclo, terras de parente, terras de herança, terras da pobreza
e terra de donos.
A maneira como se
enfrentou essa complexidade foi transferir para esse Território
Étnico uma visão da formação social brasileira, ignorando não
somente as tradições culturais mas também a maneira hábil como
repartiam o uso da terra e das áreas de pesca.
Apesar da Constituição
de 88 ter reconhecido o direito dos territórios remanescentes de
quilombos (fazendas ou mocambos formados por escravos fugitivos ou
libertos, com culturas e dialetos próprios) a disporem de seus
territórios, o processo de instalação do Centro de Lançamentos
de Alcântara, na verdade, está desintegrando essa riqueza
cultural brasileira.
Inaldo Faustino da
Silva afirmou que a terra, a partir da transferência para as
agrovilas não poderia ser explorada livremente. Foi criado um módulo
de 15 hectares - uma redução em relação ao módulo
nacionalmente aceito de 35 hectares - e cada morador da agrovila
teria de tirar o sustento dessa faixa de terra.
A uma pergunta da
procuradora Debora Duprat sobre o cemitério da comunidade, Inaldo
Faustino informou que o cemitério ficou no interior da área
reservada ao Centro da Lançamentos. Perguntado pela deputada
Helena Helluy se os túmulos estavam ainda intactos, ele revelou
que, deixado ao abandono, o cemitério foi de novo envolvido pela
mata.
O depoimento de
Inaldo Faustino Silva Diniz aponta as limitações do sistema de
agrovilas, limitações confirmadas em todos os outros depoimentos
de pessoas deslocadas:
- Falta de liberdade para definir
a exploração de suas terras. Os descendentes de quilombos
estavam acostumados a uma liberdade de escolha na terra,
combinando o uso entre as várias comunidades.
- Falta de liberdade para pescar
como antes. Agora é necessário usar crachá e, às vezes,
interromper o trabalho por mais de uma semana, durante os
preparativos finais para um lançamento. Como os lançamentos
não são feitos com hora marcada mas dependem de circunstâncias
climáticas, há limitações nesse tempo de espera, por
medidas de segurança. Só que, as vezes, esse período pode
durar mais de duas semanas.
- Falta de liberdade para ampliar
as casas, com o crescimento das famílias ou separação do
casal. Os casais que se separam têm de dividir o mesmo teto.
- Falta de financiamento para
impulsionar a autosustentação das agrovilas, onde não há
nenhum tipo de emprego.
Em seguida ao
depoimento de Inaldo Faustino Diniz, foi ouvido um outro
representante de agrovilas, o sr. Melquiades Silva, da agrovila
Prepitau. Ele afirmou que há 18 anos atrás, quando o Centro se
instalou a promessa era a de que iriam trabalhar menos e produzir
mais. Aconteceu o inverso. Ele acentua também que, apesar das
promessas iniciais, a cidade não foi ajudada. Hoje, quando os
filhos chegam ao segundo grau não há mais onde enviá-los,
exceto para a capital.
O depoente afirmou
também que não tem nenhuma hostilidade contra a presença do
Centro de Lançamentos de Alcântara, algo que foi também
lembrado por várias outras testemunhas que não colocam como
objetivo o fechamento do Centro mas, uma forma justa de se
relacionar com a população.
Antes de passar a
ouvir dois outros tipos de comunidades, as ameaçadas de
deslocamento e as ameaçadas de desestruturação, foi dada a
palavra ao prefeito Malaluel Morais que reclamou, inicialmente, não
ter sido convocado para a audiência pública mas se colocou à
disposição para um trabalho conjunto para melhorar a situação
de Alcântara, dizendo-se, em princípio, de acordo com as medidas
sugeridas pelas comunidades.
A próxima depoente
Cecília Rosa Borges vem da comunidade da Prainha, que tem 50 famílias
e está ameaçada de desestruturação.
Ela confessou que,
cada vez que fala do assunto, fica emocionada pois acompanha há
quase 20 anos o sofrimento do povo de Alcântara, sofrimento
classificado pela professora Maristela de Paula Andrade, da
Associação Brasileira de Antropologia, como um lento genocídio.
Segundo ela, era
possível pescar sem pedir crachás e o que havia na natureza era
suficiente para manter uma produção equilibrada de camarões,
sururu e ostras. As mudanças que tiraram o sustento de alguns e
condensaram comunidades que eram separadas acabaram tensionando a
pesca e houve uma queda de produtividade que pode até ameaçar a
sobrevivência de sua comunidade. Prainha foi classificada como
uma das comunidades ameaçadas desestruturação.
A moradora da
Prainha mencionou também o acordo de 1983, no qual o governo
federal se responsabilizava, em documento reconhecido em cartório
e que está anexado a este relatório, todas as reivindicações
importantes da comunidade, da titulação de suas propriedades à
assistência técnica e financeira para projetos autosustentáveis.
Logo em seguida,
foi ouvida Dorinete de Moraes, conhecida como Neta e que
representa a comunidade de Canelatiua, também com 50 famílias.
Ela considera sua comunidade diferente das outras pois possui
documentos atestando que eram "terras da pobreza" doadas
aos seus ocupantes, ao contrário do que afirma a Aeronáutica de
que seriam terras da União.
Canelatiua é
considerada pelas famílias que ali residem, segundo o depoimento,
como uma terra abençoada e que vive o permanente perigo de ser
desocupada pelo Centro, que pretende ocupar uma área equivalente
à metade do território de Alcântara, que tem, no total, 114 mil
hectares.
A origem do povoado
é apontada como uma união de descendentes dos índios e dos
quilombolas. A comunidade se sustenta com dignidade mas teme o
avanço das desapropriações pois sua área foi incluída. Todos
os investimentos em novas plantações foram suspensos pois os próprios
representantes da Aeronáutica disseram para que não construíssem
nada, nem iniciassem novas plantações.
Apesar de não
terem ainda perdido suas terras, as famílias de Canelatiua, que
hoje deixam suas portas abertas e vivem num clima de fraternidade,
temem serem concentradas em agrovilas e não querem que sejam
colocados no mesmo espaço que outras comunidades.
Mais quatro
depoimentos foram tomados, todos reafirmando as denúncias contra
a maneira como suas comunidades étnicas estão sendo
desestruturadas e confirmando também as denúncias enviadas à
OEA.
Para uma rápida
compreensão do problema é interessante examinar o documento de
83, muitas vezes mencionado pelos depoentes. Ele nasceu de um
abaixo assinado da população e grande parte de suas propostas
foi aceita pela Aeronáutica que assumiu um compromisso público,
passado em cartório, de atendê-las.
O que pediam em 83,
não difere muito do que ainda pedem agora.
O texto dizia:
"Para nossa
sobrevivência queremos:
- Como lavradores que somos, terra
boa e suficiente para trabalhar e fora da área do decreto de
desapropriação;
- Praia, pois a grande maioria de
nós tira da pesca parte do sustento da família;
- Ficar junto, por causa dos laços
de parentesco e amizade que nos unem em nossos povoados;
- Água que nunca falte onde agora
estamos;
- lugar para pasto dos animais;
6) Título
definitivo da propriedade desta terra, uma vez aprovado por nós
o local.
O documento
continha mais reivindicações gerais, tais como as que decorrem
da necessidade de assistência médica, de ensino, de assistência
religiosa , luz elétrica, etc.
As visitas feitas
na véspera e o conjunto dos depoimentos apresentados na audiência
pública, indicam que as reivindicações de 83 permanecem atuais
mesmo hoje, sobretudo porque grande parte delas, apesar das
promessas oficiais passadas em cartório, não foi cumprida.
Ao voltar para Brasília
com o material da audiência e o documento enviado à OEA,
apresentei uma primeira denúncia na Comissão de Relações
Exteriores que discute o acordo com os Estados Unidos.
No dia seguinte, o
Comandante da Aeronáutica organizou uma reunião com alguns
oficiais, representantes da Agência Espacial e assistentes jurídicos
do Ministério de Ciência e Tecnologia.
O Comandante da
Aeronáutica demonstrou uma certa surpresa com o nível de denúncias
e a Agência Espacial admitiu que algumas delas eram fundadas e
que já estava em marcha um plano para mitigar o desgaste causado
pela instalação do Centro de Lançamentos em Alcântara.
O plano foi enviado
por este relator para Alcântara onde deve ser examinado pela
população. Ele está disponível no anexo do relatório. No
nosso entender, não cabe à Comissão de Direitos Humanos
criticar o plano num primeiro momento mas sim montar um novo
encontro em forma de audiência pública para que os
representantes comunitários e os membros do Governo Federal
possam se colocar de acordo.
Seria necessário
contar com a presença também do antropólogo Alfredo Wagner
Berno, estudioso do problema e formulador do conceito de Território
Étnico. Apesar dos debates na Comissão de Relações Exteriores
terem se concentrado nas questões ligadas à soberania nacional,
o problema do Centro de Lançamentos de Alcântara cai dentro da
esfera da Comissão de Direitos Humanos.
Esta compreensão não
decorre apenas da denúncia feita à Comissão Interamericana.
Decorre de uma visão moderna de direitos humanos que considera o
direito de reconhecimento de culturas, como as dos remanescentes
de quilombos, como um elemento fundamental de nossos objetivos
estratégicos de construir uma sociedade multicultural.
Além disso, a
combinação de três elementos: culturas tradicionais, uma base
de lançamentos de satélites e ruínas do período colonial,
essas também responsáveis para que Alcântara reclame o título
de patrimônio da humanidade, enfim variáveis que representam um
grande desafio para uma nação moderna.
O trabalho da
Comissão de Direitos Humanos não pode, portanto, se contentar em
buscar um acordo superficial entre as partes. Sua tarefa deverá
ser a de monitorar um projeto para combater a decadência dessas
riquezas nacionais em três níveis:
- Apoiar o conceito de Território
Étnico e buscar de todas as formas valorizar a cultura
tradicional da região;
- Apoiar o Centro de Lançamentos
uma vez que seu sucesso representa uma presença maior do
Brasil no espaço, ampliando nossa possibilidade de produzir
dados e imagens, mercadorias importantes no século XXI;
- Estimular a recuperação das ruínas
através de intervenções não agressivas, utilizando a mão
de obra local para combinar ruínas, flores e plantas nativas;
- Estimular o turismo criando um
grande centro de informações que reuna num mesmo espaço
dados sobre nossa tecnologia espacial, objetos e imagens das
culturas tradicionais da região e reconstituições virtuais
do esplendor colonial de Alcântara.
Seria inadequado
entrar em grandes detalhes sobre esse caminho que proponho à
Comissão de Direitos Humanos. Outras e mais importantes propostas
podem surgir no caminho. O que proponho é que a Comissão de
Direitos Humanos considere a questão como prioritária e dedique,
junto com a bancada negra do Congresso, um projeto de
acompanhamento permanente, que transcenda inclusive os limites da
atual direção da Comissão.
Brasília, de
novembro de 2001.
Deputado Fernando
Gabeira
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