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Tecido Social
Correio Eletrônico da Rede Estadual de Direitos Humanos - RN

N. 031 – 25/03/04

ENTREVISTA

 Dom Jaime Vieira Rocha, Bispo de Caicó

"É preciso ter uma visão ampla dos Direitos Humanos para vencer o preconceito"

Por Antonino Condorelli

Como o Sr. acha que os Direitos Humanos possam chegar ao interior do Estado, aos municípios que são a realidade onde se desenvolve no dia a dia a vida econômica, social, política e cultural das pessoas?

Os Direitos Humanos podem chegar às populações do interior do Estado, aos municípios, através de trabalhos como este que vocês do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular de Natal começaram a fazer, porém, dentro de uma perspectiva que tenha como foco a questão do que significa hoje, para a sociedade brasileira, se falar em Direitos Humanos. Nós tivemos, no passado recente, um período obscuro de negação dos Direitos Humanos que foi o regime de exceção na época da ditadura militar. Então havia um aspecto muito visível desta emergência, desta necessidade de alguém se colocar a serviço da defesa de pessoas que estavam sendo humilhadas, oprimidas. Quando saímos do regime militar, onde a luta pelos Direitos Humanos tinha uma amplitude de ação muito mais visível a nível interno e internacional e um carácter emergencial muito mais elevado, passamos a conhecer uma realidade social totalmente deteriorada: o Brasil se mostra cada vez mais como um país de extrema desigualdade social, de injustiça, de miséria, de fome, até chegar a este descalabro que estamos vivendo hoje em dia, caracterizado pela utilização do narcotráfico como fonte de subsistência para uma grande parte da população, porque a sobrevivência dela não é garantida pelo Estado. Dentro desta realidade humana e social totalmente deteriorada, esgarçada no seu tecido e caracterizada por uma insegurança muito grande por causa da escalada cada vez maior da violência, a causa dos Direitos Humanos passou a ser confundida com proteção a “bandidos” (é fundamental ressaltar as aspas), criminosos, etc. Para nós, este é um desafio muito grande: temos que reverter esta imagem negativa que pesa sobre as iniciativas de proteção aos Direitos Humanos. É importante que este passo que vocês estão dando para “interiorizar” a causa dos Direitos Humanos aconteça dentro de uma visão mais ampla destes direitos, que é justamente o que sua iniciativa está querendo passar. Escutando os noticiários da manhã, a participação dos populares no programa Rádio Comunidade, cheguei à conclusão que uma equipe de Direitos Humanos no município vai ter que se preocupar, por exemplo, com a emergência da falta d’água: como a empresa que se encarrega de distribuir a água para a cidade e o saneamento tem que agir para garantir a todos este direito básico que é receber nas próprias casas água tratada. Acontece uma emergência por causa das chuvas e das enchentes e as famílias, em bairros inteiros, passam 10-12 dias sem água potável. Ai está um direito humano negado e precisando ser garantido. Quando alguns municípios ficam inadimplentes perante o Governo Federal nos programas sociais (bolsa-renda, bolsa-escola, Fome Zero, etc.) milhares de pessoas - especialmente, jovens e crianças - são privados de recursos que são indispensáveis para a sua subsistência e que, mesmo estando lá alocados, não chegam porque o município não é capaz de utilizá-los. Esta é uma agressão e um desrespeito aos Direitos Humanos. Portanto, temos que sair urgentemente desta imagem tão restrita de Direitos Humanos como um valor que se aplica exclusivamente dentro dos presídios. Embora isso também seja importante porque, quando vemos o rosto do Brasil espelhado na situação gravíssima do sistema penitenciário, é de fazer dó e piedade: através de seu sistema carcerário, nosso país transmite uma imagem tão deplorável de desumanidade, de atraso, de barbárie, de falta de cidadania e respeito à pessoa que nos entristece profundamente. De todas as maneiras, acho que este processo de interiorização da ação dos Direitos Humanos tem que passar por esta visão muito mais abrangente de direitos intrínsecos e inalienáveis do ser humano em todas as esferas de sua existência. Qualquer negação da dignidade da pessoa humana - seja ela econômica, social, cultural, ambiental ou física - é uma violação dos Direitos Humanos.

O que foi que impulsionou a criação do Plano de Desenvolvimento Sustentável da região do Seridó?

O Plano de Desenvolvimento Sustentável do Seridó se constituiu como resultado de um despertar de toda a região para a sua realidade social, econômica e política. Nós temos uma região diferente do resto do Estado, com uma cultura própria. Existem umas teorias, ainda não comprovadas cientificamente, segundo as quais a colonização, aqui, teria começado a partir de uma presença judaica. De todas as maneiras, nosso povo tem características específicas que o definem e diferenciam: é um povo acostumado a trabalhar mesmo sem ter maiores fontes de sustento naturais ou empresariais, um povo que tem coragem, é inteligente, que faz e não espera que cheguem soluções de fora. O Seridó, no passado, já teve um período áureo de autonomia econômica e política. Os estudiosos da história do Rio Grande do Norte dizem até que o Seridó “fez” o Estado através da influência de tantos políticos de carácter nacional e estadual. O período áureo coincidiu com a produção em alta escala do algodão, a exploração mineira de carácter industrial e uma pecuária muito forte. Mas quando estes indicadores econômicos ficaram em baixa devido às crises, o Seridó passou a ser uma das poucas regiões do Estado desprovidas de um projeto de Governo. Basta dizer que, de cada dez pares de sapatos que são consumidos no Rio Grande do Norte, sete são na Grande Natal e apenas três no resto do Estado. Há um empobrecimento muito grande das áreas rurais e interioranas. Diante deste colapso e esta falta de perspectivas, na Diocese de Caicó começamos a chamar às pessoas para um debate sobre os problemas vitais da região. Desde 1998, se criou um Fórum de Debate sobre o Seridó, trouxemos pessoas de outras regiões para falar sobre fé e política, sobre a transposição do Rio São Francisco e uma série de outros assuntos importantes, e isso suscitou dentro da sociedade um clima de discussão, de efervescência, de intercambio de idéias, etc., que envolveu também as lideranças políticas e empresariais do Estado e o próprio Governo. Todas estas convergências contribuiram para que houvesse no Seridó um momento propício para a elaboração de um Plano de Desenvolvimento Sustentável. Este foi elaborado com a participação de toda a sociedade civil organizada. O que tem de mais essencial e exportável para o resto do Brasil e o mundo são a sua característica pedagógica e o fato de ter sido elaborado a partir das bases, em reuniões em todos os níveis nos municípios e nas comunidades, formando grupos de pessoas para debates e criando-se grupos temáticos para as diversas dimensões que compõem o Plano: ambiental, político-institucional, cultural, econômica e tecnológica. Tudo isso gerou um Plano muito abrangente, muito bem organizado e que hoje está servindo como indicador para as ações do Governo nesta região.

Quais são, na sua visão, as principais violações dos Direitos Humanos em Caicó e no Seridó?

As coisas nos últimos anos melhoraram bastante. Os poderes públicos e privados e a população em geral estão começando a perceber que ninguém é dono de ninguém, e todos estamos sob o monitoramento da sociedade civil organizada. Se está espalhando cada vez mais a consciência de que os direitos de cada individuo têm que ser respeitados. Sem querer restringir a visão dos Direitos Humanos às penitenciárias, como já falei, nós notamos essa mudança de percepção nos próprios presidiários, que estão cada vez mais conscientes dos seus direitos. Tanto assim que, quando mandam cartas para mim pedindo alguma intervenção ou ajuda, se referem com muita propriedade aos preceitos jurídicos, é possível perceber que muitos deles já estão cientes de quais são e em que leis e princípios estão fundamentados seus direitos. Muitos deles estão começando a ter acesso à Constituição, o que não acontecia antes. Eu acho que os maiores problemas, hoje, são a concepção fechada, atrasada e restritiva que a sociedade tem do que são os Direitos Humanos e a mentalidade repressiva que ainda se tem com relação às questões sociais. Por exemplo, quando a polícia prende um jovem embriagado em uma festa ou um pobre desvalido que vive na rua e não tem nenhuma referência, estes sujeitos além da prisão sofrem espancamentos, e muitas vezes os agentes pisam nos seus dedos com a única intenção de provocar dor e dano físico. Isso mostra uma mentalidade de utilização da força como instrumento não para coibir as infrações jurídicas e sociais dos individuos, mas para estabelecer uma hierarquia social em que se define quem pode esmagar e quem pode ser pisado. Também existe ainda na sociedade seridoense uma mentalidade que atribui a qualquer pessoa que está na cadeia o rótulo de “bandido”, que eu nunca uso e nem gosto de usar, até porque tantas vezes vemos fora da cadeia, em altos escalões da sociedade, bandidos muito mais perigosos do que os pobres e desesperados que estão nos presídios, e estas pessoas se colocam como referência social para tudo o que é justo, legítimo e ético. Dentro do projeto de evangelização da Igreja Católica do Brasil, esse é o Ano da Pessoa Humana, do resgate da dignidade humana: nós queremos que todas as pessoas se sintam gente. Quando uma mãe de família vai visitar no presídio seu filho que está preso, ela não vai visitar um bandido, ela vai visitar o seu filho. É importante que se tenha uma visão ampla da realidade e uma consciência social muito aguçada para perceber que as infrações das leis e dos direitos muitas vezes passam por uma degradação global da sociedade brasileira pela qual todos nós somos responsáveis e todos temos que fazer nossa parte para construir um Brasil mais justo do ponto de vista do emprego, da distribuição de renda, da moradia, da saúde, da educação, emfim, dos Direitos Humanos. Para quem não tem tudo isso, a vida muitas vezes perde qualquer sentido e essa pessoa cai na marginalidade e no crime: a vulgarização do sentido da vida é o mal principal da nossa sociedade, contra o qual todo nós temos que lutar.

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