Fórum
Social Mundial: origens e objetivos
* Francisco Whitaker
No início de 1998 veio a
público a proposta de um Acordo Multilateral de Investimentos –
mais conhecido como AMI ou, em inglês, como MAI - que seria
assinado pelos países mais ricos do mundo, para depois ser
“proposto” – na prática, imposto - aos demais países do
mundo. Esse Acordo vinha sendo discutido em segredo no quadro da
OCDE, com a pretensão de passar a ser uma espécie de Constituição
mundial do capital, que lhe daria todos os direitos –
especialmente no Terceiro Mundo, onde seriam feitos os
“investimentos” - e quase nenhum dever. O jornal francês Le
Monde Diplomatique repercutiu então amplamente uma primeira denúncia
feita nos Estados Unidos pelo movimento “Public Citizens”,
liderado por Ralph Nader, através de um artigo assinado por uma
advogada desse movimento, Lori Wallach. A reação aos absurdos
que esse Acordo continha fez surgir um movimento social de
protesto que, no final de 1998, levou a França a se retirar das
negociações, o que acabou por impedir que o Acordo fosse
celebrado.
Uma das entidades animadoras
dessa mobilização foi a ATTAC - inicialmente Associação pela
Taxa Tobin de Ajuda aos Cidadãos, atualmente Associação pela
Taxação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos -
que começava naquele momento a tomar forma na França, também a
partir de uma proposta nesse sentido feita pelo mesmo Le Monde
Diplomatique. O objetivo dessa associação - que hoje reúne duas
dezenas de milhares de aderentes pela França afora, e fez
nascerem outras ATTACs no resto do mundo, inclusive no Brasil -
era lutar pela concretização da proposta de taxação dos
movimentos do capital especulativo feita pelo Prêmio Nobel de
Economia James Tobin, como forma de controlar sua atual liberdade
absoluta de circulação em escala mundial, com as conseqüências
que conhecemos.
A
partir das articulações que esses fatos ajudaram a fazer surgir
por toda parte, entre aqueles que não aceitavam a possibilidade
de um mundo inteiramente controlado pelos interesses do capital,
foram sendo organizadas diferentes manifestações contrárias a
esse tipo de globalização. As que ficaram mais famosas, pelas
repercussões que tiveram na mídia, foram a de Seattle, contra a
OMC, a de Washington contra o FMI e o Banco Mundial, e mais
recentemente a de Praga, que levou os representantes de governos
ali reunidos a encerrarem seu encontro um dia antes do previsto.
Ora, há uns bons vinte anos os
donos do mundo vinham se encontrando num Fórum a que deram o nome
de Fórum Econômico Mundial, que se realizava em Davos, pequena e
luxuosa estação de ski da Suissa. Organizado por uma entidade
que hoje é uma grande empresa, ele atualmente reúne, uma vez por
ano – além dos encontros regionais que começou também a
promover - quem pode pagar 20.000 dólares para ouvir as grandes
cabeças pensantes a serviço do capital e com elas conversar,
assim como ouvir até mesmo críticos à globalização em curso,
convidados a participar para legitimar o Fórum. Pode-se dizer que
é em Davos – que atrai correspondentes de todos os grandes
jornais do mundo, entre os quais, sistematicamente, nosso amigo
Clovis Rossi – que se constrói a teoria e vai se avançando na
prática da dominação do mundo pelo capital, dentro dos parâmetros
do néo-liberalismo.
Pois foi frente a tudo isso que
estava acontecendo que alguns brasileiros pensaram que se poderia
iniciar uma nova etapa de resistência a esse pensamento hoje
hegemônico no mundo. Mais além das manifestações de massa e
protestos, pareceria possível passar-se a uma etapa propositiva,
de busca concreta de respostas aos desafios de construção de
“um outro mundo”, em que a economia estivesse a serviço do
ser humano e não o inverso. Economistas e outros universitários
contrários ao neo-liberalismo já vinham realizando, na Europa,
encontros que chamavam de Anti-Davos. O que se pretendia no
entanto era mais do que isso. Propunha-se realizar um outro
encontro, de dimensão mundial e com a participação de todas as
organizações que vinham se articulando nos protestos de massa,
voltado para o social – o Fórum Social Mundial. Esse encontro
teria lugar, para se dar uma dimensão simbólica ao início dessa
nova etapa, nos mesmos dias do encontro de Davos em 2001, podendo
a partir daí se repetir todos os anos, sempre nos mesmos dias em
que os grandes do mundo se encontrassem em Davos.
Mais exatamente quem teve essa
notável idéia – não sei se a teria discutido anteriormente
com outras pessoas – foi nosso amigo Oded Grajew, que a colocou
para mim quando nos encontramos na França, em fevereiro deste
ano. Resolvemos levá-la juntos ao diretor do Le Monde
Diplomatique, que é também o Presidente da ATTAC na França,
Bernard Cassen, para vermos se a idéia seria bem aceita fora do
Brasil.
Cassen se entusiasmou e fez a
proposta de realizarmos o Fórum no Brasil. Para ele, teria que
ser no Terceiro Mundo – pelo seu efeito também simbólico – e
o Brasil estava entre os países com melhores condições de
acolher um Fórum desse tipo. Foi dele também a proposta de sediá-lo
em Porto Alegre, capital de um Estado que vem se tornando cada vez
mais conhecido em todo o mundo pelas suas experiências democráticas
e de luta contra o néo-liberalismo. Cassen nos lançou então de
volta o desafio: se fôssemos capazes de organizar o Fórum, teríamos
não somente o apoio de seu jornal como certamente o das organizações
que pelo mundo afora vem se manifestando contra o domínio do
capital.
De
volta ao Brasil começamos a verificar quais entidades se
dispunham a aceitar esse desafio e assumir essa enorme tarefa. Em
28 de fevereiro se reuniam em São Paulo representantes das 8
entidades que hoje já tem firmado um “Acordo de cooperação”
para a realização do Fórum Social Mundial, cuja primeira edição
será realizada em Porto Alegre de 25 a 30 de janeiro de 2001:
ABONG - Associação Brasileira de Organizações Não
Governamentais; ATTAC - Ação pela Tributação das Transações
financeiras em Apoio aos Cidadãos; CBJP - Comissão Brasileira
Justiça e Paz, da CNBB; CIVES - Associação Brasileira de Empresários
pela Cidadania; CUT -
Central Única dos Trabalhadores; IBASE - Instituto Brasileiro de
Análises Sócio Econômicas; CJG - Centro de Justiça Global; MST
- Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
Em março uma comitiva dessas
entidades viajou a Porto Alegre, para consultar Olívio Dutra e
Raul Pont sobre a disposição dos governos do Estado e do Município
de acolher o Fórum, a partir do princípio de que quem o
promoveria não seriam esses governos mas as entidades da
sociedade civil que assumiram a proposta. Com a resposta positiva
do Governador e do Prefeito, passou-se a trabalhar com a maior
rapidez possível para organizar e viabilizar efetivamente esse
novo encontro mundial, convidando inclusive outras organizações
da sociedade civil a constituírem um Comitê Brasileiro de Apoio
ao Fórum.
Por sugestão de Cassen, em fins
de Junho uma comitiva das entidades viajou a Genebra, onde
estariam reunidas, numa “cúpula” alternativa à Cúpula
Social da ONU “Copenhagen + 5”, grande parte das organizações
que estavam se articulando pelo mundo afora nas manifestações
contra o neo-liberalismo. Abriu-se espaço para apresentarmos
nossa proposta, que foi muito bem aceita – o vice-governador do
Rio Grande do Sul, Miguel Rossetto, viajou igualmente a Genebra
para confirmar o acolhimento que o Rio Grande do Sul daria ao Fórum
– e já se constituiu, nessa ocasião, um Comitê Internacional
de Apoio ao Fórum.
De lá para cá estamos numa
corrida contra o tempo, para asseguramos a presença de
participantes de todo o mundo, com quotas fixadas para cada
continente e tipo de atuação. A programação definida prevê
dois tipos de dinâmica: painéis pela manhã – quatro
concomitantes durante quatro dias, cada um com quatro painelistas
e um Presidente, escolhidos entre grandes nomes da luta contra o
pensamento único; e oficinas à tarde, organizadas pelos próprios
participantes, na primeira parte das tardes para trocas de experiências
e debates, a segunda parte das tardes para reuniões de articulação.
Estão previstas também sessões para testemunhos de
personalidades engajadas em diferentes tipos de luta, e um grande
programa paralelo na cidade de Porto Alegre, para todos aqueles
que não puderem participar diretamente do Fórum, aberto somente
a pessoas designadas e inscritas por organizações sociais.
O Fórum não tem caráter
deliberativo, e não se gastará tempo, portanto, para discutir as
vírgulas de um documento final. Ele será o início de um
processo de reflexão conjunta, a nível mundial, em torno dos
quatro eixos abordados nos painéis das manhãs: a produção de
riquezas e a reprodução social; o acesso às riquezas e a
sustentabilidade; a afirmação da sociedade civil e dos espaços
públicos; o poder político e a ética na nova sociedade. Para
cada um desses eixos foram formuladas perguntas para as quais
temos que conseguir respostas e, para cada uma das perguntas, uma
série de temas que tem que ser considerados.
O
que se pretende é abrir espaço – a cada ano um novo
aprofundamento - numa reflexão também “globalizada”, para a
busca de alternativas ao modelo que está aí nos dominando. Na
verdade o I Fórum Social Mundial será um primeiro passo, mas um
passo inteiramente novo, que está ganhando uma repercussão
crescente em todo o mundo. Esperamos que essa repercussão
assegure efetivamente o início de uma nova etapa na luta contra a
submissão do ser humano aos interesses do capital.
* artigo publicado no “Correio
da Cidadania”, edição 222/01/2000
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