Roteiro
de uma Morte Anunciada
O
assassinato do estudante José Carlos Novaes da Mata Machado
No
DOI/CODI do Recife, em 28/10/1973
EX-COLABORADOR
DO EXÉRCITO ABRE O JOGO
No
dia 17 de dezembro de 1992, o ex-militante da Ação Popular, Gilberto Prata
Soares, deu um depoimento de 2h30 a comissão externa dos desaparecidos políticos
da Câmara dos Deputados, em Brasília. Entre esquecimentos e recordações,
algumas trocas de datas e lugares. Gilberto relatou publicamente sua atividade
como colaborador do Exército. entre 1973 e 1982.
Uma
das pessoas mais aliviadas com o depoimento de Gilberto foi sua irmã, Maria
Madalena Prata Soares. Renegada por vários companheiros de luta, sobre ela
cala o peso de ter entregue o próprio marido, José Carlos Novaes da Mata
Machado, com quem havia casado, em 1970. Mata Machado era um dos lideres da Ação
Popular, e foi preso em 19 de outubro de 1973. Oito dias depois, era morto sob
torturas no DOI/CODI do Recife.
Rapidamente
o depoimento de Gilberto Prata se espalhou entre familiares de desaparecidos,
ex-presos políticos e vítimas da repressão militar que se instalou no
Brasil após o Golpe de 1964. “Mais um cachorro abriu o jogo’. comentam
entre si essas pessoas - uma gente que procura fragmentos para reconstituir a
memória dos parentes, amigos, entender seus próprios passos.
Roteiro
da Morte – O último dia em que esteve com o marido, Madalena Prata recorda
bem - 8 de outubro de 1973. Estavam em Salvador. Mata Machado iria para o Rio
de Janeiro, e os dois se encontrariam alguns dias depois, numa pequena
fazenda, perto de Belo Horizonte Entre os planos, esperar algum tempo, depois
fugir temporariamente do Pais.
Tudo
poderia dar certo 0 pai de Mata Machado, Edgar de Godói da Mata Machado,
deputado federal cassado em 1968. tinha providenciado a estrutura necessária.
“O Mata Machado era uma espécie de embaixador da AP. Tinha uma facilidade
muito grande de sair do Brasil, já tinha feito várias viagens para o
Exterior”, lembra Madalena.
Mas
nada deu certo. Desde março de 1973, Gilberto Prata estava colaborando com o
Centro de Informações do Exército (CIEX) Os passos de Mata Machado eram
acompanhados. Os dias estavam contados. No dia 19 de outubro, na rodovia São
Paulo/Belo Horizonte. acompanhado por dois advogados e dois cunhados, o
militante da AP foi preso.
Como
haviam acertado, Madalena Prata foi para a fazenda. No dia 23, ela e presa e
levada para Belo Horizonte. Em 1 de novembro de 1973, quando vários jornais
do País divulgavam a morte de José Carlos da
Mata Machado num tiroteio ocorrido na avenida Caxangá, ela era
transferida para São Paulo. “Durante 15 dias, me interrogavam para saber
onde estava meu marido. Fiquei aliviada, pois achei que ele tinha fugido”,
conta Madalena. O filho do casal, Dorival Soares da Mata Machado, que estava
com um ano e oito meses, fica sob a guarda dos avós.
Irmão
delator - O depoimento de Gilberto Prata deixou Madalena chocada. “Ele tinha
me gravado uma fita. em 1983. contando a colaboração com o Exército, mas
explicava que tinha sido por causa das torturas. Na verdade, ele nunca foi
torturado. Era um dos irmãos que eu mais gostava, mas foi capaz de conversar
confidências comigo usando um microfone escondido”, diz Madalena.
Ela
nunca poderia imaginar que o irmão havia passado para o lado da repressão.
Gilberto Prata sempre havia tido ligações com as pessoas de esquerda. Após
o Golpe de 1964, o pai, irmão e alguns tios haviam sido presos. Em 1969,
alcançou a pequena glória dos políticos iniciantes - foi eleito presidente
do DCE da Universidade Federal de Goiás. No ano seguinte, ele casa e vai
morar em São Paulo, mas não se adapta e volta para Goiânia. E na casa de
Gilberto, em São Paulo, que Madalena e José Carlos da Mata Machado se
casaram, em 1970.
“De
1971 até 1973, eu estava praticamente afastado da participação política.
Trabalhava na Eternit e acompanhava as coisas, mas não me envolvia
diretamente”, relata Gilberto. Em fevereiro de 1973, quando voltava de férias,
ele foi preso Depois de 45 dias sendo interrogado, sem qualquer tipo de
tortura física, é levado para Brasília. Lá, um oficial, identificado como
“Dr. César”, faz a proposta.
“Queremos
sua irmã e o José Carlos da Mata Machado. Isso é o que interessa. Você é
o chamado ‘Bunda de Pinguim’, porque se afastou e deixou o rabo de fora,
mas nós queremos isso aí”. A resposta de Gilberto Prata foi a sentença de
morte para Mata Machado. Ele concordou.
A
Caçada - Para localizar a cunhado, Gilberto procurou Edgar da Mata Machado,
em Belo Horizonte. ‘Eu disse que era irmão da Madalena, queria referência,
precisava encontrá-la”. Com a ajuda de Edgar, Gilberto localiza Madalena.
Os dois se encontram em São Paulo, em abril de 1973. “Conversamos na ma
mesmo. Eu falei. estou voltando, estou querendo me integrar novamente. Era
toda uma história montada”, completa Gilberto.
Totalmente
harmônico com o CIEX, Gilberto espera o contato de José Carlos. Com as
despesas pagas, fica hospedado na rua Independência, 54, em Salvador. Entre o
final de junho e o início de julho daquele ano. Madalena vai ao seu encontro,
acompanhada do marido.
A
missão poderia ter sido encerrada ali, mas o CIEX preferiu seguir os passos
de Mata Machado – integrante da direção nacional da AP – e, num
“efeito-dominó”, sair prendendo outros militantes. Gilberto, a irmã e o
cunhado saíram algumas vezes, em Salvador. “Ele me explicou como a situação
no Recife estava difícil”, recorda Gilberto. Depois de alguns dias, o casal
parte, marcando um encontro para agosto, na capital pernambucana.
Conforme
o combinado, Gilberto vai ao Recife Reencontra Mata Machado, com quem troca idéias.
“Como a barra estava pesando, ele disse que tinha que se mandar Passei a
acompanhar minha irmã, mas a essa altura. já estava caindo tudo”, relata
Prata.
Último
encontro – Mata Machado vai para Salvador Gilberto e sua irmã fazem o
mesmo, entre o final de setembro e o inicio de outubro. A caminhada de Mata
Machado vai chegando ao fim. Dia 8 de outubro, se despede de Madalena e do
filho Dorival Soares da Mata Machado, que tinha um ano e oito meses.
Sempre
com as despesas pagas pelo CIEX, Gilberto vai para o Rio de Janeiro, onde
encontra Mata Machado pela última vez. “Foi no escritório do advogado
Joaquim Martins. Ele estava indo embora. Trocamos de blusa, porque ele sabia
que estava sendo seguido”. Poucos dias depois, a missão estava cumprida.
Mata Machado estava nas garras da repressão.
Madalena
Prata conheceu José Carlos da Mata Machado em 1969 Em julho daquele ano, ela
teve o primeiro filho, Eduardo Soares da Silva, e estava de resguardo. quando
Mata Machado chega ao hospital. Ambos já militavam na Ação Popular. “Ele
foi sozinho, conversamos. Pouco tempo depois, começamos a namorar. Casamos em
1970, na casa do Gilberto”, diz Madalena, que utilizava os nomes Maria
Auxiliadora, Maria Elizabete Paiva, Joana, Mara e Maíra, todos falsos.
Em
tempos de repressão, os dois se casaram sem saber detalhes da vida um do
outro. “Ele não sabia meu nome, só o de militante. Suas viagens para o
exterior, também, só vim saber muito tempo depois”, conta Madalena Em 19
de fevereiro de 1972, ela estava em Goiânia, num sítio que pertencia ao
Gilberto Prata, quando nasceu Dorival Soares da Mata Machado, filho da nova
união de Madalena.
Quando
foi presa, em Minas Gerais, Madalena estava com 26 anos, e grávida do segundo
filho de Mata Machado Em depoimento realizado em 1974, Madalena denunciou que
havia abortado na OBAN, mas não recordava o dia. Na prisão, ela chegou a
receber 40 ml de tranquilizantes por dia, para dormir. Os dois filhos foram
criados pelos pais de Mata Machado. Eduardo Soares mora em Campinas, e estuda
Filosofia. Dorival e estudante de Economia e mora em Belo Horizonte.
O
que teria levado Gilberto Prata a aceitar uma colaboração tão forte com a
repressão militar? Afinal, sua família tinha urna tradição política de
lutas, a irmã estava na clandestinidade e o próprio Gilberto havia sido
presidente de um DCE. No seu depoimento à comissão parlamentar dos mortos e
desaparecidos, Prata admite duas possibilidades – medo ou covardia.
“Colocaria
aqui a questão em cima de medo, e, se quiserem, de covardia, esta tudo
bem”, afirmou Gilberto, em 17 de dezembro de 1992. As duas coisas se entrelaçam.
Desde o inicio da operação para localizar o Mata Machado, Prata sabia que o
cunhado seria morto. “Uma época minha irmã chegou a levantar suspeitas
quanto a mim. Eu a tranquilizei. Vivia sob medo, não tive coragem para contar
tudo”, diz ele.
Hoje.
Gilberto Prata faz um balanço. “Tenho 20 anos de arrependimentos diários
em que, pelo menos uma vez por dia, vejo o José Carlos da Mata Machado e o
Gildo Macedo Lacerda. As vezes, esta imagem aparece três, quatro vezes no
mesmo dia”. Consumidor de Diempax para dormir, Gilberto tentou o suicídio
em 1988, mas não levou ate o fim.
Logo
depois que tudo terminou, eu já sabia que tinha feito uma tremenda besteira.
Eu olhava para as pessoas e me perguntava - o que eles vão achar, quando
souberem?”. Ao ser perguntado sobre o que sentiu ao saber da morte do
cunhado, Gilberto fez um longo silêncio, depois falou: “Seria preferível
eu ter morrido. Mas foi o que aconteceu”.
Gilberto
Prata Soares deu dois depoimentos públicos Veja os principais trechos de suas
confissões:
“Eles
queriam o José Carlos. 0 contrato era esse, mas depois se tornou maior”.
“A
forma de contato seria procurar o pai do José Carlos, Doutor Edgar, que
possivelmente teria informações para nos dar”
‘Colocaria
aqui a questão em cima de medo, e, se quiserem, de covardia. Está tudo
bem”.
‘Ainda
em São Paulo, foi considerado naquela época que tinham conseguido
desmantelar a AP. Eles tinham corrido todo o circuito, e segundo o comentário,
pegaram as principais cabeças”.
“Saiu
nos jornais que o José Carlos e o Gildo Lacerda tinham se matado num tiroteio
no Recife, numa cobertura de ponto. Isso destoava completamente do que eu
realmente sabia que tinha acontecido”.
“Quando
o José Carlos estava saindo para a fuga, estive no escritório e conversei
com o pessoal, lá onde ele estava. Sai antes dele. Toda a equipe do Fleury
estava esperando”.
“Eu
estava num quarto de pensão, quando o Onofre (do Exército) chegou e falou:
Olha, teu cunhado já era “.
“Tem
muita coisa ainda a ser contada. O que eu sei é muito pouco”.
A
Ação Popular surgiu entre maio de junho de 1962, com uma estreita ligação
com a Igreja. Grupos da Juventude Operária Católica (JOC), Juventude Agrária
(JAC) e Juventude Estudantil (JEC), Juventude Universitária (JUC) e Juventude
Independente (JIC) germinaram muitos militantes. “De 1958 a 1962, minha
presença na JUC foi marcada por uma ativa participação no movimento
estudantil, que tinha uma força relativa na política nacional”, diz o sociólogo
Herbert José de Souza, o Betinho, um dos fundadores da AP.
Logo
na sua fundação, em meados de 1963, a AP já tinha um canal para chegar ao
camponeses - o Movimento de Educação de Base (MEB), que realizava programas
radiofônicos de educação de adultos, sob orientação da Igreja. Dois anos
depois, a AP já havia se direcionado ao pensamento marxista. A luta armada
passa a ser “o caminho necessário para a revolução brasileira”.
Entre
1966 e 1967, 05 dirigentes que haviam viajado a China Popular conquistam a
hegemonia na AP – que já assimilou as idéias de Mao-Tsé Tung e se tornou
um partido tipicamente maoista. A aproximação com o Partido Comunista do
Brasil (PC do B) e gradual, e na Terceira Reunião Ampliada da Direção
Nacional (RADN), em 1971, há a fusão. O nome oficial se torna Ação Popular
Marxista Leninista do Brasil (APML do B). Em 1973, a organização foi quase
inteiramente desestruturada, com a prisão e morte de vários dos seus
dirigentes.
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