Violência
Policial: uma ameaça à democracia
A violência policial
é um fato – basta lembrar Carandiru, Candelária, Eldorado dos Carajás
– não um caso isolado ou um “excesso” do exercício da profissão
como querem fazer crer as corporações policiais e as autoridades ligadas
ao sistema de justiça e segurança. E, em se tratando de um fato
concreto, deve ser encarada como um grave problema a ser solucionado pela
sociedade. Um grave problema porque a violência ilegítima praticada por
agentes do Estado, que detêm o monopólio do uso da força, ameaça
substancialmente as estruturas democráticas necessárias ao Estado de
Direito.
A
polícia representa o aparelho repressivo do Estado que tem sua atuação
pautada no uso da violência legítima. É essa a característica
principal que distingue o policial do marginal. Mas essa violência legítima
está ancorada no modelo de “ordem sob a lei”, ou seja, a polícia tem
a função de manter a ordem, prevenindo e reprimindo crimes, mas tem que
atuar sob a lei, dentro dos padrões de respeito aos direitos fundamentais
do cidadão – como direito à vida e à integridade física.
A
ausência de respeito ao modelo de “ordem sob a lei” tem se perpetuado
dentro da estrutura policial brasileira por razões diversas – como a
falência dos modelos policiais, o descrédito nas instituições do
sistema de justiça e segurança, a impunidade – mas principalmente por
uma certa tolerância da própria sociedade com esse tipo de prática.
Analisando o problema do ponto de vista sócio-político veremos que a
violência policial tem raízes culturais muito antigas (desde a implantação
do regime colonial e da ordem escravocrata), e que estas têm uma relação
diretamente proporcional à ineficiência do Estado de punir, na maioria
dos casos, as práticas criminosas dos agentes de segurança.
É
difícil admitir, mas existe uma demanda dentro da sociedade para a prática
da violência policial. É esta violência que serve à sociedade dentro
de diversos aspectos e circunstâncias, mas especialmente no tocante à
solução dos crimes contra o patrimônio e na repressão às classes
perigosas. Por isso mesmo, a dificuldade do Estado no âmbito da segurança
pública, no final do século XX, continua sendo o controle da violência
legítima, do qual decorreria consequentemente a extinção do uso ilegítimo
da força por parte dos organismos policiais.
A
questão da democracia é, então, um ponto de extrema importância nesse
debate. Isso porque a violência policial inevitavelmente gera as mais
graves violações aos direitos humanos e à cidadania, que são elementos
inerentes ao regime democrático. Alguns estudos, sobre a mesma temática
da violência policial e do autoritarismo, desenvolvidos pelo cientista
político Paulo Sérgio Pinheiro, da Universidade de São Paulo,
demonstram que as práticas policiais de natureza autoritária são práticas
que têm acontecido independente do regime político. Isso se deve,
segundo a análise de Pinheiro, a uma continuidade de práticas utilizadas
no regime autoritário que a transição política não conseguiu
extinguir, pelo fato dos governos de transição terem tratado os
aparelhos policiais como organismos neutros nos quais a democracia política
atacaria suas raízes autoritárias. Esta continuidade, entretanto,
possibilitou a adequação de práticas autoritárias dentro de um governo
democrático, gerando com isso a existência de um “regime de exceção
paralelo”.
Para
tentar se encontrar um caminho que ajuste os órgãos de segurança à
realidade democrática, é importante, antes de tudo, que a sociedade
descubra que tipo de polícia ela quer: uma polícia que respeite os
direitos do cidadão, que exista para dar segurança e não para praticar
a violência; ou uma polícia corrupta (que livra de flagrantes os filhos
das classes abastadas) e arbitrária (que utiliza a tortura e o extermínio
como métodos preferenciais de trabalho e que atingem na sua maioria as
classes populares). Dentro disto, é preciso pensar nas formas de
restringir as oportunidades da polícia utilizar a violência ilegítima,
seja através do rígido controle de armamentos ou do limite do
reconhecimento da legitimidade do uso da força a situações
particulares. Finalmente, o que não se deve perder de vista dentro desta
discussão é o risco que a tolerância à violência policial acarreta
para a democracia. Sem uma polícia condizente com práticas democráticas
e de respeito aos direitos fundamentais do cidadão vai existir sempre a
ameaça de que o “regime de exceção paralelo” transforme-se num
regime institucional.
Celma Tavares
Jornalista
mestrada em Ciências Políticas na UFPE
e
membro do Grupo Tortura Nunca Mais
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