O
Fim das Descobertas Imperiais
Boaventura
de Sousa Santos*
As
Descobertas dos Lugares
Apesar
de ser verdade que não há descoberta sem descobridores e
descobertos, o que há de mais intrigante na descoberta é que em
abstracto não é possível saber quem é quem.
Ou seja, o acto da descoberta é necessariamente recíproco:
quem descobre é também descoberto, e vice-versa.
Porque é então tão fácil, em concreto, saber quem é
descobridor e quem é descoberto?
Porque sendo a descoberta uma relação de poder e de
saber, é descobridor quem tem mais poder e mais saber e, com
isso, a capacidade para declarar o outro como descoberto.
É a desigualdade de poder e de saber que transforma a
reciprocidade da descoberta na apropriação do descoberto.
Toda a descoberta tem, assim, algo de imperial, uma acção
de controlo e de submissão.
Este milénio, mais do que qualquer dos que o precedeu, foi
o milénio das descoberta imperiais. Foram muitos os descobridores, mas o mais importante foi, sem
dúvida, o Ocidente, nas suas múltiplas incarnações. O Outro do Ocidente, o descoberto, assumiu três formas
principais: o Oriente, o selvagem e a natureza.
Antes
de nos referirmos a cada uma das descobertas imperiais e às suas
vicissitudes até ao presente, é importante ter em mente as
características principais da descoberta imperial.
A descoberta imperial é constituída por duas dimensões:
uma, empírica, o acto de descobrir, e outra, conceptual, a ideia
do que se descobre. Ao contrário do que pode parecer, a dimensão conceptual
precede a empírica: a ideia que se tem do que se descobre comanda
o acto da descoberta e o que se lhe segue.
O que há de específico na dimensão conceptual da
descoberta imperial é a ideia da inferioridade do outro.
A descoberta não se limita a assentar nessa inferioridade,
legitima-a e
aprofunda-a. O que é descoberto está longe, abaixo e nas margens, e essa
"localização" é a chave para justificar as relações
entre o descobridor e o descoberto após a descoberta.
A
produção da inferioridade é, assim, crucial para sustentar a
descoberta imperial. Para
isso, é necessário recorrer a múltiplas estratégias de
inferiorização. Neste domínio pode dizer-se que não tem faltado imaginação
ao Ocidente. Entre
tais estratégias podemos mencionar a guerra, a escravatura, o
genocídio, o racismo, a desqualificação, a transformação do
outro em objecto ou recurso natural e uma vasta sucessão de
mecanismos de imposição económica (tributação, colonialismo,
neocolonialismo, e, por último, globalização neoliberal), de
imposição política (cruzadas, império, estado colonial,
ditadura e, por último, democracia) e de imposição cultural (epistemicídio,
missionação, assimilacionismo e, por último, indústrias
culturais e cultura de massas).
O
Oriente
Do
ponto de vista do Ocidente, o Oriente é a descoberta primordial
do segundo milénio. O
Ocidente não existe fora do contraste com o não-Ocidente.
O Oriente é o primeiro espelho da diferença neste milénio. É o lugar cuja descoberta descobre o lugar do Ocidente: o
centro da história que começa a ser entendida como universal.
É uma descoberta imperial que em tempos diferentes assume
conteúdos diferentes. O
Oriente é, antes de mais, a civilização alternativa ao Ocidente
— tal como o sol nasce a Oriente, também aí nasceram as
civilizações e os impérios.
Esse mito das origens tem tantas leituras quantas as que o
Ocidente tem de si próprio, ainda que estas, por seu lado, também
não existam senão em termos da comparação com o que não é
Ocidental. Um
Ocidente decadente vê no Oriente a Idade do Ouro; um Ocidente
exaltante vê no Oriente a infância do progresso civilizacional.
As
duas leituras estão vigentes no milénio mas, à medida que este
avança, a segunda leitura toma a primazia sobre a primeira e
assume a sua formulação mais extrema em Hegel para quem "a
história universal vai de Oriente para Ocidente".
A Ásia é o princípio, enquanto a Europa é o fim
absoluto da história universal, o lugar da consumação da
trajectória civilizacional da humanidade.
A ideia bíblica e medieval da sucessão dos impérios (translatio
imperii) transforma-se em Hegel no caminho triunfante da Ideia
Universal dos povos asiáticos para a Grécia, desta para Roma e
finalmente de Roma para a Alemanha.
A América do Norte é o futuro equívoco que não colide
com o culminar da história universal na Europa, na medida em que
é feito com a população excedentária da Europa.
Assim, este eixo Oriente-Ocidente contém, simultaneamente,
uma sucessão e uma rivalidade civilizacional e, por isso, é
muito mais conflitual do que o eixo Norte-Sul.
Este último é constituído
pela relação entre a civilização e o seu oposto, a
natureza e o selvagem. Aqui
não há verdadeiramente conflito porque a civilização tem uma
primazia natural sobre tudo o que não é civilizado.
Segundo Hegel, a África não faz parte sequer da história
universal. Para o
Ocidente, o Oriente é sempre uma ameaça, enquanto o Sul é
apenas um recurso. A
superioridade do Ocidente reside em ele ser simultaneamente o
Ocidente e o Norte.
As
mudanças, ao longo do milênio, na construção simbólica do
Oriente têm alguma correspondência nas transformações da
economia mundial. Até
ao século XV, podemos dizer que a Europa e, portanto, o Ocidente,
é a periferia de um sistema-mundo cujo centro está localizado na
Ásia Central e na Índia. Só
a partir de meados do milénio, com os descobrimentos, é que esse
sistema-mundo é substituído por outro, capitalista e planetário,
cujo centro é a Europa.
Logo
no início do milénio as cruzadas são a primeira grande confirmação
do Oriente como ameaça. A
conquista de Jerusalém pelos Turcos e a crescente vulnerabilidade
dos cristãos de Constantinopla ao avanço do Islão foram os
motivos da guerra santa. Insuflada pelo Papa Urbano II, uma onda de zelo religioso
avassalou a Europa reivindicando para os cristãos o direito
inalienável à terra prometida.
As peregrinações à terra santa e ao santo sepúlcro. que
nessa altura mobilizavam multidões — trinta anos antes da
primeira cruzada, alguns bispos organizaram uma peregrinação de
sete mil pessoas, uma jornada laboriosa do Reno ao Jordão
— foram o prelúdio da guerra contra o infiel.
Uma guerra santa que recrutou os seus soldados com a
concessão papal, a todos os que se alistassem sob a bandeira da
cruz, de uma indulgência plena (absolvição de todos os pecados
e quitação das penitências devidas) e também com a miragem dos
paraísos orientais, os seus tesouros e minas de ouro e diamantes,
palácios de mármore e quartzo e rios de leite e mel.
Como qualquer outra guerra santa, também esta soube
multiplicar os inimigos da fé para exercitar o seu vigor e, por
isso, muito antes de Jerusalém, em plena Alemanha, a cruzada
satisfez pela primeira vez a sua sede de sangue e de pilhagem
contra os judeus.
As
sucessivas cruzadas e as suas vicissitudes selaram a concepção
do Oriente que dominou durante todo o milénio: o Oriente como
civilização temível e temida e como recurso a ser explorado
pela guerra e pelo comércio.
Foi essa concepção que presidiu às descobertas planeadas
na Escola de Sagres. Mas
os portugueses não deixaram de retocar essa concepção.
Talvez devido à sua posição periférica no Ocidente,
viram o Oriente com menos rigidez: a civilização temida mas também
a civilização admirada.
O exercício da rejeição violenta foi de par com a admiração
veneranda, e os interesses do comércio acabaram por ditar o
predomínio de uma ou outra.
Aliás, a descoberta do caminho marítimo para a Índia é
a mais "ocidental" de todas as descobertas, uma vez que
as costas da África Oriental e o Oceano Índico estavam há muito
descobertas pelas frotas árabes e indianas.
A
concepção do Oriente que predominou no milénio ocidental teve a
sua consagração científica no século XIX com o chamado
Orientalismo. Orientalismo é a concepção do Oriente que domina nas ciências
e as humanidades europeias a partir do final do século XVIII.
Segundo Said,
essa concepção assenta nos seguintes dogmas: uma distinção
total entre "nós", os ocidentais, e "eles",
os orientais; o Ocidente é racional, desenvolvido, humano,
superior, enquanto o Oriente é aberrante, subdesenvolvido e
inferior; o Ocidente é dinâmico, diverso, capaz de
auto-transformação e de auto-definição, enquanto o Oriente é
estático, eterno, uniforme, incapaz de se auto-representar; o
Oriente é temível (seja ele o perigo amarelo, as hordas mongóis
ou os fundamentalistas islâmicos) e tem de ser controlado pelo
Ocidente (por meio da guerra, ocupação, pacificação, investigação
científica, ajuda ao desenvolvimento, etc.).
O
outro lado do orientalismo foi a ideia da superioridade intrínseca
do Ocidente, a conjunção nesta zona do mundo de uma série de
características peculiares que tornaram possível, aqui e só
aqui, um desenvolvimento científico, cultural, económico e político
sem precedentes. Max
Weber foi um dos grandes teorizadores do predomínio inevitável
do Ocidente.
O facto de Joseph Needham e outros terem demonstrado que,
até ao século XV, a civilização chinesa não era em nada
inferior à civilização ocidental,
não abalou até hoje o senso comum ocidental sobre a
superioridade, por assim dizer, genética do Ocidente.
Chegamos
ao final do milénio prisioneiros da mesma concepção do Oriente.
Aliás, deve salientar-se que as concepções que
assentam em contrastes dicotómicos têm sempre uma forte
componente especular: cada um dos termos da distinção vê-se ao
espelho do outro. Se
é verdade que as cruzadas selaram a concepção do Oriente que
prevaleceu até hoje no Ocidente, não é menos verdade que, para
o mundo muçulmano, as cruzadas — agora designadas como guerras
e invasões francas — compuseram a imagem do Ocidente — um
mundo bárbaro, arrogante, intolerante, pouco honrado nos
compromissos — que igualmente até hoje dominou.
As
referências empíricas da concepção do Oriente por parte do
Ocidente mudaram ao longo do milénio, mas a estrutura que lhes dá
sentido manteve-se intacta. Numa
economia globalizada, o Oriente, enquanto recurso, foi
profundamente reelaborado. É hoje, sobretudo, um imenso mercado a explorar, e a China
é o corpo material e simbólico desse Oriente.
Por mais algum tempo, o Oriente será ainda um recurso
petrolífero, e a Guerra do Golfo é a expressão do valor que ele
detém na estratégia do Ocidente hegemónico.
Mas, acima de tudo, o Oriente continua a ser uma civilização
temível e temida. Sob
duas formas principais, uma, de matriz política — o chamado
"despotismo oriental" — e outra, de matriz religiosa
— o chamado "fundamentalismo islâmico" —, o Oriente
continua a ser o Outro civilizacional do Ocidente, uma ameaça
permanente contra a qual se exige uma vigilância incansável.
O Oriente continua a ser um lugar perigoso cuja
perigosidade cresce com a sua geometria.
A
mão que traça as linhas do perigo é a mão do medo e, por isso,
o tamanho da fortaleza que o exorcisa varia com a percepção da
vulnerabilidade. Quanto
maior for a percepção da vulnerabilidade do Ocidente, maior é o
tamanho do Oriente. Daí
que os defensores da alta vulnerabilidade não se contentem com
uma concepção restrita de Oriente, tipo "fundamentalismo
islâmico", e apontem para uma concepção muito mais ampla,
a "aliança confucionista-islâmica" de que fala Samuel
Huntington.
Trata-se, afinal, da luta do Ocidente contra o Resto do Mundo.
Ao contrário do que pode parecer, a percepção da alta
vulnerabilidade, longe de ser uma manifestação de fraqueza, é
uma manifestação de força e traduz-se na potenciação da
agressividade. Só
quem é forte pode justificar com a vulnerabilidade o exercício
da força.
Um
Ocidente sitiado, altamente vulnerável, não se limita a ampliar
o tamanho do Oriente, restringe o seu próprio tamanho.
Esta restrição tem um efeito perverso: a criação de
Orientes dentro do Ocidente.
É este o significado da Guerra do Kosovo: O Ocidente
eslavo transformado numa forma de despotismo oriental.
É por isso que os Kosovares, para estarem do lado
"certo" da história, não podem ser islâmicos.
Têm de ser apenas minorias étnicas.
O
Selvagem
Se
o Oriente é para o Ocidente o lugar da alteridade, o selvagem é
o lugar da inferioridade. O
selvagem é a diferença incapaz de se constituir em alteridade.
Não é o outro porque não é sequer plenamente humano.
A sua diferença é a medida da sua inferioridade.
Por isso, longe de constituir uma ameaça civilizacional,
é tão só a ameaça do irracional. O seu valor é o valor da sua
utilidade. Só merece
a pena confrontá-lo na medida em que ele é um recurso ou a via
de acesso a um recurso. A
incondicionalidade dos fins — a acumulação dos metais
preciosos, a expansão da fé — justificam o total pragmatismo
dos meios: escravatura, genocídio, apropriação, conversão,
assimilação.
Os
jesuítas, despachados quase ao mesmo tempo, ao serviço de D. João
III, para o Japão e para o Brasil, foram os primeiros a
testemunhar a diferença entre o Oriente e o selvagem:
"Entre o Brasil e esse vasto Oriente, a disparidade
era imensa. Lá,
povos de requintada civilização ... Aqui florestas virgens e
selvagens nus. Para o
aproveitamento da terra pouco se poderia contar com sua rarefeita
população indígena cuja cultura não ultrapassava a idade da
pedra. Era necessário
povoá-la, estabelecer na terra inculta a verdadeira
"colonização". Não assim no Oriente, superpovoado, onde a Índia, o Japão
e, sobretudo, a China haviam deslumbrado, em plena idade média,
os olhos e a imaginação de Marco Polo.
A
ideia do selvagem passou por várias metamorfoses ao longo do milénio.
O seu antecedente conceptual está na teoria da
"escravatura natural" de Aristóteles. Segundo esta teoria, a natureza criou duas partes, uma
superior, destinada a mandar, e outra, inferior, destinada a
obedecer. Assim, é
natural que o homem livre mande no escravo, o marido, na mulher, o
pai, no filho. Em
qualquer destes casos quem obedecer está total ou parcialmente
privado da razão e da vontade e, por isso, é do seu interesse
ser tutelado por quem tem uma e outra em pleno.
No caso do selvagem, esta dualidade atinge uma expressão
extrema na medida em que o selvagem não é sequer plenamente
humano; meio animal, meio homem, monstro, demónio, etc.
Esta matriz conceptual variou ao longo do milénio e, tal
como sucedeu com o Oriente, foi a economia política e simbólica
da definição do "Nós" que determinou a definição do
"Eles". Se
é verdade que dominaram as visões negativas do selvagem, não é
menos verdade que as concepções pessimistas do "Nós",
de Montaigne a Rousseau, de Las Casas a Vieira estiveram na base
das visões positivas do selvagem, o "bom selvagem".
Neste
segundo milénio a América e a África, enquanto
"descobertas" ocidentais, são o lugar por excelência
do selvagem. E a América talvez mais que a África, dado o modelo de
conquista e colonização que
prevaleceu no "Novo Mundo", como significativamente foi
designado por Américo Vespúcio o continente que rompia com a
geografia do mundo antigo, confinado à Europa, à Ásia e à África.
É a propósito da América e dos povos indígenas
submetidos ao jugo europeu que se suscita o debate fundador sobre
a concepção do selvagem no segundo milénio.
Este debate que, contrariamente às aparências, está hoje
tão em aberto como há quatrocentos anos, inicia-se com as
descobertas de Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral e
atinge o seu primeiro clímax na "Disputa de Valladolid",
convocada em 1550 por Carlos V, em que se confrontaram dois
discursos paradigmáticos sobre os povos indígenas e a sua dominação,
protagonizados por Juan Ginés de Sepúlveda e Bartolomé de Las
Casas. Para Sepúlveda,
fundado em Aristóteles, é justa a guerra contra os índios
porque estes são os "escravos naturais", seres
inferiores, animalescos, homúnculos, pecadores graves e
inveterados, que devem ser integrados na comunidade cristã, pela
força, se for caso disso, a qual, se necessário, pode levar à
sua eliminação. Ditado
por uma moral superior, o amor do próximo pode, assim, sem
qualquer contradição, justificar a destruição dos povos indígenas:
na medida em que resistem à dominação "natural e
justa" dos seres superiores, os índios tornam-se culpados da
sua própria destruição. É
para seu próprio benefício que são integrados ou destruídos.
A
este paradigma da descoberta imperial, fundado na violência
civilizadora do Ocidente, contrapôs Las Casas a sua luta pela
libertação e emancipação dos povos indígenas, que considerava
seres racionais e livres, dotados de cultura e instituições próprias,
com os quais a única relação legítima era a do diálogo
construtivo assente em razões persuasivas "suavemente
atractivas e exortativas da vontade".
Fustigando a hipocrisia dos conquistadores, como mais tarde
fará o Padre António Vieira, Las Casas denuncia a declaração
da inferioridade dos índios como um artifício para
compatibilizar a mais brutal exploração com o imaculado
cumprimento dos ditames da fé e dos bons costumes.
Pese
embora o brilho de Las Casas, foi o paradigma de Sepúlveda que
prevaleceu, porque só esse era compatível com as necessidades do
novo sistema mundial capitalista centrado na Europa.
No terreno concreto da missionação, dominaram quase
sempre as ambiguidades e os compromissos entre os dois paradigmas.
O Padre José Anchieta é talvez um dos primeiros exemplos.
Tendo, embora, repugnância pela antropofagia e pela
concupiscência dos brasis, "gente bestial e
carniceira", o Padre Anchieta acha legítimo sujeitar os
gentios ao jugo de Cristo que "assim [...] serão obrigados a
fazer, por força, aquilo a que não é possível levá-los por
amor",
ao mesmo tempo que de Roma os seus superiores lhe recomendam que
evite atritos com os portugueses, "pelo que importa mantê-los
benévolos".
Mas, por outro lado, tal como Las Casas, Anchieta
embrenha-se no conhecimento dos costumes e das línguas indígenas
e vê nos ataques dos índios aos portugueses o castigo divino
"pelas muitas sem-razões que têm feito a esta nação, que
dantes eram nossos amigos, salteando-os, cativando-os, e
matando-os, muitas vezes com muitas mentiras e enganos".
Quase vinte
anos depois, haveria Anchieta de se lamentar que "a maior
parte dos índios, naturais do Brasil, está consumida, e alguns
poucos, que se hão conservado com a diligência e trabalhos da
Companhia, são tão oprimidos que em pouco tempo se gastarão".
Com
matizes vários, é o paradigma de Sepúlveda que ainda hoje
prevalece na posição ocidental sobre os povos ameríndios e os
povos africanos. Expulsa
das declarações universais e dos discursos oficiais é, contudo,
a posição que domina as conversas privadas dos agentes do
Ocidente no Terceiro Mundo, sejam eles embaixadores, funcionários
da ONU, do Banco Mundial ou do Fundo Monetário Internacional,
cooperantes, empresários, etc.
É esse discurso privado sobre pretos e índios que
mobiliza subterraneamente os projectos de desenvolvimento depois
enfeitados publicamente com declarações de solidariedade e
direitos humanos.
A
Natureza
A
natureza é a terceira grande descoberta do milénio, aliás,
concomitante da descoberta do selvagem ameríndio.
Se o selvagem é, por excelência, o lugar da
inferioridade, a natureza é, por excelência, o lugar da
exterioridade. Mas
como o que é exterior não pertence e o que não pertence não é
reconhecido como igual, o lugar de exterioridade é também um
lugar de inferioridade. Tal
como o selvagem, a natureza é simultaneamente uma ameaça e um
recurso. É uma ameaça tão irracional quanto a do selvagem, mas a
irracionalidade deriva, no caso da natureza, da falta de
conhecimento sobre ela, um conhecimento que permita dominá-la e
usá-la plenamente como recurso.
A violência civilizatória que, no caso dos selvagens, se
exerce por via da destruição dos conhecimentos nativos
tradicionais e pela inculcação do conhecimento e fé
"verdadeiros" exerce-se, no caso da natureza, pela produção
de um conhecimento que permita transformá-la em recurso natural.
Em ambos os casos, porém, as estratégias de conhecimento
são basicamente estratégias de poder e dominação.
O selvagem e natureza são, de facto, as duas faces do
mesmo desígnio: domesticar a "natureza selvagem",
convertendo-a num recurso natural.
É essa vontade única de domesticar que torna a distinção
entre recursos naturais e recursos humanos tão ambígua e frágil
no século XVI como hoje.
Tal
como a construção do selvagem, também a construção da
natureza obedeceu às exigências da constituição do novo
sistema económico mundial centrado na Europa.
No caso da natureza, essa construção foi sustentada por
uma portentosa revolução científica que trouxe no seu bojo a ciência
tal como hoje a conhecemos, a ciência moderna.
De Galileu a Newton, de Descartes a Bacon, um novo
paradigma científico emerge que separa a natureza da cultura e da
sociedade e submete a primeira a um guião determinístico de leis
de base matemática. O
Deus que justifica a submissão dos índios tem, no caso da
natureza, o seu equivalente funcional nas leis que fazem coincidir
previsões com acontecimentos e transformam essa coincidência na
prova da submissão da natureza. Tão estúpida e imprevisível enquanto interlocutor quanto o
selvagem, a natureza não pode ser compreendida; pode apenas ser
explicada, e explicá-la é a tarefa da ciência moderna. Para ser
convincente e eficaz, esta descoberta da natureza não pode
questionar a natureza da descoberta.
Com o tempo, o que não pode ser questionado deixa de ser
uma questão, isto é, torna-se evidente.
Este
paradigma de construção da natureza, apesar de apresentar alguns
sinais de crise, é ainda hoje o paradigma dominante.
Duas das suas consequências assumem uma especial preeminência
no final do milénio: a crise ecológica e a questão da
biodiversidade. Transformada
em recurso, a natureza não tem outra lógica senão a de ser
explorada até à exaustão. Separada a natureza do homem e da sociedade, não é possível
pensar retroacções mútuas.
Esta ocultação não permite formular equilíbrios nem
limites, e é por isso que a ecologia não se afirma senão por
via da crise ecológica.
Por
outro lado, a questão da biodiversidade vem repor num novo plano
a sobreposição matricial entre a descoberta do selvagem e a
descoberta da natureza. Não
é por acaso que no final do milénio boa parte da biodiversidade
do planeta existe em territórios dos povos indígenas.
Para eles, a natureza nunca foi um recurso natural, foi
sempre parte da sua própria natureza enquanto povos indígenas e
assim a preservaram preservando-se, sempre que conseguiram escapar
à destruição ocidental. Hoje,
à semelhança do que ocorreu nos alvores do sistema mundial
capitalista, as empresas multinacionais da farmacêutica, da
biotecnologia e da engenharia genética procuram transformar os
indígenas em recursos, agora não em recursos de trabalho, mas
antes em recursos genéticos, em instrumentos de acesso, não ao
ouro e à prata, mas, por via do conhecimento tradicional, à
flora e à fauna, sobre a forma de biodiversidade.
Os
Lugares fora do Lugar
Identifiquei
as três grandes descobertas matriciais do milénio: o Oriente
enquanto lugar da alteridade; o selvagem, enquanto lugar da
inferioridade; a natureza, enquanto lugar de exterioridade.
São descobertas matriciais porque acompanharam todo o milénio,
ou boa parte dele, e tanto que, no final do milénio, e apesar de
alguns questionamentos, permanecem intactas na sua capacidade para
alimentar o modo como o Ocidente se vê a si próprio e tudo o que
não identifica consigo.
A
descoberta imperial não reconhece igualdade, direitos ou
dignidade ao que descobre. O
Oriente é inimigo, o selvagem é inferior, a natureza é um
recurso à mercê dos humanos.
Como relação de poder, a descoberta imperial é uma relação
desigual e conflitual. É
também uma relação dinâmica.
Por quanto tempo o lugar descoberto mantém o estatuto de
descoberto? Por
quanto tempo o lugar descoberto permanece no lugar da descoberta?
Qual o impacto do descoberto no descobridor?
Pode o descoberto descobrir o descobridor? Pode o
descobridor descobrir-se? São
possíveis redescobertas?
O
final do milénio é um tempo propício às interrogações.
Na orla do tempo, a perplexidade parece ser a forma menos
insana de conviver com a dramatização das opções ou da falta
delas. O sentimento
de urgência é o resultado da acumulação de múltiplas questões
na mesma hora ou lugar. Sob
o peso da urgência, as horas perdem minutos e os lugares
comprimem-se.
É
sob o efeito desta urgência e da desordem que ela provoca que os
lugares descobertos pelo milénio ocidental dão sinais de
inconformismo. Na
intimidade, esse inconformismo coincide em tudo com o
auto-questionamento e a auto-reflexividade do Ocidente.
É possível substituir o Oriente pela convivência
multicultural? É
possível substituir o selvagem pela igualdade na diferença e
pela auto-determinação? É
possível substituir a natureza por uma humanidade que a inclua?
Estas são as perguntas a que o terceiro milénio tentará
responder.
*Sociólogo.
Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Leitura
recomendada
Anchieta,
Jose. Obras Completas. São
Paulo: Edições Loyola.
Gibbon,
Edward. 1928.
The Decline and Fall of the Roman Empire. 6
Volumes. Londres:
J.M. Dent.
Las
Casas, Bartolomé. 1992.
Obras Completas. Tomo
X, Madrid: Alianza Editorial.
Montaigne,
Michel de. 1998.
Ensaios. Lisboa:
Relógio D'Água.
Needham,
Joseph. 1954.
Science and Civilization in China.
6 Volumes. Cambridge:
Cambridge University Press.
Said,
Edward. 1979.
Orientalism. Nova
Iorque: Vintage Books.
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