Soberania e democracia na era de hegemonia norte-americana 

Emir Sader* 

I . Nenhum tema importante do mundo contemporâneo pode ser entendido fora do marco da hegemonia norte-americana. Esta cruza de tal forma o plano econômico, tecnológico, comercial, financeiro, político, militar, informativo, midiático, de lazer – entre outros – que o que tentasse ser abordado fora desse marco, provavelmente seria enfocado mal, de forma insuficiente ou provavelmente de forma errada. 

Trata-se não apenas da vitória de um dos contendores da guerra fria sobre o outro e do estabelecimento de sua hegemonia sobre o sistema internacional no seu conjunto, mas de uma nova modalidade de hegemonia, que se apoia no poderio econômico dos EUA – da sua estrutura produtiva a seu mercado interno -, é articulado por uma capacidade política e militar de intervenção e se multiplica pela rede de aliados e pelo sistema oligopólico internacional de informação e de divertimento, soldados por uma ideologia que se apropriou do conceito de democracia – redutivamente concebida como democracia liberal – e de seu suposto complemento – a economia capitalista de mercado. No seu conjunto, se reestrutura o sistema de poder em escala mundial, sob hegemonia norte-americana, definindo uma nova era na história da humanidade. 

Nunca um império teve fronteiras tão extensas, nunca conseguiu organizar um bloco no poder constituído por nações tão poderosas como aliados, nunca dispôs de uma ideologia tão amplamente aceita e tão alimentada por uma máquina de propaganda tão universalizada. Esse poderio, por sua vez, busca articular formas de organização desregulada da economia, modalidades de especulação financeira, esquemas de super-exploração sem limites dos trabalhadores, valores egoistas e hedonistas, estilos de vida e de consumo – de forma a construir um mundo à imagem e semelhança do grande capital, monopolista e especulativo, funcional à sua reprodução sem travas. 

O poder construído sobre esses pilares produz uma força internacional unificada – com contradições, é certo, como veremos mais adiante -, com estruturas orgânicas – o G7, a OMC, a OTAN, o FMI, O Banco Mundial, a AMI -, com comando centralizado, com ideologia hegemônica relativamente consolidada. Produz-se uma reunificação do mercado mundial, que busca sua legalidade e sua legitimidade na ideologia, na força militar e no monopólio dos meios de comunicação. 

O mal-estar produzido por essa avalanche de mercantilização do mundo, depois de se ter acumulado subterraneamente nas mentes e corações de milhões de pessoas, explodiu à superfície em 30 de novembro, em pleno coração desse império, para não parar de crescer e de se diversificar, a ponto de, em pouco mais de um ano, modificar o cenário dos debates mundiais, arrancando a iniciativa das mãos dos ricos do mundo e de seus funcionários e instituições, para recolocar a necessidade de ruptura com esse mundo e de construção de um outro tipo de mundo. 

Por isso estamos aqui, em Porto Alegre, já vitoriosos moralmente, porque portadores dos grandes temas que preocupam a humanidade no novo século, reconhecidos até pelo pensamento conservador como os fundamentais no mundo contemporâneo – a miséria no mundo e a natureza histórica da chamada globalização – o que, por si só, já significa uma vitória nossa, porque representa sua desnaturalização, a recuperação do seu caráter histórico, isto é, de fenômeno humano, construído pelos homens e, portanto, passível de ser desconstruído e reconstruido de outra maneira. Histórico e, portanto, nas mãos dos bilhões de homens e mulheres do mundo.  

II.        De que forma a nova hegemonia norte-americana no mundo afeta o tema da soberania, dos Estados nacionais, da questão nacional? 

Sem fazer o rastreamento histórico desses temas, nos deteremos em particular no da soberania, entendendo que dele depende, em grande parte, não apenas a resolução do tema do novo caráter que devem assumir os Estados nacionais, mas também da realização do tema da identidade nacional. 

Para que ganhe a abrangência que requer e seja instrumento na luta pela hegemonia política, a soberania tem que ser entendida não apenas como soberania nacional, mas como soberania popular, à qual está estreitamente vinculada numa concepção democrática radical, popular da história. Esta promessa democrática esbarrou sempre na visão reducionista do liberalismo, que buscou sustentar nos estreitos limites jurídicos e políticos do formalismo os fundamentos da democracia, circunscrevendo-a à natureza codificada dos regimes políticos, que terminaram não apenas esvaziando sua legitimidade, como tornando-se álibis de cobertura para a mercantilização das nossas sociedades – inclusive do próprio sistema político. 

Ao erigir-se em defensor – propagandístico, econômico e militar – de seus valores e interesses, que moldam a nova ordem mundial, os EUA tornaram-se o baluarte de uma determinada concepção de soberania. O livre comércio e, dando-lhe cobertura, uma determinada visão do “humanismo” e da democracia, dão a base de sustentação de sua dominação, que se choca diretamente com a possibilidade de soberania dos outros Estados. 

As intervenções militares norte-americanas dos anos noventa demonstram isso cabalmente, seja na África, no Oriente Médio ou na própria Europa. Além disso, as políticas econômicas norte-americanas – que combinam desregulação com manipulação dos organismos internacionais: da OMC ao FMI, do Banco Mundial à OTAN – violam sistematicamente os interessas nacionais dos distintos países – de que as relações no continente americanos são exemplo claro, do Nafta à Alca. 

Ao condensar em sua hegemonia o monopólio militar, econômico, financeiro, tecnológico, dos meios de comunicação, os EUA impõem sua dominação imperial num sistema internacional cuja existência se erige em obstáculo à soberania nacional e à soberania popular de outros países, constituindo-se assim num obstáculo central à extensão e aprofundamento da democracia – política, econômica, social, cultural, informativa, tecnológica – no mundo do século XXI. 

III.     O modelo hegemônico atualmente vigente se apoia no deslocamento da esfera pública e na sua substituição pelas grandes corporações empresarias como sujeitos econômicos e políticos das nossas sociedades. Com isso, os direitos são substituídos pelo poder de compra no mercado, os cidadãos pelos consumidores, os países pelos mercados, a livre informação pela propaganda mercantil, os debates políticos pelas campanhas de marketing, as ruas e praças pelos shopping centers e pelos condominios fechados, os comícios e concentrações populares pelos pronunciamentos televisivos, a soberania nacional pelos capitais financeiros desregulamentados, a soberania popular pela opinião pública fabricada pela mídia financiada pelos grandes capitais, o financiamento da produção e do consumo popular pela agiotagem especulativa. 

Foi contra esse mundo mercantilizado que se levantou a nova opinião pública democrática do mundo, gritando que o mundo não é uma mercadoria, que o mundo não está à venda, que o essencial não tem preço. O que nos une, a todos, antes de tudo, é a luta contra a mercantilização do mundo. Contra a concepção e a prática de que tudo se vende, de que tudo se compra, de que o mercado e os seus preços manipulados definem o que se pode e não se pode fazer, o que é bom e o que é ruim, o que é belo e o que é feio, o que é justo e o que é injusto. 

A própria soberania nacional passou a ser cotada no mercado. Os chamados “paraísos fiscais” – infernos da moralidade e da dignidade humana – são países que negociam sua soberania, alugam, vendem – como demonstram de maneira tão inquestionável, entre outros, o suiço Jean Ziegler. Mas mesmo naqueles Estados que pretendem impor sua concepção de democracia ao resto do mundo, a mercantilização invade toda a vida pública. 

As empresas especulativas norte-americanas, que doaram 22,2 milhões de dólares à campanha de George W. Bush, cobram de seu financiado o incentivo à poupança privada e a baixa dos impostos. As empresas do setor tecnológico, que contribuíram com 7,7 milhões de dólares cobram o fim de qualquer forma de taxação da internet. Os laboratórios farmacêuticos, que doaram 4 milhões de dólares e gastaram mais de 40 milhões em campanhas temáticas a favor de Bush, se reivindicam o direito de assumir o controle dos planos de saúde para os idosos. Além disso, Bush nomeou um dirigente do laboratório farmacêutico Eli Lilly & Co. para dirigir a oficina do orçamento na Casa Branca. O setor energético, que colaborou com 9 milhões de dólares, já recebeu a contrapartida, com a decisão do novo presidente dos EUA e liberar a exploração de petróleo e de gás em todo o território federal, incluído o Alasca, vencendo a oposição dos ecologistas.  

Essa privatização do Estado é acompanhada pela sua financeirização. Sabemos como no Brasil os maiores contribuintes para as campanhas presidenciais do atual presidente brasileiro foram os grandes bancos, que foram beneficiados com o maior programa de assistência econômica do governo, num jogo promíscuo de troca de favores e de cristalização de interesses justamente do setor mais parasitário do capitalismo – aquele que não financia prioritariamente investimentos produtivos e consumo popular, mas vive das mais altas taxas de juros oferecidas pelos papéis do governo brasileiro. O único compromisso indiscutível de um governo como esse termina sendo o pagamento dos juros da dívida, ao que se subordina todo o resto – a começar pelas necessidades básicas da massa da população, que nem financia nem é destinatária dos principais esforços do governo. 

Gera-se assim um mecanismo vicioso, redondo, fechado sobre si mesmo, em que os governantes são explicitamente financiados pelos ricos e governam explicitamente para os ricos. A arte de governar fica reduzida, de forma bastarda, a atender os interesses dos capitais que financiam os governos, com a complacência e a legitimação oferecidas pela grande imprensa, com seu discurso economicista e ventríloquo das grandes fortunas. O poder público fica completamente desfigurado como instrumento da soberania nacional e popular.  

IV.     A soberania nacional não pode ser pensada hoje, num marco de extensa internacionalização econômica, nem no marco estritamente nacional, nem nos marcos do liberalismo político como modelo de organização do Estado e do poder. Duas direções são essenciais para os que lutam pela democratização do poder, em escala local, nacional e mundial. 

Um deles é o da socialização do poder e da política. Como dizia Gramsci, existem dois tipos de politicos: os que lutam pela consolidação da distância entre governantes e governados e os que lutam pela superação dessa distância. Os primeiros se circunscrevem nos limites estritos dos modelos liberais e, numa época em que a mercantilização invade todas as esferas e faz da própria política um mercado – como deseja George Soros, para quem o mercado seria mais democrático que as eleições, esquecendo-se que o poder de compra define desigualdades fundamentais – acentuam a perda de legitimidade e de representatividade dos sistemas políticos liberais.  

Os segundos trabalham na direção de estender e aprofundar a participação política, promovendo a socialização da política e do poder mediante políticas como as do orçamento participativo. Esta promove simultaneamente a inclusão política e a inclusão social, cuja solidariedade é indispensável tanto para uma quanto para a outra. Trata-se de um instrumento essencial para a reforma democrática do Estado, para a reformulação radical das relações entre Estado e sociedade, avançando na direção da soberania popular. 

A afirmação desse tipo de política, no entanto, como reflexo de seu potencial democrático radical, se choca com as políticas nacionais de ajuste fiscal, que buscam sufoca-la pelo lado das restrições crescentes aos orçamentos estaduais e municipais, na tentativa de inscrever legalmente políticas de restrição aos gastos públicos – que na prática significam debilitamento da capacidade de atendimento das demandas sociais das camadas populares. Assim, a possibilidade de afirmação de espaços de soberania popular mediante políticas como o orçamento participativo se chocaram cada vez mais com as políticas econômicas liberais, dependendo portanto, para sua consolidação e extensão, da derrota dessas políticas e da posta em prática de políticas que, ao contrário, privilegiem o mercado interno de consumo de massas como mecanismo reativador da economia e integrador socialmente. 

V. A segunda direção é a da integração internacional soberana dos Estados nacionais que, nos marcos atuais de internacionalização da economia e do poder político, só pode se dar através de alianças regionais e internacionais. Vale a pena deter-nos um pouco nos problemas colocados para os países da América Latina, porque de alguma forma refletem os desafios, os dilemas e as possibilidades para os países da periferia do capitalismo – aqueles que têm sua soberania mais diretamente comprometida – de realizar sua soberania ou de ser condenado a consolidar sua integração subordinada. 

Espaço privilegiado de hegemonia norte-americana ao longo do século XX, a América Latina conseguiu protagonizar uma das grandes transformações históricas desse século, com a industrialização de várias de suas economias, envoltas em projetos nacionais, que produziram níveis de soberania para esses países. A crítica da teoria do comércio internacional e a posta em prática de políticas de industrialização substitutiva de importações tornaram possíveis transformações econômicas, cujos efeitos sociais, políticos e ideológicos terminaram esgotando-se conforme o processo de internacionalização das economias – acompanhado, em vários países, de ditaduras militares – se impôs. 

Na etapa mais recente, de reorganização da economia mundial em torno dos três mega-mercados mundiais, os países da periferia do capitalismo tiveram suas condições de inserção internacional debilitadas. O Mercosul significou o único espaço de integração regional fora do hemisfério norte – isto é, integrado por países da periferia do capitalismo. A estratégia norte-americana era a de assimilação gradual dos países do continente ao Nafta, para o qual o Chile já havia sido cooptado como próximo sócio. A crise mexicana de 1994 bloqueou esse projeto, conforme o Congresso norte-americano tirava o poder de negociação com a “via rápida” do executivo dos EUA. 

Foi naquele momento que Washington mudou de tática, retirando da gaveta o projeto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Tendo ganhado tempo e espaço, o Mercosul se consolidou regionalmente e estendeu sua influência, avançando na integração do Chile e da Bolívia, enquanto negociava com os países do Pacto Andino em crise. 

Porém, como as políticas econômicas liberais não são integradoras e, assim, não promovem a integração soberana mas, tratando-se de países periféricos, formas de integração subordinada, havia uma crise embutida, que terminou explodindo conforme se deu a desvalorização da moeda brasileira, em janeiro de 1999. A partir dali se desviaram os interesses dos dois países mais importantes – Brasil e Argentina -, com políticas cambiais diferenciadas e administração irresponsável do seus conflitos. 

Ao mesmo tempo se aproximava a data de assinatura dos acordos finais da Alca – a ser definidos em abril de 2001 em Quebec – e a possibilidade de uma vitória republicana na sucessão norte-americana – com a conseqüente recuperação pela Casa Branca da “via rápida” -, os conflitos internos levaram o Mercosul - tal como existiu até hoje – a uma situação terminal, com o isolamento do Brasil – que reagiu tardiamente à nova situação – e a adesão da Argentina – pressionada por uma situação insustentável de sua política de paridade monetária – e do Chile a um adiantamento da data de entrada em vigor da Alca de 2005 a 2003. 

Com isso se consolidaria a hegemonia norte-americana sobre o conjunto do continente e assim diminuiriam as margens de manobra de todos ao países latino-americanos para afirmar sua soberania, conforme perdem o instrumento do Mercosul e se submetem à Alca. Ficariam restritas igualmente as possibilidades de alianças internacionais diferenciadas por parte dos países latino-americanas como, por exemplo, em relação à União Européia e ao sudeste asiático, bem como alianças como países do sul do mundo, igualmente excluídos dos mega-mercados, principalmente a China, a Índia, a África do Sul, o Irã, entre tantos outros. 

Romper com essa dinâmica – que sepultaria qualquer possibilidade de autonomia por parte dos países latino-americanos – supõe não apenas rechaçar as propostas de adiantamento das datas de colocação em prática da Alca, como igualmente rejeitar no seu conjunto a idéia de uma área de livre comércio das Américas, pelo que significa de subordinação à hegemonia absoluta dos Estados Unidos sobre o conjunto do continente – uma espécie de realização, nos termos contemporâneos, da Doutrina Monroe. 

Significa, simultaneamente, um novo projeto de integração latino-americana, assim como uma política de alianças com os países da Ásia e da África, para redefinir as condições de inserção internacional – incluídas alianças com os três mega-mercados mundiais - tanto da América Latina como de todos os países do sul do mundo, a partir de uma posição de força, unificada, que ao mesmo tempo proponha relações de cooperação e de solidariedade como normas de uma nova ordem mundial. 

VI.     A soberania nacional se tornou, com o chamado processo de globalização, indissociável da soberania política e, portanto, da democracia, do processo de auto-emancipação dos homens, tornados cidadãos. Não haverá soberania política sem democratização do poder do Estado e do poder político. 

Qualquer avanço democrático no mundo de hoje se choca com o processo de mercantilização que atravessa tudo, movido pelo apetite irrefreável de lucro das grandes corporações internacionais. Essa mola mestra da acumulação do capital – que hoje canaliza o essencial de seus recursos para viver da parasitária especulação financeira, às custas das políticas que privilegiam a estabilidade monetária por sobre os interesses fundamentais da grande maioria da população mundial – se choca com os valores sociais, políticos, morais, culturais que sustentam o humanismo e a solidariedade humana.  

Ser soberano, ser senhor do seu destino, ser sujeito da história e da sua vida cotidiana, significa, para a humanidade, romper com os ditames do lucro, do mercado, da acumulação irrefreada de riquezas materiais às custas do trabalho, da cultura, da natureza, da ética. Quem não quiser falar de capitalismo (e de anti-capitalismo) deve calar-se sobre temas como soberania e democracia. Quem, por outro lado, quiser lutar pela soberania nacional e popular, pela democracia, pelo humanismo – tem que se alinhar na luta anti-capitalista, na luta por um mundo guiado pelas necessidades materiais e espirituais de toda a humanidade.

  

 

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