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Tecido Social
Correio Eletrônico da Rede Estadual de Direitos Humanos - RN

N. 084 – 26/08/04

O sonho quebrado

Por Antonino Condorelli (Artigo publicado no site da revista Caros Amigos em 19/09/03)

Na tarde ensolarada de 16 de outubro de 1998, exatamente um mês depois de eu me ter mudado para Madri, chega a notícia de que o general Augusto Pinochet Ugarte tinha sido detido em Londres, sob mandato de captura internacional emitido pelo juiz espanhol Baltasar Garzón. O dono daquele sorriso cínico, o olhar escondido atrás de óculos escuros, daquelas luvas imaculadas naquela maldita foto tirada logo depois de se apossar do Palacio de la Moneda naquele maldito 11 de setembro de 1973 (o 11 de setembro do resto do mundo, daqueles que não têm voz nem direito ao luto e à memória), o assassino de Salvador Allende, de 3.200 pessoas, da democracia no Chile e da esperança de uma América Latina diferente estava preso para ser submetido a julgamento por uma autoridade judiciária espanhola, tendo que responder pelos crimes de genocídio, terrorismo e tortura.

30 de outubro de 1998, uma quente manhã de outono em Madri. Centenas de pessoas aguardam em silêncio – riscado apenas por slogans esporádicos, cantos que servem para exorcizar o medo – em frente à Audiencia Nacional, máximo órgão judiciário do Estado Espanhol. São parentas de vítimas das ditaduras argentina e chilenas, a maioria detidos desaparecidos cujo paradeiro ainda hoje é desconhecido. Esperam o pronunciamento do supremo tribunal da Espanha que estabelecerá se o poder judiciário espanhol tem competência para julgar delitos cometidos em outros países, contra cidadãos dos mesmos.

É aproximadamente uma e meia da tarde, o silêncio é quebrado por um grito de felicidade, seguido por um longo, emocionante pranto coletivo. Lágrimas escorrem nos rostos de homens, mulheres, velhos, jovens, tudo mundo se abraça com incrédula surpresa, intensamente. É o sonho de quem passou a vida inteira esperando justiça e de quem acredita na defesa universal dos direitos elementares do ser humano: a Audiencia Nacional de Madri estabeleceu que a Justiça espanhola é competente para julgar delitos considerados crimes contra a humanidade (no caso específico, os delitos de genocídio, terrorismo e tortura).

Volto para casa com o rosto molhado pelas lágrimas das centenas de pessoas que abracei, o coração disparando de emoção. Pela primeira vez na história se reconhecia um princípio contido na Convenção Internacional contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Crueis, Desumanas e Degradantes e na Convenção Internacional para a Prevenção e Sanção do Delito de Genocídio de 1948 que ninguém até então tinha posto em prática: o princípio de que os crimes contra a humanidade, atingindo como sujeito jurídico ao gênero humano em seu conjunto, encontram-se acima das jurisdições nacionais e podem – aliás, devem – ser perseguidos e julgados por qualquer instância jurídica em qualquer parte do mundo, independentemente de onde se produziram.

Pela primeira vez na história, o conceito de direitos humanos prevalecia sobre o de soberania nacional, o que tinha várias outras implicações. Em primeiro lugar, que os crimes contra a humanidade não estão sujeitos a normas nacionais concebidas para garantir a impunidade de torturadores e assassinos, como as leis argentinas de Obediencia Debida e Punto Final e a lei chilena de anistía. Em segundo lugar, que as violações dos direitos humanos não estão sujeitas a imunidade pelo simples fato de terem sido cometidas por autoridades no exercício das próprias funções (como acontece com os delitos de outras tipologias). Em terceiro lugar, que os crimes contra a humanidade não prescrevem nunca, portanto podem ser perseguidos em qualquer momento, independentemente de quando aconteceram.

Todos estes princípios, acolhidos na Ley Orgánica del Poder Judicial espanhola e em numerosas outras leis que determinam as competências dos poderes judiciários dos estados nacionais, nunca tinham sido aplicadas antes daquela data. Existiam (ou tinham existido) apenas tribunais internacionais específicos para crimes contra a humanidade cometidos em países e períodos determinados (o de Núremberg após a Segunda Guerra Mundial – que só julgou os crimes nazistas, excluindo os das potências vencedoras – o de Haia para os crimes cometidos na ex Iugoslavia e o de Arusha para os crimes cometidos durante o genocídio em Ruanda de 1994), mas não existiam precedentes que implicassem que qualquer instância jurídica de qualquer parte do mundo possa julgar crimes contra o ser humano.

A sentença da Audiencia Nacional foi seguida pela autorização ao julgamento espanhol de Augusto Pinochet pela Câmera dos Lords britânica, na fria manhã de 9 de dezembro de 1998. Aquela mesma noite, em Madri, nos reunimos na Puerta del Sol abraçados em uma gigantesca ciranda, centenas de pessoas cantando a desgarradora Gracias a la vida de Violeta Parra. Jamais esquecerei o céu vagamente roxo daquela noite clara, o vento gelado, o frio que penetrava nas entranhas mas que era logo expulso pelo calor incomparável daquela multidão emocionada. A sentença da Câmera dos Lords foi anulada umas semanas depois por defeitos de forma, mas reconfirmada em 24 de março de 1999 com uma esmagadora maioria de votos favoráveis ao processo de Pinochet.

Porém, o sonho de uma justiça universal não durou muito. Por considerações oportunistas de baixa politicagem, em 2000 o governo britânico concedeu a Pinochet o benefício da incapacidade de ser submetido a julgamento por razões de saúde e o deixou livre. Uma vez no Chile, apesar das tentativas de processar o genocida, empreendidas por uns juízes corajosos, a Corte de Apelações de Santiago concedeu ao general a imunidade por “motivos de saúde”. O principal responsável pela tortura e a morte de mais de 3.000 pessoas e pelo desaparecimento de 1.198 pessoas morrerá livre, na sua cama.

Em dezembro de 2000, a mesma Audiencia Nacional de Madri que tinha decretado a competência da Espanha para julgar os crimes das ditaduras chilena e argentina negou esta competência para o genocídio na Guatemala. Foi a caída na real de todos os que acreditam na universalidade dos direitos do homem. A mesma instância jurídica que dois anos antes tinha acendido um lume de esperança, deixando vislumbrar um futuro diferente pela justiça mundial, recuava. Por último, o tratado que estabelece a criação do Tribunal Penal Internacional para Crimes contra a Humanidade, órgão jurídico que deveria representar a universalização da defesa dos direitos humanos, não conta com a assinatura da maior potência mundial (entre várias outras faltas relevantes), o que tira desta instituição qualquer valor real, pois confirma que quem determina quem pode e quem não pode ser processado é a pura e simples lei do mais forte.

Aqui no Brasil, onde moro hoje, foram muito poucos os que acreditaram na universalização dos direitos humanos. Como todos os governos do continente na época, o de FHC se posicionou contra o processo de Pinochet fora do Chile, por medo de que se criasse um precedente para que tribunais de outros países se metessem em “assuntos internos” (a maioria ainda considera os direitos humanos assunto “interno”... Depois falam tanto em globalização, mas globalização de que?). Se Lula tivesse estado no poder na época, a posição dele teria sido diferente? Não podendo responder, deixo ao atual Presidente o benefício da dúvida. Porém, a leitura dos relatos das volações brutais e sistemáticas dos direitos mais elementares do ser humano que acontecem neste país me da vontade de lançar um grito de desespero mundo afora, na esperança (já sei que vã) de que algum juiz, em algum país, o escute.

Veja também:
- O ex-ditador chileno Augusto Pinochet será julgado pelos crimes da "Operação Condor"

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