O sonho quebrado
Por
Antonino Condorelli (Artigo publicado no site
da revista Caros
Amigos em 19/09/03)
Na tarde ensolarada de 16 de outubro de 1998, exatamente
um mês depois de eu me ter mudado para Madri, chega a notícia
de que o general Augusto Pinochet Ugarte tinha sido detido
em Londres, sob mandato de captura internacional emitido
pelo juiz espanhol Baltasar Garzón. O dono daquele sorriso
cínico, o olhar escondido atrás de óculos escuros, daquelas
luvas imaculadas naquela maldita foto tirada logo depois
de se apossar do Palacio de la Moneda naquele maldito
11 de setembro de 1973 (o 11 de setembro do resto do mundo,
daqueles que não têm voz nem direito ao luto e à memória),
o assassino de Salvador Allende, de 3.200 pessoas, da democracia
no Chile e da esperança de uma América Latina diferente
estava preso para ser submetido a julgamento por uma autoridade
judiciária espanhola, tendo que responder pelos crimes de
genocídio, terrorismo e tortura.
30 de outubro de 1998, uma quente manhã de outono em
Madri. Centenas de pessoas aguardam em silêncio – riscado
apenas por slogans esporádicos, cantos que servem para exorcizar
o medo – em frente à Audiencia Nacional, máximo órgão judiciário do Estado
Espanhol. São parentas de vítimas das ditaduras argentina
e chilenas, a maioria detidos desaparecidos cujo paradeiro
ainda hoje é desconhecido. Esperam o pronunciamento do supremo
tribunal da Espanha que estabelecerá se o poder judiciário
espanhol tem competência para julgar delitos cometidos em
outros países, contra cidadãos dos mesmos.
É aproximadamente uma e meia da tarde, o silêncio é quebrado
por um grito de felicidade, seguido por um longo, emocionante
pranto coletivo. Lágrimas escorrem nos rostos de homens,
mulheres, velhos, jovens, tudo mundo se abraça com incrédula
surpresa, intensamente. É o sonho de quem passou a vida
inteira esperando justiça e de quem acredita na defesa universal
dos direitos elementares do ser humano: a Audiencia Nacional
de Madri estabeleceu que a Justiça espanhola é competente
para julgar delitos considerados crimes contra a humanidade
(no caso específico, os delitos de genocídio, terrorismo
e tortura).
Volto para casa com o rosto molhado pelas lágrimas das
centenas de pessoas que abracei, o coração disparando de
emoção. Pela primeira vez na história se reconhecia um princípio
contido na Convenção Internacional contra a Tortura e
Outros Tratamentos ou Penas Crueis, Desumanas e Degradantes
e na Convenção Internacional para a Prevenção e Sanção
do Delito de Genocídio de 1948 que ninguém até então
tinha posto em prática: o princípio de que os crimes contra
a humanidade, atingindo como sujeito jurídico ao gênero
humano em seu conjunto, encontram-se acima das jurisdições
nacionais e podem – aliás, devem – ser perseguidos
e julgados por qualquer instância jurídica em qualquer parte
do mundo, independentemente de onde se produziram.
Pela primeira vez na história, o conceito de direitos
humanos prevalecia sobre o de soberania nacional, o que
tinha várias outras implicações. Em primeiro lugar, que
os crimes contra a humanidade não estão sujeitos a normas
nacionais concebidas para garantir a impunidade de torturadores
e assassinos, como as leis argentinas de Obediencia Debida
e Punto Final e a lei chilena de anistía. Em segundo
lugar, que as violações dos direitos humanos não estão sujeitas
a imunidade pelo simples fato de
terem sido cometidas por autoridades no exercício das próprias
funções (como acontece com os delitos de outras tipologias).
Em terceiro lugar, que os crimes contra a humanidade não
prescrevem nunca, portanto podem ser perseguidos em qualquer
momento, independentemente de quando aconteceram.
Todos estes princípios, acolhidos na Ley Orgánica
del Poder Judicial espanhola e em numerosas outras leis
que determinam as competências dos poderes judiciários dos
estados nacionais, nunca tinham sido aplicadas antes daquela
data. Existiam (ou tinham existido) apenas tribunais internacionais
específicos para crimes contra a humanidade cometidos em
países e períodos determinados (o de Núremberg após a Segunda
Guerra Mundial – que só julgou os crimes nazistas, excluindo
os das potências vencedoras – o de Haia para os crimes cometidos
na ex Iugoslavia e o de Arusha para os crimes cometidos
durante o genocídio em Ruanda de 1994), mas não existiam
precedentes que implicassem que qualquer instância
jurídica de qualquer parte do mundo possa julgar crimes
contra o ser humano.
A sentença da Audiencia Nacional foi seguida pela
autorização ao julgamento espanhol de Augusto Pinochet pela
Câmera dos Lords britânica, na fria manhã de 9 de dezembro
de 1998. Aquela mesma noite, em Madri, nos reunimos na Puerta
del Sol abraçados
em uma gigantesca ciranda, centenas de pessoas cantando
a desgarradora Gracias
a la vida de Violeta Parra. Jamais esquecerei o céu
vagamente roxo daquela noite clara, o vento gelado, o frio
que penetrava nas entranhas mas
que era logo expulso pelo calor incomparável daquela multidão
emocionada. A sentença da Câmera dos Lords foi anulada umas
semanas depois por defeitos de forma, mas reconfirmada em
24 de março de 1999 com uma esmagadora maioria de votos
favoráveis ao processo de Pinochet.
Porém, o sonho de uma justiça universal não durou muito.
Por considerações oportunistas de baixa politicagem, em
2000 o governo britânico concedeu a Pinochet o benefício
da incapacidade de ser submetido a julgamento por razões
de saúde e o deixou livre. Uma vez no Chile, apesar das
tentativas de processar o genocida, empreendidas por uns
juízes corajosos, a Corte de Apelações de Santiago concedeu
ao general a imunidade por “motivos de saúde”. O principal
responsável pela tortura e a morte de mais de 3.000 pessoas
e pelo desaparecimento de 1.198 pessoas morrerá livre, na
sua cama.
Em dezembro de 2000, a mesma Audiencia Nacional
de Madri que tinha decretado a competência da Espanha para
julgar os crimes das ditaduras chilena e argentina
negou esta competência para o genocídio na Guatemala. Foi
a caída na real de todos os que acreditam na universalidade
dos direitos do homem. A mesma instância jurídica que dois
anos antes tinha acendido um lume de esperança, deixando
vislumbrar um futuro diferente pela justiça mundial, recuava.
Por último, o tratado que estabelece a criação do Tribunal
Penal Internacional para Crimes contra a Humanidade, órgão
jurídico que deveria representar a universalização da defesa
dos direitos humanos, não conta com a assinatura da maior
potência mundial (entre várias outras faltas relevantes),
o que tira desta instituição qualquer valor real, pois confirma
que quem determina quem pode e quem não pode ser processado
é a pura e simples lei do mais forte.
Aqui no Brasil, onde moro hoje, foram muito poucos os
que acreditaram na universalização dos direitos humanos.
Como todos os governos do continente na época, o de FHC
se posicionou contra o processo de Pinochet fora do Chile,
por medo de que se criasse um precedente para que tribunais
de outros países se metessem em “assuntos internos” (a maioria
ainda considera os direitos humanos assunto “interno”...
Depois falam tanto em globalização, mas globalização de
que?). Se Lula tivesse estado no poder na época, a posição
dele teria sido diferente? Não podendo responder, deixo
ao atual Presidente o benefício da dúvida. Porém, a leitura
dos relatos das volações brutais e sistemáticas dos direitos
mais elementares do ser humano que acontecem neste país
me da vontade de lançar um grito de desespero mundo afora,
na esperança (já sei que vã) de que algum juiz, em algum
país, o escute.
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