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Tecido Social
Correio Eletrônico da Rede Estadual de Direitos Humanos - RN

N. 023 – 03/03/04

OLHAR SOBRE A CIDADE

 Macau, uma população humilhada

Por Antonino Condorelli

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come: assim poderia se resumir a condição do povo de Macau, na Região Salineira do Rio Grande do Norte. Se a empresa que controla todos os recursos da cidade viola os direitos do cidadão e este reclama, a autoridade pública baixa o pau... no cidadão violentado! Se ele fica calado, come lama todo dia. Um dado é certo: as violações dos Direitos Humanos são o pão cotidiano da população macauense; aliás, estão mais presentes na vida deles do que este último, que tantas vezes falta.

O Delegado Inácio Rodrígues: “Não abro mão do meu peixe”

Há aproximadamente 50 anos, a empresa Salinor (antigamente Alcalis, e antes ainda CCN e Cirne, de propriedade do empresário carioca José Carlos Fragoso Pires) colocou barragens no Rio Imburanas que destruíram quase inteiramente o mangue da região (que é reserva federal permanente), proibiu aos trabalhadores que viviam da pesca de pescarem na área, implantou alí a sua atividade salineira e ao longo dos anos foi se apossando sem base legal nenhuma de cerca de 5.000 hectares de terras da União e águas públicas.

Toda a população de Macau sabe que ela é responsável por espancamentos, torturas, maus tratos e mortes de pescadores que procuravam sustento para eles e as próprias famílias na área da qual se diz dona. Tais violações (muitas vezes denunciadas pela Associação dos Pescadores e Pescadoras de Macau) são perpetradas por vigias da Salinor e por policiais da cidade, já que existe um convênio entre a empresa e as polícias militar e civil de Macau graças ao qual estas podem pescar em uma barraca cedida pela empresa no melhor horário, o noturno, e vender o peixe obtido. Por um convênio que foi assinado entre a empresa e os pescadores, no entanto, estes últimos só têm direito a pescar durante o dia, que é quando os peixes se escondem.

Essa situação faz com que na maioria dos casos os pescadores que sofrem espancamentos e maus tratos por parte dos vigias da empresa não sejam atendidos na Delegacia (os policiais, geralmente, não recebem as denúncias e não fazem o Boletim de Ocorrência) ou sejam considerados culpados ao invés de vítimas, sofrendo prisões arbitrárias e torturas. Em poucas palavras, a polícia de Macau, cujo dever constitucional é defender os direitos da população da cidade, age como serviço de “capangagem”, de segurança particular dos interesses da Salinor.

Na última audiência pública realizada na cidade, em outubro de 2003, o Delegado Inácio Rodrígues afirmou que não vai abrir mão desta pescaria especial se não lhe oferecerem uma alternativa viável para melhorar os salários dos policiais. Deste jeito, motrou que considera normal que a autoridade de segurança pública tenha um acordo com uma empresa privada para obter benefícios econômicos de tal relação. Como se não bastasse, os soldados da PM afirmam que o fruto desta pescaria não vai para eles e suas famílias, mas fica nas mãos daqueles que vendem o peixe.

A isso há que acrecentar a falta de providências contra os crimes ambientais da Salinor, denunciados tantas vezes pelos pescadores: a empresa já destruiu milhares de hectares de mangue e joga águas mães (ou seja, águas com alta concentração de sais e minérios) no mar e no rio, matando centenas de peixes e siris.

Vila Industrial da Alcanorte: ameaças e falsas promessas

Os moradores do conjunto habitacional da Vila Industrial da Alcanorte, contruido para os funcionários da fábrica de barrilha (de propriedade mista da União e de uma multinacional holandesa) implantada em 1974 na entrada de Macau e que foi um fracasso completo, sofrem ameaças de despejo apesar de seu direito de posse adquirido por morar lá há muito mais do que 5 anos, o prazo previsto pela lei para que uma casa vire de propriedade de quem a ocupa. Mais uma vez, a Salinor está por trás disso tudo. De fato, depois da fábrica passar de mão em mão, vendida e revendida a grupos estrangeiros, o Governo Federal, através da SUDENE, liberou 100 milhões de reais para o penúltimo proprietário, o grupo norteamericano US Salt Peak Investiments, e renacionalizou a Alcanorte para vendê-la, há doze anos, ao Grupo Fragoso Pires.

Alguns moradores da Vila Industrial da Alcanorte foram despejados pela polícia e outros, como a senhora Marinalba Miguel de Oliveira, moradora do conjunto desde 1990, e seu vizinho Dedé, que mora ali desde 1983, receberam cartas de despejo por parte da empresa. Durante anos, eles estiveram pagando um aluguel do valor de 55 reais para um tal Fidelinho, apelido de Francisco das Chagas Medeiros, que afirmava ser funcionário da Alcanorte, apesar da empresa nã estar funcionando. Uma boa parte do conjunto habitacional está abandonado e os próprios moradores que ficaram se encarregam de limpar o matagal que invadiu as casas vazias. A maior parte deles não tem outro lugar aonde ir, caso sejam forçados ilegalmente a abandonar suas casas.

A senhora Marinalba contou a este jornal que, durante a campanha eleitoral de 2002, a então candidata a Governadora Vilma de Faria, em uma reunião na casa da coordenadora do Conselho de Moradores da Vila, prometeu que teria feito alguma coisa para estes últimos caso tivesse sido eleita. Já sendo Governadora, houve outra reunião no Porto de Armas e um Secretário de Vilma afirmou que ela não tinha feito nenhuma promessa aos moradores da Vila Industrial da Alcanorte porque nem sabia da sua existência.

A situação dos marisqueiros: uma afronta à dignidade humana

Hoje, em Macau, os mais pobres entre os pobres, aqueles que levam a vida mais miserável e cujos direitos e dignidade são violados da maneira mais bárbara e brutal são os marisqueiros. Eles moram ao lado do lixão da cidade, próximo de pocilgas: é nesta área povoada de moscas, porcos e cachorros que armam suas barracas para descascar búzios.

“A vida da gente é essa: embaixo de chuva, levando sol, sofrendo acidentes dentro da lama... É o pior dos sofrimentos, é matando mosquitos na cara, muriçocas no corpo todo, se coçando, se atolando dentro da lama, se cortando na ostra”, contou a Tecido Social dona Maria Santa Dantas, 35 anos, marisqueira. “Quando chega a maré a gente faz uma barraca no meio da lama, isso pra levar a vida, porque trabalho é difícil, o desemprego é grande. O dia que a gente vai pra maré a gente come, o dia que não vai, vai pra casa do vizinho pedir uma colher de açucar, uma colher de café, alguns dá, muitos não dá, e assim é a vida da gente”. O búzio é vendido a cerca de 3 reais por quilo, as cascas por 25 centavos. A renda média que entra na casa de dona Maria, que têm um esposo e três filhos, é de cerca de 15 reais.

Este trabalho envolve mão-de-obra infantil. A partir dos quatro anos, as crianças já realizam todas as tarefas: catar o búzio, descascar e vender. Mas já com 2 anos, as crianças sabem descascar e contribuem no trabalho.

Uma pesquisa realizada por estudantes de Pedagogia da UFRN de Macau testemunha as condições sub-humanas desta categoria profissional. Na barraca de um casal de marisqueiros com três filhos, respetivamente de 2, 3 e 5 anos, os estudantes constataram que “essas três crianças impressionam qualquer um com a agilidade na descasca do búzio”.

As condições higiênicas dos marisqueiros, que sofrem de envelhecimento precoce por causa do trabalho exaustivo na lama, são uma afronta à dignidade de qualquer ser humano. Dona Iracema se submeteu a oito cirugias no pulmão por causa da fumaça inalada durante o cozimento do búzio. As moscas que vêm do lixão invadem literalmente as barracas na hora da descasca. As crianças andam descalças na lama entre porcos e cachorros e brincam com o lixo, correndo graves riscos para a saúde.

O poder público, além de não oferecer as mínimas estruturas para que os marisqueiros desenvolvam seu trabalho em condições dignas de um ser humano, ameaça todo ano a derrubar suas barracas para que os turistas que visitam a cidade na época do Carnaval não “se incomodem” com aquela visão deprimente. Também diz todo ano que vai contruir um galpão, uma promessa nunca realizada. Ao invés de oferecer soluções para estas pessoas, o que querem é escondê-las.

Malversação e insulto à cidadania

Pelo visto, o prefeito de Macau, José Antônio de Menezes do PMDB, tem outras coisas em que pensar para poder se preocupar com os marisqueiros. Por exemplo, em como se safar dos mais de 20 processos que tem contra ele por malversação de dinheiro público. Por outra parte, como esperar que se importe com algo dos seus cidadãos se nem mora em Macau? Pois é: mora no edifício Chácara 402, decadente refúgio de uma elite carcomida na Avenida Deodoro da Fonseca, em pleno centro de Natal. Ningúem lhe disse que a lei obriga os prefeitos a morarem no município onde exercem o cargo?

Carcinicultura: grave risco ambiental

“Eu creio que está para se concretizar a denúncia que fiz na última audiência pública aqui em Macau, com relação ao problema ambiental gerado pela carcinicultura no Vale do Açu”, disse a Tecido Social Benito Barros, sociólogo e professor da UFRN de Macau. “Naquela época denunciei a colocação dos dejetos da carcinicultura em um local aberto e que, com a chegada da época das chuvas, existia o risco destes dejetos serem carreados para o Rio Açu, principalmente na parte próxima à captação da água, em Macau”.

Nos últimos dois meses, a situação se agravou com o crescimento do volume do rio: estes dejetos estão sendo despejados no seu leito pela chuva. Além disso, existe a possibilidade séria da quebra dos criadouros de camarão e também das lagoas de estabilização, onde são tratados os produtos químicos que são utilizados nos viveiros.

“Sou da opinião que isso vai trazer um enorme prejuízo para o estuário do Rio Açu”, afirma Barros, “principalmente se as fazendas de camarão forem atingidas pela enchente causada pelas chuvas dos últimos meses. Neste caso, teríamos no estuário uma espécie nova que não tem nada a ver com o habitat da região e que iria conviver com as espécies nativas, além de dejetos químicos das lagoas de estabilização, dois fatores combinados que causariam um seríssimo dano ambiental”.

Veja também:
- Começam em Macau as Caravanas de Direitos Humanos
- REDH-RN E CARAVANAS DE DIREITOS HUMANOS: Direitos Humanos em todos os municípios do RN

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