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Tecido Social
Correio Eletrônico da Rede Estadual de Direitos Humanos - RN

N. 001 – 15/10/03

ENTREVISTA

JOÃO PEDRO STÉDILE

"A Medida Provisória foi um ato de irresponsabilidade e burrice"

O principal representante da Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra participou do II Fórum Social Potiguar como palestrante de uma conferência intitulada "Impacto da ALCA para o Brasil e o Nordeste e resistências populares", que teve lugar no domingo 5 de outubro no Palácio dos Esportes de Natal (RN). Nesta entrevista que seguiu à conferência, Stédile critica o Governo pela medida sobre a liberalização da soja transgênica e pela inércia na realização da Reforma Agrária, fala da violência no campo, da questão indígena, dos presos do MST e da manipulação da mídia.

 

Por Antonino Condorelli

O que representa a Medida Provisória sobre a liberalização da soja transgênica

Por um lado, uma enorme irresponsabilidade, porque há dezenas de cientistas que falaram e escreveram alertando o Governo de que a questão dos transgênicos é muito perigosa e que, portanto, no mínimo devemos ter muita precaução. Depois uma burrice, porque o Palácio do Planalto caiu na cantinela do governador Rigotto e de meia dúzia de fazendeiros irresponsáveis do Rio Grande do Sul que foram lá e mentiram dizendo que não tinham sementes convencionais. O próprio Lula caiu nessa e disse em um programa de rádio que só aceitou o ditame da Medida Provisória porque não havia sementes convencionais. Isso é uma piada para o Rio Grande do Sul: tudo o mundo sabe que os silos das cooperativas estão cheios de soja convencional que poderia se oferecer aos agricultores. Essa declaração é burra também porque revela outra contradição: se não há sementes convencionais no mercado, significa que você com a Medida Provisória vai liberar a compra as transgênicas. Mas não: um dos artigos da Medida Provisória diz que é proibido comprar e vender sementes transgênicas, só se podem usar caso que se tenham em casa. Então nós esperamos - aliás, temos certeza porque a sociedade brasileira já vem se manifestando contra esta Medida Provisória - que ela seja derrubada no STF ou que seja remendada (na pior das hipóteses) no Congresso, mas que de todas as maneiras mantenhamos o Brasil livre dos transgênicos. Quem deve estar feliz da vida são os agricultores do Paraná e o governador Requião porque com esta burrice dos gaúchos, o Paraná e Santa Catarina - cujas legislações estaduais os estão mantendo livres de transgênicos - se encontram em melhores condições para vender toda a soja deles para a China. O governador do Paraná declarou que está fazendo acordos com a China para que as quinze milhões de toneladas de soja que esta compra do Brasil sejam todas do Paraná e do Mato Grosso do Sul.

Mas com a liberalização da soja transgênica no Rio Grande do Sul a soja convencional não vai ficar mais cara?

Não acredito. Acho que é a soja transgênica que vai ficar mais cara e a convencional vai continuar nos mesmos patamares de preços de hoje. A soja transgênica vai ficar mais cara porque a Monsanto já anunciou que os royalties vão variar entre 16 e 22 dólares a tonelada. Mas também por um segundo motivo. Até agora, a Monsanto manteve o seu herbicida no mercado sem aumento de preço durante três anos, para fazer acreditar que só comprando tal herbicida você economiza na produção. Mas assim que liberalizarem a soja transgênica no Rio Grande do Sul, com certeza a Monstanto vai aumentar o preço do herbicida, aumentando deste jeito os custos de produção. Fora o fato que estudos realizados na Argentina, na Inglaterra e nos Estados Unidos revelaram que a médio prazo (aproximadamente cinco/dez anos) a tendência da produtividade física da soja transgênica cai em relação à convencional.

Até agora, o Governo Lula assentou apenas 3.000 famílias. Como avalia a atuação do Governo com relação à Reforma Agrária?

O Governo Lula é nosso amigo e o MST é parceiro dele. Nós acreditamos que o Governo Lula quer fazer a Reforma Agrária. No entanto, até agora ele não fez nada. Apenas 2.500 famílias foram assentadas em assentamentos pequenos e indubitavelmente isso é uma vergonha para o Governo. Nós esperamos que até o final do mês o Governo apresente para os movimentos e para a sociedade o Plano Nacional de Reforma Agrária com as novas diretrizes para implementar um processo de Reforma Agrária que seja massivo e de qualidade e que afete à concentração da propriedade da terra no Brasil, atingindo sustancialmente aos grandes latifúndios acima de 2.000 hectares. Nossa expectativa com relação ao Governo Lula é que, com o Plano Nacional de Reforma Agrária, ele se recomponha, pois na prática nós perdemos um ano.

O aumento das organizações de fazendeiros que declararam que se defenderão das ocupações com a violência e o ressurgimento do fenômeno das milícias armadas representam o sinal de um iminente conflito armado no campo?

Estas novas siglas que apareceram são inexpressivas, não representam o conjunto de fazendeiros do Brasil. Elas são apenas expressões de alguns grupos radicais que querem usar a violência para parar a Reforma Agrária. Nós temos a esperança e a certeza de que se eles extrapolarem os limites da lei a Polícia Federal vai agir com rigor (pelo menos essa é a promessa do Ministro da Justiça). Na prática, a única coisa que estes grupos estão fazendo é usar os meios de comunicação para criar uma espécie de paranóia: que o campo está em conflito, que há tensão, que vai correr sangue, etc. Na verdade, é muito mais uma estratégia de marketing para confundir a opinião pública e deslocar a Reforma Agrária de uma necessidade para resolver o principal problema do Brasil que é o desemprego para a idéia de que ela é sinônimo de violência, de mortes, de conflito. Por isso, nós não damos nenhuma importância a esta meia dúzia de fazendeiros radicais. É um assunto de polícia, não de Reforma Agrária.

Porém, desde o início do ano até hoje morreram aproximadamente 50 trabalhadores rurais nos acampamentos e assentamentos. O Governo tem alguma responsabilidade, pelo menos quanto à omissão de intervenção, nisso?

Se morresse só uma pessoa, isso já nos daria o direito de ficar indignados. Todos os meses, morrem milhares de crianças de fome no meio rural brasileiro e ninguém fala nada. Evidentemente que houve nesse ano um aumento no número de vítimas de assassinato no campo, e nós lamentamos. Mas a estatística por si só ainda não é prova de que a violência no campo se transformou em uma situação insustentável. Primeiro porque, na prática, das 52 vítimas de assassinato os trabalhadores rurais foram 24, os restantes 28 foram indígenas que morreram em situações específicas de conflitos de terra, ou seja, em situações separadas. Todos os 24 trabalhadores foram vítimas da ação de pistoleiros, o que de fato revela a ação dos radicais do campo, mas com certeza não podemos cair nessa paranóia de que então o campo está em pé de guerra. A responsabilidade específica disso é desses grupos marginais de fazendeiros que ou contratam pistoleiros para praticar crimes ou criam essa linguagem belicista na imprensa que tem como objetivo fazer com que o fazendeiro ignorante lá do interior no primeiro conflitozinho ache que vai resolver tudo com as armas na mão.

O MST vai elaborar alguma estratégia de auto-defesa contra as milícias armadas dos fazendeiros mais radicais?

A doutrina e a ideologia do Movimento Sem Terra é que a nossa segurança consiste no número de famílias organizadas. Quanto mais gente tivermos organizada em uma ocupação de terra, em um acampamento, em uma manifestação menor será a probabilidade de que haja violência. O que protege o povo é o número de pessoas com quem você pode contar em uma atividade, porque aí se altera a correlação de forças e o fazendeiro não é besta: se há uma ocupação com mil famílias, se há um acampamento com mil famílias ele sabe que não vai despejá-las com dois ou três pistoleiros, que nem adianta mandar matar ao líder porque a resistência vai continuar. Nossa doutrina é essa, nós somos contra a violência no campo, somos contra o uso de armas como instrumento de resolução dos conflitos, tanto pelos fazendeiros como pelos Sem Terra. É por esta razão, inclusive, que o projeto de lei que está no Congresso que proibe qualquer comércio de armas é de autoria do nosso advogado, o Deputado Luis Eduardo Greenhalgh.

Há um assunto de que se fala pouco, mas é uma das principais bandeiras de luta da Via Campesina: a questão indígena. Desde que Lula tomou posse, houve alguma mudança estrutural nas políticas pelos povos indígenas?

Não. É outra burrice do Governo que nós criticamos abertamente. Quero deixar uma coisa clara para a opinião pública porque temos que ser honestos com a realidade: eu não acredito na má vontade do Governo, mas atribuo a falta de mudanças na questão indígena à ignorância e falta de competência administrativa. É o mesmo cenário da Reforma Agrária: vocês notaram que, coincidentemente, tanto o Presidente da FUNAI como o Presidente do INCRA já foram mudados? Na questão indígena o Governo perdeu tempo: ele tem que consolidar as reservas indígenas imediatamente, como prioridade de Governo. Aproveito este espaço para mandar uma mensagem urgente ao Governo Lula: por favor, normatize o quanto antes a reserva Raposa do Sol, que é um foco de conflitos que não têm pé nem cabeça. Se a sociedade brasileira, nestes quinhentos anos que se formou como Brasil, tem uma dívida histórica é com os povos indígenas, aí não há discussão. Todas as terras consideradas terras indígenas - é uma questão de honra, não só pelo Movimento Sem Terra mas pelo povo brasileiro - têm que ser legalizadas quanto antes para que estes povos reconstruam a sua cultura e tenham condições de vida dignas deste nome.

Como estão agindo com relação as prisões decretadas para alguns membros do MST?

Nós estamos enfrentando a luta pela libertação de nossos presos políticos (que são 19, mais outros 22 que não estão presos mas contra os quais foi decretada prisão preventiva, portanto não podem voltar para suas casas) atuando em três frentes. A primeira é a frente jurídica. Nossos advogados estão utilizando todas as medidas jurídicas disponíveis, desde as liminares de primeira instância até ao Supermo Tribunal de Justiça onde já está o caso do Mato Grosso do Sul. A segunda frente é a frente política. Nós denunciamos para a sociedade e mostramos ao Governo (não só ao Governo Lula, mas aos Governos dos Estados onde nossos companheiros estão presos) que se trata de perseguição política, porque em todos os casos (com a exceção da Paraíba, que é um conflito onde houve mortos) a condenação é porque eles pertencem ao Movimento Sem Terra. Ai o juiz, extrapolando a leitura jurídica em vigor, interpretou que o MST é uma quadrilha: isso não tem base legal nenhuma. Inclusive há um acordo no Superior Tribunal de Justiça do ex Ministro que virou jurisprudência: ele determinou que toda ocupação de terra feita por um movimento social para pressionar pela Reforma Agrária não se pode classificar como esbulho possessório, mas como luta social. Portanto, seus integrantes não podem ser classificados como criminosos, porque estão fazendo uma pressão social. Isso já é jurisprudência na nossa legislação, por este acordo publicado e registrado no Superior Tribunal de Justiça. Mas o juiz lá na base, porque é amigo de uma fazendeiro ou porque é amigo dos políticos locais, interpreta a lei de uma maneira errada (sabendo que depois vai ser derrubado nos tribunais superiores), apenas como perseguição política. É o caso do juiz Atis de Oliveira lá no Pontal, que já decretou 28 prisões contra as nossas lideranças da região e dessas nós já derrubamos no Superior Tribunal de Justiça 25. Temos certeza de que os outros três, quando chegarem na última etapa na instância superior, também vão ser libertados. O que caracteriza as prisões contra lideranças e militantes do Movimento Sem Terra é o fato de serem pura perseguição política: é isso que queremos que a opinião pública compreenda. Alguém no Brasil já foi preso por porte de armas, como aconteceu com José Rainha? A semana passada os fazendeiros fizeram uma manifestação em uma estrada do Mato Grosso do Sul, a Polícia Federal prendeu na mão de um fazendeiro - marido da prefeita local - um fuzil AR-15, os jornalistas fotografaram e assistiram... e se concluiu nisso mesmo, nem foi aberto inquérito. Agora, no caso de José Rainha, pela possibilidade de que a arma que estava no carro - que não se sabe se era dele, se era do motorista ou quem botou lá - fosse do líder Sem Terra, o juiz condena ele a quatro anos de prisão sem direito a recorrer em liberdade. Vocês como chamam isso, senão perseguição política?

Mas, na sua opinião, trata-se de uma perseguição orquestrada?

Não, ela não tem orquestração, apenas uma fonte ideológica de classe. O fazendeiro lá na base que tem uma fazenda em conflito vai tentar ganhar o juiz local... e quando não é o juiz é o delegado, o promotor, etc. Mas não é uma articulação e - repito, para não cairmos na outra paranóia - o poder judiciário no Brasil não é contra a Reforma Agrária nem contra o MST. Tanto é que, como acabei de dizer, nos tribunais superiores nós temos ganhado todos os processos.

Qual é a sua leitura da criminalização do MST realizada pela mídia brasileira?

É claro que na imprensa brasileira, como é um monopólio, perpassem toda linha editorial os interesses ideológicos da classe dominante. Em alguns casos, como a RBS do Rio Grande do Sul e o Estadão, se você lê os editoriais eles se comportam como um partido ideológico da direita, usam o jornal para orientar a sua militância, para ter uma inserção política na sociedade. Como os partidos, no Brasil, não têm ideologia, ficam mudando de galho em galho sem mais nenhum compromisso doutrinário, na nossa sociedade alguns veículos da imprensa burguesa acabaram sustituindo o papel de partido ideológico da direita. Outro aspecto é que evidentemente nós vivemos em uma sociedade contraditória e esta contradição repercute nos meios de comunicação. Em muitos casos, por um lado temos a linha editorial do jornal e por outro lado matérias e artigos que refletem a opinião do jornalista, consideravemnete diferente. Um terceiro aspecto é que um dos problemas da imprensa escrita do Brasil é que os editores editorializam as matérias e as reportagens. O enviado da Folha de São Paulo no Fórum Social Potiguar faz uma boa matéria sobre este evento, mas quem vai botar a manchete, o chefe dele que não esteve aqui, que não sabe o contesto, vai colocar um título manipulatório que não tem nada a ver nem sequer com o conteúdo do artigo. Uma vez o Estadão botou como manchete: "O MST planta transgênicos". A realidade era, como todos sabemos, que três assentados, iludidos, plantaram transgênicos e por esta razão foram imediatamente expulsos do Movimento. A RBS então é um escândalo, naquele episódio no Rio Grande do Sul que foi uma palestra simplória eles pegaram minhas palavras, as distorceram completamente com o objetivo de criar uma confusão na imprensa. Dois dias depois eu estava em Sergipe, alguns companheiros correram para a casa onde estava hospedado para me avisar que fugisse logo do Estado porque um jornal daí de que nem me lebro o nome colocou uma manchete assim: "Justiça pede prisão de Stédile". Quando um militante leu o jornal local correu me avisar para que fosse embora senão iam me prender. Ai você vai ler na própria matéria que um advogado da FARSUL entrou na Procuradoria Geral da Justiça pedindo que esta decretasse a prisão para mim, mas a manchete já foi "Justiça pede prisão para Stédile". São estes erros vergonhosos da profissão que nos deixam mais indignados.

Veja também:
- Violência contra uma mulher no Sindicato da Lavoura de Mossoró

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