Coleção Memória das Lutas Populares no RN
Acervo Impresso

Moacyr de Góes

Livros e Publicações

1964. Aconteceu em Abril
Mailde Pinto Galvão, Edições Clima 1994

 

Dedicatória

Apresentação - Maria Conceição Pinto de Góes

Orelha - Nei Leandro de Castro

01 – O Golpe Militar em Natal

02 – 1o. de Abril

03 – Invasão da Prefeitura

04 – 2 de Abril: Prisão do Prefeito

05 – O Impeachment do Prefeito

06 – Câmara elege prefeito

07 – Interrogatório

08 – Comemorações pelo golpe

09 – Novas prisões

10 – Exposições de livros

11 – Governador regulamenta Ato Institucional e nomeia Comissão de Investigação

12 – Depoimento na Comissão Municipal

13 – Diretoria de Documentação e Cultura

14 – Governo do Estado reafirma sua integração com a obra revolucionária

15 – Continuam as prisões

16 – Os que não foram presos

17 – As últimas prisões

18 – Depoimento com Veras

19 – Depoimento com o capitão Lacerda

20 – Confinamento dos presos

21 – Fernando de Noronha

22 –Conclusão das investigações

24 –Dois anos depois

25 – Os que não sobreviveram

 

 

 

Dedicatória

ESTE LIVRO,

Dedicado a Dilma, Cláudio, Roberto, Marcelo, Beto e Raquel (filha, marido, genro e netos), é uma homenagem a todos os perseguidos pela ditadura militar de 1964.

É igualmente, a oportunidade para lembrar e agradecer os gestos de solidariedade que todos nós, os “subversivos”, recebemos de pessoas que participaram da nossa história.

Agradeço, em especial, a meu pai (in memoriam), à minha mãe, irmãos e cunhados, silenciosos e dignos no sofrimento, pela compreensão e apoio.

Aos amigos que, em muitas tardes, foram presenças emocionadas e inesquecíveis nas visitas à prisão.

Aos que colaboram na realização deste livro: poeta Nei Leandro de Castro, que o enriqueceu, oferecendo a capa e sugestões; aos professores Willington Germano, pela valiosa contribuição oferecida, e Márcia Muniz, pelo apoio técnico à edição do texto.

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Apresentação

O livro de Mailde é um grito abafado de quase trinta anos. É um grito cheio de sentidos, pedaços do sofrimento de uma mulher cujo tema principal é a continuidade ou, se quiserem, o recomeço. Conduz-nos a um tempo de sofrimento, mas, também, de muita alegria, visto que foi o tempo da possibilidade de concretizar um sonho, o tempo de nossa juventude. A ditadura amadureceu a maioria, como se diz, o carbureto.

Num certo sentido, livrou-nos da transição via mediocridade que a “mesmice” pode acarretar. Carregamos dentro de nós um sentimento de vitória, não de derrota. A morte esteve presente, é verdade. Levou amigos belíssimos que poderiam estar conosco. Tudo bem. Mas a morte, em certas condições, não significa o fim. Estão conosco, e mais, estão em todas as ações e lutas da sociedade brasileira em defesa do homem. Na práxis política, na cultura, portanto, em todas as manifestações sociais.

Não se sabe por onde andam os outros. Aqueles que se colocavam às paredes, com medo do contágio da subversão, que fizeram as exposições do material apreendido nas escolas, nas bibliotecas públicas e particulares, nos sindicatos. Convivem com o lodo.

Mailde, nascida no Sertão do Nordeste brasileiro, região semi-árida, onde os meninos têm toda a liberdade do mundo e as meninas estão sempre acompanhadas, nasceu do lado de cá da vida. Podia ter filha de um morador, mas era filha do dono da terra. Ali, a infância é muito dolorosa. As histórias de assombração são as cantigas de ninar. O lado gostoso são os banhos de açude, onde as meninas nuas sentem no corpo o sol e água. Perdeu muito cedo este prazer, pois ao ser internada no Colégio das freiras, o banho de chuveiro era vestida.

O caminho das mulheres ao espaço público é quase sempre acompanhado de sofrimento, discriminação e violência. Sair do espaço privado, do seio da família protetora, ocupar uma função no Estado em expansão, desempenhando “função de homem”, pode torná-las o alvo dos vigias permanentes da moralidade social. Mais ostensiva pode tornar-se a vigilância se esta mulher não carrega ao seu lado a sombra do marido protetor. Qualquer atitude não entendida, que possa pôr em risco a salvação das aparências ou criar um novo modelo de comportamento, assusta homens e mulheres – por motivos diferentes, é claro.

O casamento, assumido muitas vezes na adolescência, significava uma condenação “ad aeternun”. Não importavam as diferenças, o desamor, o desespero que estas situações acarretavam. O “caritó” também podia significar uma dependência afetiva e emocional dos parentes, quando não uma dependência econômica. A separação do casal, portanto, expressava geralmente o abandono da mulher, deixada na casa do pai.

Aos 19 anos estava Mailde de “volta” à casa do pai, com uma filha de dois anos. As tentativas de retorno aos estudos, interrompidos pelo casamento aos quinze anos, foram inúteis. As escolas temiam o ingresso de uma jovem mulher descasada. Em casa ouvia rádio (todos os noticiários da Rádio Nacional) e voltou-se para os livros. Por uma feliz coincidência, o primo e amigo de seu pai, professor Antônio Pinto de Medeiros, escritor e poeta, colocou em suas mãos uma biblioteca de clássicos, responsável por uma formação humanística que nenhuma escola da cidade poderia dar.

Perdeu-se no caminho sem volta da inquietação intelectual; à solidão de mulher somou-se a solidão do intelectual.

Aquela família do sertão, parte de uma paisagem dura e apaixonante, onde os homens e mulheres carregam nos olhos secos a imagem de cacimbas esgotadas que se confunde com cipós e juremas retorcidas, aprendeu a engolir e depois e respeitar e defender aquela mudança em seus hábitos. Não se comentavam as mudanças. Economizavam-se as palavras. Não se pode ignorar que a dureza do solo transmitiu-se ao comportamento dos homens. Há muito sentimento mas poucas palavras. Por isso as palavras são tão valiosas. Acreditam que sua força está em não deixar comover. Um toque físico ou de uma palavra pode ser fatal. Qualquer descuido pode provocar uma tempestade de sensível ternura. Se isto ocorre estão perdidos. Essa é a luta maior, o grande inimigo. Neste sentido, a vigilância tem que ser em todos os momentos. Há sempre uma possibilidade de se escapar pelo riso, claro, a grande arma para fugir das situações limites.

A presença de Mailde foi sentada por duas gerações de intelectuais. A sua própria, de Newton Navarro, Leonardo Bezerra, João Ururay, Moacyr de Góes, Zila Mamede, Geraldo Carvalho, Cléa Bezerra, Nísia Bezerra, Myriam Coeli, Augusto Severo Neto, Marcelo Fernandes, Dorian Gray, Eudes Moura e posteriormente a de Sanderson Negreiros, Luís Carlos Guimarães, Afonso Laurentino Ramos, Nei Leandro de Castro, Moacyr Cirne, Paulo de Tarso, Iaponi Araújo, Tomé Filgueira, Leopoldo Nelson, Dailor Varela, Lúcia Beltrão.

No início da década de sessenta, a maioria desses nomes estava no noticiário cultural e político da cidade, Mailde já estava à disposição da Prefeitura Municipal de Natal, à frente da Diretoria de Documentação e Cultura, da Secretaria de Educação, Cultura e Saúde.

O Rio Grande do Norte tem uma história bela e rica em singularidades. Foi nele o primeiro voto feminino, onde pela primeira vez uma mulher exerceu um cargo executivo à frente de uma Prefeitura, a criação de uma escola para a formação de donas de casa (Escola Doméstica de Natal), a criação da primeira escola de aviação civil, a primeira tentativa de um governo socialista. Por outro lado, a presença dos soldados norte-americanos na segunda guerra mundial em Natal, certamente alterou os hábitos da pequena cidade, embora aparentemente tudo parecesse no lugar.

As unidades de ensino universitário, Faculdade de Direito, de Filosofia, de Medicina, de Odontologia e outras possibilidades a concentração na cidade de moças e rapazes que começavam a descobrir os problemas sociais do Brasil. Hélio Vasconcelos, Geniberto Campos, Josemá Azevedo, Danilo Bessa, Maria Laly Carneiro, Diva da Salete Lucena, José Arruda, Francisco Ginani, Gileno Guanabara, Edísio Pereira, Leônidas Ferreira, João Faustino, Marcos Guerra, Nei Leandro de Castro, Berenice Freitas, Tereza Braga, Juliano Siqueira viviam com intensidade esse momento político. Alguns articulavam-se ao Partido Comunista Brasileiro, que tinha como seu principal formulador político o professor Luiz Ignácio Maranhão Filho. Outros, recém-saídos da Juventude Universitária Católica, assumem a luta pelo socialismo e fundam a Ação Popular. Neste contexto, a equipe da Prefeitura com o primeiro prefeito eleito de Natal - composta por profissionais que estavam ingressando na vida pública – Ticiano Duarte, Roberto Furtado, Moacyr de Góes, Luiz Gonzaga dos Santos, Omar Pimenta, Carlos Lima, Celso da Silveira, Francisco das Chagas Oliveira, incorporava uma mulher, Mailde. Essa equipe, sob a liderança de Djalma Maranhão, articulada ao movimento social urbano nacional, abre para esses jovens inúmeras possibilidades de atuação.

O conceito de cultura, nos trabalhos de Moacyr de Góes, Paulo Freire, Paulo Rosas, Germano Coelho, Norma Coelho, Josina Godói, amplia-se e incorpora novos significados. Toda ação humana é um ato cultural, portanto, a ação política é também um ato cultural.

O homem de qualquer classe social detém um saber. Pode não ser um saber sistematizado, erudito, mas é um saber adquirido no seu cotidiano de trabalho, ficando em sua pele curtida. O saber popular. A cultura popular. Há uma sede de conhecimento, uma necessidade de troca de saberes.

A leitura não se limita aos textos de Marx e Lenin, a poesia vem junto. Vinícius de Moraes, João Cabral de Melo Neto, Pablo Neruda, Drummond, Cecília Meireles, Ledo Ivo.

Estão todos embriagados de generosidade, de disponibilidade. Cristãos e comunistas, comunistas e cristãos. E os independentes, não organizados em partidos políticos. Ocupam os acampamentos da campanha “De Pé no Chão Também se Aprende a Ler”, ocupam as “Praça de Cultura”, o “Teatro do Povo”, ocupam as bibliotecas da DDC, arrastam-se para as escolas e praças, levam para os palanques da Prefeitura os grupos das danças folclóricas que existem na periferia da cidade, ocupam os sindicatos, onde discutem os problemas referentes às reformas necessárias à extinção da miséria, e às reformas que possam democratizar a sociedade brasileira. Discutir com um camponês a reforma agrária mas também ouvir dele a sua opinião sobre a participação dos estudantes nos Conselhos Universitários.

Descobriram todos a importância do uso da palavra, grávida de significações. Às vezes os remanescentes de “35”, como Djalma, assustavam-se com tanto atrevimento e com tantas certezas. Àquela altura a ação daqueles jovens era carregada de paixão. Mas que não se pense que era um piquenique. Que não se pense que não se conheciam os riscos que poderiam correr por defenderem “a terra para quem nela trabalha”. Só que não acreditavam nas transformações também pela via pacífica, pela educação, pela prática da liberdade.

Houve uma grande participação de mulheres na atuação política, criando os comitês nacionalistas. Nenen Pacheco assumia a liderança. Havia em torno do trabalho político-cultural da Prefeitura algumas mulheres que contribuíam, mesmo que discretamente. Entre estas, a mulher do vice-prefeito, Lourdinha dos Santos, Iara Pimentel. Jacira Furtado, Dora Furtado, Dária Maranhão e Nalda Medeiros. O cotidiano da cidade mudou. A vida daquelas pessoas estava diferente. Assumiram uma nova dimensão. Os fins de semana não se esgotavam na sessão das 18 horas do cine Rio Grande e na leitura dos jornais do Rio. Os momentos de melancolia, da sensação de perda real ou imaginária de alguma coisa desejada, sumiam. Já não sobrava tempo no final de cada dia.

Ah, Cuba parecia tão perto!

De repente, setores das forças armadas saem em defesa das elites empresariais e da propriedade privada. Um Golpe de Estado contra as reformas, contra as mudanças.

As prisões se sucederam. As comissões de inquérito multiplicam-se: no Estado, no Município, na Universidade, nas Repartições Federais. Há muita perplexidade, muito medo. Mas há muita dignidade no sofrimento.

A boçalidade dos interrogatórios provoca uma sensação de espanto. Percebe-se e a história já provou, que esses policiais torturadores são os guardiões de todos os sistemas, mas não são chamados a sentar à mesa, ficam em baixo da mesa, recebem as sobras como os cães e os porcos. São os Carlos Veras, os Domingos e os capitães Lacerda.

Pela primeira vez em Natal, uma prisão militar assiste à entrada de mulheres. Por coincidência nenhuma tem a proteção de marido. São acusadas de pôr em risco a segurança da Família e da Propriedade Privada, como bem diz a nota oficial do Exército. Mudaram a fisionomia da cidade e acrescentaram um bel capítulo à história da cidade do Natal e da luta das mulheres em defesa de direitos iguais.

A velhinha de Ponta Negra, que vinha vender goma toda semana, estava sempre a repetir com nostalgia: “os tempos são outros, as constelações estão mudadas. Pernambuco não é mais aquele”. Ninguém perguntava o porquê daquele lamento. Hoje eu compreendo.

E Cuba?

Ah, Cuba parece muito distante!

Rio, 31 de março de 1993

Maria Conceição Pinto de Góes

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Golpe na Memória

Por todo o país, convivendo bem ou mal com os seus traumas, há centenas de vítimas do golpe de 64 com muita coisa para contar daqueles tempos de escuridão e terror. O ideal seria que todos pudessem no papel a experiência vivida e se formasse uma imensa bibliografia, para que não prescreva jamais o nosso direito de indignação.

Em Natal, começam a surgir os primeiros livros sobre a repressão de 64. Moacyr de Góes, no seu “Sem Paisagem”, registra a provação por que passou sob a paranóia verde-oliva.

Agora, Mailde Pinto Galvão traz a público sua via-certa sua via-crucis pelos quartéis e interrogatórios.

Escrever memórias da prisão é escalavrar cicatrizes, meter o dedo na ferida, reviver traumas. A lembrança de um interrogatório no vem tão forte que pudemos sentir o hálito do torturador. Logo, o mérito maior de quem põe em livro essas recordações é não deixar que o passional tome conta da narrativa; é não criar versões para os fatos; é não permitir que o ego se sobreponha aos nossos medos.

Este 1964 – Aconteceu em Abril é um exemplo de narrativa equilibrada. Mailde, com a sensatez e a dignidade que os amigos tanto admiram nela, escreveu um depoimento que enriquece a bibliografia sobre o assunto. O livro pode ser dividido em duas partes. A primeira é um levantamento do que ocorreu em Natal, no início de abril de 1964, com pesquisas nos jornais da época que mostram apoios oficiais ao golpe, o clima de terror que se instale, as primeiras prisões.

As memórias que ocupam a segunda metade do livro são um mergulho na zona sombria em que se encontram as lembranças mais dolorosas da autora. Mailde não se recusa a trazer à luz o sofrimento e a angústia dela mesma e de suas companheiras de cela. Os detalhes não foram esquecidos. Os torturadores estão lá, com suas tramas e seus nomes próprios. A tragédia de Djalma Maranhão é relatada num tom que clama por uma biografia urgente daquele que morreu de amor por Natal, desesperado no exílio.

Nenhum sofrimento foi posto à margem Mailde não esqueceu de nada. O seu livro pede tacitamente para ninguém esquecer os violentadores da nossa liberdade.

Rio de Janeiro, abril de 1993

Nei Leandro de Castro

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O Golpe Militar em Natal

Este relato de fatos ocorridos em 1964 tem a pretensão de contribuir para o conhecimento da história do golpe militar no Rio Grande do Norte, focalizando, preferencialmente, os acontecimentos que atingiram a Prefeitura Municipal de Natal, nos quais fui envolvida, com alguns companheiros de trabalho do setor de educação e cultura do município.

Por dificuldades emocionais, muitas vezes tive que interromper esta reconstituição; mas, eu vivi, sofri e sobrevivi à perseguição da ditadura. Sinto-me, pois, moralmente comprometida a tirar da escuridão as minhas lembranças reprimidas.

Logo nas primeiras horas da manhã do primeiro dia daquele abril, a tragédia da ditadura brasileira foi invadindo a vida dos habitantes da cidade de Natal.

A cidade, com aproximadamente duzentos mil habitantes, assistiu, indefesa, à ocupação militar por tropas do Exército, à perseguição, prisão, tortura, exílio e morte de filhos que a amavam.

Em 1964, o Rio Grande do Norte dividia-se, politicamente, entre as oligarquias conservadoras e rivais do senador Dinarte de Medeiros Mariz e do governador Aluízio Alves. O Partido Comunista Brasileiro encontravam-se na ilegalidade e sobrevivia no Estado pela liderança do professor Luiz Maranhão Filho e do médico Vulpiano Cavalcanti.

Como terceira força, surgia o prefeito Djalma Maranhão, político da esquerda nacionalista, que denunciava, permanentemente, a interferência do imperialismo americano na vida nacional. Além de denunciar, Djalma incomodava com uma administração municipal democrata popular de esquerda, integrada com as lideranças comunitárias, e executava um programa de alfabetização e conscientização político-cultural.

Aluízio Alves e Djalma Maranhão foram eleitos governador e prefeito, no ano de 1960, em aliança política, apoiados por uma coligação de partidos – Partido Social Democrata (PSD), Trabalhista Brasileiro (PTB), Democrata Cristão (PDC), Trabalhista Nacional (PTN), e uma dissidência da União Democrática Nacional (UDN). A coligação, denominada “Cruzada da Esperança”, derrotou o candidato do governador Dinarte de Medeiros Mariz, deputado federal Djalma Aranha Marinho, pertencente à União Democrática Nacional. Em poucos meses de administração, governador e prefeito começaram a divergir e a dividir a opinião pública.

O governador possuía prestígio e força popular considerados inabaláveis e administrava tranquilamente, calcado nos recursos financeiros oriundos do programa americano para a América Latina, “Aliança para o Progresso”.

Nos anos sessenta, o governo do presidente Kennedy investiu milhões de dólares em alguns Estados brasileiros. O pesquisador e escritor Moniz Bandeira escreve, na página 108 de seu livro “O Governo João Goulart”:

“O comportamento da Embaixada dos Estados Unidos, entretanto, assumira o caráter de provocação, corrompendo e aliciando governadores de Estados e prefeitos de municípios, mediante utilização de verbas da Aliança para o Progresso, com o objetivo de formar, ela própria, uma clientela dentro do Brasil em oposição ao governo João Goulart.”

O prefeito, com bastante dificuldade econômica, realizava a sua administração, priorizando os programas de alfabetização popular, conscientização política e democratização da cultura, que eram executados através da campanha “De Pé no Chão Também se Aprende a Ler” e da Diretoria de Documentação e Cultura.

A campanha de alfabetização, que incluía nos seus quadros desde professores primários, lideranças estudantis e professores universitários, coordenados pelo então Secretário de Educação, Cultura e Saúde, Professor Moacyr de Góes, mostrou-se, desde cedo, uma solução vitoriosa, obtendo aceitação e repercussão nacional.

Um boletim da revista UNICEF, número 27/62, comprova a validade e seriedade da campanha, como solução para a erradicação do analfabetismo no terceiro mundo.

Enquanto o governo do Estado usava dólares americanos em seus programas de educação, a Prefeitura, com seus recursos próprios, oferecia escolas para a alfabetização das crianças carentes de Natal e divulgava o slogan ESCOLA BRASILEIRA COM DINHEIRO BRASILEIRO.

As divergências políticas radicalizaram-se, trazendo para o ambiente do Estado as mesmas lutas que, no início dos anos sessenta, dividiam o país entre forças de direita e de esquerda.

O prefeito Djalma Maranhão, proprietário de um pequeno jornal – “Folha da Tarde” – deficitário e de modesta circulação, divulgava diariamente seu pensamento político nacionalista e anti-imperialista.

Deflagrado o movimento golpista, o prefeito assumiu a defesa da democracia, bem no estilo decidido de seu temperamento e de suas convicções políticas.
Comunicou ao comando militar local a sua posição e fez publicar, nos meios de comunicação, uma nota de apoio ao Presidente da República, Sr. João Goulart, na condição de presidente legitimidade eleito, e às instituições democráticas declarando que a Prefeitura de Natal tornava-se, a partir daquele momento, “o quartel-general da legalidade e da resistência.”

A ênfase da nota com a designação da prefeitura como “QG da legalidade”, num momento em que as tropas já que se encontravam mobilizadas, irritou os militares e foi interpretada como uma ameaça de mobilização para a resistência popular.

Acontecia, no entanto, que a Prefeitura, como “QG de legalidade”, era apenas o lugar onde se encontrava algumas lideranças estudantis, sindicais e assessores do prefeito angustiados por notícias que chegavam, raras e censuradas, através de um rádio portátil, ao gabinete do prefeito.

O governador Aluízio Alves, dispondo de outros meios de comunicação e mais bem informado sobre o desenrolar da crise, fez divulgar na “Tribuna do Norte” a seguinte nota:

“AO POVO

O governador do Estado, está acompanhado pelos meios a seu alcance, os acontecimentos que se desenrolam no sul do país, a partir da crise que tão profundamente atingiu a disciplina da Marinha, e, ontem, a guarnição do Exército em Minas Gerais.

Pede ao povo que se conserve calmo, evitando atos ou manifestações que aprofundem as divisões desta hora em que todos os esforços devem ser feitos para a restauração da paz e preservação da democracia.

Todo o Estado está em ordem e espera o governador que assim se mantenha no resguardo da tranquilidade das nossas famílias, que deve pairar acima das paixões das pessoas e grupos.

Tudo fazer para solução dos seus problemas, pelas reformas pacíficas e democráticas, pela unidade e respeito às forças armadas, pela consolidação da ordem democrática, pela paz do povo, para o trabalho e para o progresso.

- 04 – 64 – 1 hora da madrugada

Aluízio Alves.”

No dia seguinte, o governador divulgou outra nota oficial, adiante transcrita, de apoio ao golpe militar e às forças armadas.

Definindo-se pelo apoio ao golpe, o governador assumiu com os militares o poder da ditadura no Estado e, usando o Ato Institucional com as leis de exceção, atribuiu-se o direito de, paralelamente aos militares, proceder investigações e prisões que já estavam sendo efetuadas sob a responsabilidade do major do Exército Heider Nogueira Mendes, na qualidade de presidente da Comissão Geral de Investigações no Rio Grande do Norte, substituído, depois, pelo capitão Ênio de Albuquerque Lacerda.

O governador formou também sua Comissão de Investigações e contratou, no estado de Pernambuco, dois policiais especializados, a quem concedeu poderes absolutos e excepcionais, com toda a mordomia oferecida aos hóspedes oficiais do governo do Estado. Não se tem notícia de outro governador que constituísse uma Comissão de Investigação paralela, com poderes especiais para processar, prender e encarcerar os supostos subversivos, como aconteceu no Rio Grande do Norte.

Os policiais Carlos Moura de Morais Veras, com treinamento no FBI, nos Estados Unidos, e José Domingos da Silva, experientes e eficientes, usaram, com muita competência, métodos semelhantes aos praticados pelos nazistas da segunda guerra mundial.

Com a Comissão Geral de Investigações instalada pelos militares, mais duas comissões ditas de “alto nível”, criadas pelo governador, e as outras implantadas em cada repartição pública estadual, municipal e federal, armou-se a maior rede de investigação policial militar de toda a história política do Rio Grande do Norte.

Na condição de Diretora da Diretoria de Documentação e Cultura da Prefeitura de Natal, tive, logo nos primeiros dias de abril de 1964, a minha residência invadida pelo Exército, fui levada a depor diante de uma comissão militar no quartel do 16° Regimento de Infantaria, (16° RI) durante uma tarde inteira, e liberada, em seguida, sem restrições. Em maio, fui intimada a depor na Comissão de Inquérito constituída pela Prefeitura Municipal, presidida pelo Bacharel Rodolfo Pereira e composta por mais três oficiais militares, sem que saísse de lá nenhuma solicitação de prisão.

Em 18 de junho, no entanto, fui levada em uma viatura do governo estadual que se encontrava à disposição do delegado Carlos Veras e dirigida por um funcionário do Estado, o qual informou que eu estava sendo convocada a depor com o mesmo delegado. Com essa informação fui conduzida aos cárceres do 16° RI.

Decorridos mais de vinte dias, fui interrogada exaustivamente sob tortura psicológica pelo delegado Carlos Veras, que me fez voltar à cela com a ameaça de ser transferida para as prisões de Recife. Passados alguns dias, o capitão do Exército, Ênio Lacerda ordenou que me trouxessem à sua presença, interrogou-me novamente e me liberou, informando que a companheira de prisão Diva Lacerda, que já fora, como eu, interrogada pelo delegado Veras, mas que ainda não havia passado pela sua comissão, seria libertada no dia seguinte.

Diante disto, não é possível ignorar que o depoimento prestado ao delegado Carlos Veras foi o que decidiu o meu destino e o das companheiras de prisão. A Comissão de Investigações do Estado era um poder paralelo aos dos militares; prendia, torturava e encarcerava nos quartéis, multiplicando as ações de terror sobre os suspeitos de praticarem atos de subversão.

O capitão Lacerda liberava porque estávamos encarcerados no 16° RI e ele era o Presidente da Comissão Geral de Investigações, mas nós, Diva, Margarida, eu e outros presos igualmente levados para depor com o delegado Veras, fomos, de fato prisioneiros da Comissão do governo do Estado.

É uma pena que, até agora, outros companheiros, vítimas da repressão, não tenham, ainda, conseguido arrancar das suas feridas outros fatos que poderiam denunciar e documentar a injustiça e crueldade da ditadura em Natal.

Para registrar estes acontecimentos, recorri aos jornais da época, “O Diário de Natal” órgão dos “Diários Associados” e a “Tribuna do Norte”, da empresa jornalística “Tribuna do Norte Ltda”. As transcrições estão conforme se encontram nas fontes. Pesquisei documentos que se encontram em meu poder e ouvi depoimentos dos perseguidos, que considero indispensáveis para se entender a dimensão da tragédia humana que se abateu muitas famílias do Rio Grande do Norte.

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1° de Abril

Alguns anos se passaram desde os acontecimentos de 1964 no Rio Grande do Norte, mas as lembranças sobreviveram para transmitir o clima emocional daqueles dias. Talvez porque a emoção foi tanta, os fatos vão emergindo muito lentamente e lentamente vão compondo a história da nossa luta e da nossa resistência.

Na manhã de 1° de abril, já deflagrada a crise política que implantou a ditadura militar no país, recebi um telefonema do prefeito Djalma Maranhão convidando-me a comparecer ao seu gabinete de trabalho na Prefeitura.

Os jornais do dia divulgaram a gravidade da crise. O “Diário de Natal” noticiava a movimentação das tropas que se rebelaram no sul do país para deporem o presidente João Goulart e dava conta da situação local, divulgando as seguintes manchetes e notícias:

IV EXÉRCITO DEFINIU-SE PELA DEMOCRACIA.

O Comandante do IV Exército, General Justino Alves Bastos, também tomou posição a favor do movimento revolucionário iniciado ontem em Minas, a favor da democracia e pelo respeito da constituição.

Consta, a propósito, que dessa decisão, o general Justino Alves deu conta ao governador do Rio Grande do Norte, Sr. Aluízio Alves.

Idêntica comunicação foi feita ao Quartel-General da guarnição federal, em Natal. Toda a tropa em Natal, está coesa e firme, obedecendo às ordens do general Justino Alves.

Desde a noite de ontem, estão em rigorosa prontidão as tropas do exército, marinha e aeronáutica aquarteladas em nossa capital...”

EXÉRCITO OCUPOU SINDICATOS E REDE FERROVIÁRIA FEDERAL. NÃO PERMITIRÁ GREVES.”

Na mesma página estavam publicadas a nota oficial do prefeito Djalma Maranhão e uma nota conjunta do Contra-Almirante Mário Cavalcanti de Albuquerque, Comandante Naval de Natal e do Coronel Alberto Carlos de Mendonça Lima, Comandante da Guarnição Militar de Natal.

A nota do prefeito, considerando a prefeitura o “quartel-general da legalidade e da resistência” foi publicada nos seguintes termos:

NOTA OFICIAL DO GOVERNO MUNICIPAL DO NATAL.

O governo municipal do Natal, na hora grave e decisiva que o Brasil atravessa, torna público:

- A posição do prefeito Djalma Maranhão é de defesa da legalidade democrática. A mesma posição assumida quando da posse do presidente João Goulart, transmitida através de pronunciamento oficial e de editorial da “Folha da Tarde”, jornal de que é diretor.

- O prefeito Djalma Maranhão junta a sua voz à de todas as forças democráticas e populares do país, na denúncia aos governos de Minas Gerais, São Paulo, Guanabara e Rio Grande do Sul que, ontem pela madrugada, colocaram-se fora da lei, levados pelo desespero do reacionarismo contra as reformas de base, servindo de instrumentos e oferecendo suas falsas lideranças às forças do antipovo e da antinação.

- O prefeito Djalma Maranhão, ao lado das forças populares e democráticas, conclama o povo para que se mantenha em permanente estado de alerta, nos seus sindicatos, diretórios, órgãos de classe, sociedades de bairros, ruas e praças públicas, na defesa intransigente da legalidade, que possibilitará a libertação do Povo e do País do imperialismo e do latifúndio, a concretização das reformas de base e a construção do amanhã mais justo e mais feliz do Brasil.

- o prefeito Djalma Maranhão, eleito pela vontade popular, cumpre a sua obrigação de dizer que a Prefeitura é a casa do povo onde se instala, nesta hora, o QG da luta da legalidade e da resistência.

- Finalmente, o prefeito Djalma Maranhão reafirma o seu pronunciamento de 18 de setembro de 1961 que serviu de palavra de ordem para o Rio Grande do Norte: Esta é a hora da opção – a legalidade é Jango!

Prefeitura do Natal, 1°-4-1964.

DJALMA MARANHÃO, Prefeito.

A nota dos comandantes militares denunciava uma preparação de greve geral por parte do prefeito e ameaçava com o “emprego da força e da violência em defesa da ordem pública, do atentado à pessoa e à propriedade privada.”

AO POVO DE NATAL.

Na qualidade de comandantes das guarnições Naval e Militar desta capital e deste Estado, e em observância a instruções dos comandos superiores sediados em Recife-PE, sentimo-nos no dever de nos dirigir à população ordeira desta Cidade, com a finalidade principal de tranquilizar a família natalense, face aos acontecimentos que se desenrolam no sul do País.

Tendo em vista a ameaça do Senhor Prefeito desta capital, transmitida diretamente ao comandante da Guarnição Militar, de desencadear a greve geral em todo o Estado e, em particular, nesta capital, medidas preventivas e repressivas estão sendo adotadas pelas autoridades militares das Forças Armadas em Natal, em íntima ligação e entendimentos com o Senhor Governador do Estado, no sentido de impedir a todo custo, mesmo com o emprego violento da força, caso necessário, a perturbação da ordem pública nesta capital e o atentado à pessoa e à propriedade privada.

Visam também estas medidas a, tanto quanto possível, impedir ou pelo menos minorar, os efeitos da greve a ser desencadeada, sempre tão prejudiciais à população civil, à família local.

Em nome das Forças Armadas sediadas em Natal, dirigimos veemente apelo a todos os moradores da cidade no sentido de que cooperem nessa missão, mantendo-se em calma e em ordem, evitando as aglomerações, permanecendo tanto quanto possível em suas residências, confiantes na ação preventiva e, se necessário repressiva dos soldados, marinheiros e aviadores, que têm a honra e o prazer de conviver nesta cidade com tão hospitaleira e ordeira população.

Advertimos ao povo em geral, mais em particular às classes operárias e aos estudantes, que ficam terminantemente proibidas, por motivos óbvios, proibição que será assegurada pela força se necessário, as aglomerações em logradouros públicos, as passeatas sob qualquer pretexto, os comícios, sempre visando à manutenção da ordem Pública.

Natal, RN, 1° de abril de 1964.

Contra Almirante MÁRIO CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE Cmt Naval de Natal

ALBERTO CARLOS DE MENDONÇA LIMA – CORONEL Cmt da Guarnição Militar de Natal

As duas notas apresentavam o confronto desigual entre os militares e o prefeito Djalma Maranhão que, numa atitude muito audaciosa para aquele momento, usou o direito de fazer publicar sua definição política em defesa das instituições democráticas, no momento exato em que era implantada a ditadura e retirados os direitos civis de todos os brasileiros, principalmente dos discordantes do golpe militar.

Com a oficialização da prefeitura como “quartel-general da legalidade”, ironicamente composto por alguns auxiliares, duas ou três lideranças estudantis e sindicais munidos de um rádio portátil a pilha, Djalma provavelmente antecipou a intervenção na prefeitura, prisão e deposição do cargo para o qual fora eleito.

Diante do noticiário da imprensa e do movimento dos militares pela cidade, o nosso espanto era enorme e enorme era o medo de estar assistindo ao fim da democracia e da paz nacional. Não chegamos a perceber, no entanto, a extensão do perigo que cercava os assessores do prefeito Djalma Maranhão.

Naquela manhã de 1° de abril, a Prefeitura de Natal encontrava-se quase deserta. A divulgação do “quartel-general da legalidade” não atraiu ninguém além do comum, na rotina diária da movimentação política do prefeito, que atendia normalmente, em seu gabinete de trabalho, as audiências solicitadas. Ali não se falava em preparação de greve nem havia sinal de organização para qualquer resistência.

O ambiente na antessala do gabinete do prefeito era de quase normalidade. Comentava-se a crise nos limites da preocupação comum a qualquer cidadão.

Apresentei-me ao prefeito mais ou menos às nove horas. Na ocasião, despedia-se do professor Luiz Maranhão Filho. Estavam sérios e compreensivelmente emocionados. Luiz, que já fora vítima de outras prisões em anteriores perseguições aos militares comunistas, acabava de informar que se recolheria ao sítio de um amigo enquanto durasse a crise política e a movimentação de tropas pelas ruas.

Jipes e caminhões do Exército já eram vistos transportando militares armados com metralhadoras e fuzis para os pontos da cidade considerados por eles como estratégicos.

Era o início da exagerada exibição de força e de poder de uma ditadura que durou vinte anos.

Ali no gabinete do prefeito aconteceu, provavelmente, a última conversa pessoal dos dois irmãos em liberdade. Luiz voltou ainda à Prefeitura, mas não ficaram a sós. Encontrar-se-iam, depois, a bordo do avião que os transportou para o confinamento de Fernando de Noronha.

Quando Luiz se retirou, Djalma permaneceu em silêncio por algum tempo. Tentei conversar sobre a crise, mas ele se mantinha reticente, como quem escolhe palavras. Comentou, apenas, que a situação nacional era grave e imprevisível. Permaneceu em silêncio e compreendi que precisava de companhia, mas dispensava o diálogo. Passamos alguns minutos recolhidos aos próprios pensamentos quando um funcionário anunciou outras pessoas que chegavam e solicitavam ser recebidas.

Djalma recomendou-me que permanecesse na prefeitura; havia um telegrama para ser transmitido ele precisava que eu assumisse a responsabilidade de conseguir na sede do então Departamento de Correios e Telégrafos.

Foram poucas as pessoas que chegaram, apenas assessores, estudantes e poucos políticos que, ansiosos por notícias da crise, buscavam esperanças e apoio. Para todos, Djalma representava, naquele momento, a única liderança democrática do Estado.

Ninguém conseguia compreender que estavam todos irremediavelmente sós.

O expediente da prefeitura continuava em todos os setores de trabalho, apesar da inquietação visível em cada funcionário.

Nas ocasiões em que a equipe se reunia, a comunicação era alegre e afetuosa. Naquela manhã ainda pudemos sentir o prazer de estar juntos com alguns companheiros, sem percebermos que seria pela última vez.

Djalma recebia a todos com a expressão grave natural para aquele momento, mas em nenhum instante deixou de demonstrar a firmeza de seus princípios e convicções. Estavam naturalmente preocupado e tenso, mas ainda transmitia a confiança e a coragem inerentes à sua personalidade. Certamente pressentia os riscos que o cercavam; sem democracia não haveria futuro político. Manteve, até quanto possível, sua atitude de resistência.

Passamos aquele primeiro dia de abril entre os locais de trabalho e o gabinete do prefeito. A vida da cidade continuava dentro da possível normalidade, com a população mal informada e, aparentemente, indiferente.

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Invasão da Prefeitura

Pelas 21 horas ainda nos encontrávamos no gabinete do prefeito. Era um pequeno grupo em torno da mesa de Djalma, ouvindo um rádio que transmitia raras notícias e muitos dobrados militares. Conversava-se sobre a crise, assuntos diversos e, principalmente, sobre a ocupação militar nas repartições federais.

Para conseguir passar na sede do correio da Ribeira mais uma mensagem de Djalma ao presidente João Goulart, tive de enfrentar uma fila controlada por soldados do Exército. O telegrafista que recebeu a mensagem foi, em seguida, denunciado como cúmplice daquele ato inútil, uma vez que o telegrama foi apreendido e não chegou a ser transmitido.

Djalma tentou uma última comunicação, ignorando o desfecho dos acontecimentos, pois, àquela hora, o presidente João Goulart já estava deposto.

Pela janela do Salão Nobre da Prefeitura víamos o Palácio do Governo, a pouca distância, com todas as janelas abertas e iluminadas. O governador, naquela noite, rompia a neutralidade em que se encontrava e divulgava sua adesão ao golpe militar. Uma mensagem do governador Magalhães Pinto, de Minas Gerais, principal articulador civil do golpe militar, ajudou a definir a posição política do governador Aluízio Alves.

No gabinete do prefeito, isolados de qualquer informação oficial, continuávamos juntos, mas nada restava a fazer ou dizer.

Surpresos e assustados, ouvimos os passos fortes e apressados de pessoas subindo as escadas. Logo um oficial do Exército chefiando uma patrulha composta por muitos soldados empurrava, com um chute, a porta lateral do gabinete. Apontando uma metralhadora em nossa direção, o oficial gritava, muito nervoso: “Acabou a baderna. Pra fora, seus comunistas!”

Qualquer profissional das armas teme o confronto com a metralhadora, nós éramos, apenas pessoas comuns, sensíveis e sem experiência com a violência.

Perplexos e paralisados, ficamos em silêncio. Djalma ensaiou um passo em direção ao militar, talvez tentasse um diálogo, mas recuou. O líder sindical Evlim Medeiros foi reconhecido pelo nervoso oficial, preso e levado para as celas do 16° RI. Foi ele o primeiro preso político da ditadura militar no Rio Grande do Norte.

Sem alternativas, fomos saindo, sem palavras, estonteados, cada um com o seu espanto e o seu medo. Tivemos uma longa noite de insônia.

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2 de Abril: Prisão do Prefeito

Iniciamos o dia seguinte tentando conviver com a difícil realidade da ditadura militar. “O Diário de Natal” divulgava, em primeira página, as notícias da consumação do golpe com as seguintes manchetes e notícias:

CONGRESSO DECLAROU CARGO DE PRESIDENTE VAGO – MAZZILI INVESTIDO HOJE: PRESIDÊNCIA.

O Senhor Ranieri Mazzili foi investido, na madrugada de hoje, nas funções de Presidente da República...”

“JANGO DEIXOU O PAÍS COM A FAMÍLIA.

As informações conhecidas agora indicam que o Sr. João Goulart, destituído do poder pelas forças armadas, pela madrugada, via aérea deixou o país, acompanhado dos seus familiares.”

ARRAES TEVE IMPEACHMENT DECRETADO PELA ASSEMBLEIA

Ontem, pelas dez horas da manhã, as autoridades militares resolveram o afastamento do governador Miguel Arraes, do cargo, por considerá-lo sem condições de continuar à frente do executivo pernambucano.

ARRAES.

Foi deposto pelo Exército e, logo depois, demitido.

EXÉRCITO DOMINA COMPLETAMENTE A SITUAÇÃO NESTA CAPITAL QUE É DE COMPLETA CALMA.”

Em outra página o mesmo jornal divulgava a invasão da Prefeitura, ocorrida na noite anterior, com a seguinte manchete e notícia:

QUARTEL DA LEGALIDADE FECHADO PELO EXÉRCITO.

Cerca de 21 horas de ontem, uma patrulha do Exército ocupou as dependências da Prefeitura, dissolvendo a reunião política que ali se realizava. Como se sabe, o prefeito Djalma Maranhão, desde as primeiras horas de ontem anunciou a instalação do quartel-general da legalidade.

“A notícia concluía informando que:

“A Prefeitura poderia voltar às atividades administrativas normais, não sendo permitidas, no entanto, qualquer reunião de caráter político.”

OCUPADO O DCE PELAS TROPAS DO EXÉRCITO

No mesmo jornal estava publicada a Nota Oficial do Governador do Estado, com a sua definição pelo novo regime.


GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE

O governador do Rio Grande do Norte, agora informado das razões e objetivos do movimento ontem deflagrado sob a liderança do governador Magalhães Pinto, quer manifestar o seu apoio aos ideais dessa posição que visa a autêntica legalidade democrática realmente ameaçada por atitudes fatos que não eram ainda do conhecimento público.

Lamenta que o presidente João Goulart, a quem reconhece e sempre há de proclamar inestimáveis serviços ao Rio Grande do Norte, no plano do seu desenvolvimento econômico-social, além de uma luta áspera por modificar estruturas que precisam ser urgente e profundamente reformadas para atender aos anseios do progresso nacional, não tenha pedido impedir a radicalização das posições ideológicas e políticas, conduzindo o país ao impasse intolerável que só pode ser solucionado com o respeito às tradições das forças armadas, o restabelecimento da tranquilidade e da paz, cujos anseios estão sendo interpretadas pela firme e corajosa atitude do governador de Minas.

O governador do Estado pede ao povo que fique tranquilo e confie no esforço que fará pra resguardar os melhores interesses do Rio Grande do Norte e da democracia.

Aluízio Alves

A nota demonstrava a indecisão do governador enquanto aguardava a definição da crise no sul do país. Após decidir-se, e assumindo a liderança civil da ditadura no Estado, Aluízio Alves afastou, do primeiro plano dos acontecimentos, o udenista e participante do movimento militar, Senador Dinarte Mariz, seu adversário político.

Apesar da violenta invasão da Prefeitura e da confirmação da vitória das forças militares e prisão do governador de Pernambuco, Sr. Miguel Arraes, o prefeito chegou logo cedo, na manhã do dia 2, para o expediente de trabalho que seria o último de seu mandato. Nós, da equipe, comparecemos normalmente aos locais de trabalho. Esperávamos ainda continuar aquela administração que tivera início com a eleição, por esmagadora maioria eleitoral, de um homem do povo que executava um programa de alfabetização e democratização da cultura em todos os bairros da cidade, inspirado no nacionalismo que defendia.

Nosso expediente foi, no entanto, encerrado às 17 horas, com a prisão do prefeito e vice. Diante do quadro político, Djalma Maranhão devia sentir que a sua prisão poderia ser efetuada a qualquer momento.

Pela manhã, a Prefeitura não recebeu fluxo normal de pessoas à procura do prefeito. Apenas os funcionários movimentavam-se pelos diversos setores de trabalho.

À tarde as salas estavam vazias, poucos servidores voltaram ao expediente e o prefeito permanecia sozinho em seu gabinete. Pelas 15 horas, os auxiliares Flávio Cláudio Siminéa e Carlos Lima apresentaram-se ao prefeito e tentaram permanecer a seu lado, sob qualquer pretexto. Djalma seguramente não queria companhia; dispensou-os com atribuições para executarem fora da Prefeitura.

Carlos Lima foi o último a se retirar; tentou ficar e conversar sobre os noticiários dos jornais mas Djalma ordenou que saísse. Quis permanecer só e sozinho estava quando, minutos depois, os militares vieram prendê-lo.

Não consegui testemunhas do momento em que foi efetuada a prisão, apenas dois funcionários viram o prefeito descer a escada de saída para a rua, escoltado por oficiais do Exército.

Em baixo, na rua, ficou o carro de uso oficial do prefeito, com os quatro pneus esvaziados pelos militares.

O prefeito foi conduzido ao Quartel-General do Exército, àquele tempo localizado na praça André de Albuquerque, e levado à presença do coronel Mendonça Lima. O encontro dos dois foi divulgado por um documento escrito posteriormente pelo próprio Djalma Maranhão. O coronel lhe propôs que renunciasse ao cargo de prefeito e, troca, teria assegurada a liberdade. O prefeito recusou em nome da honra e do povo que o elegeu; foi, então, levado preso, incomunicável, para uma cela do quartel do 16° RI.

O coronel Mendonça Lima a pedido do prefeito, deu permissão para que passasse antes em sua residência. Na mesma tarde foi igualmente, preso o vice-prefeito Luiz Gonzaga dos Santos sem, no entanto, ser-lhe oferecida a possibilidade da renúncia.

A prisão do prefeito e vice, em pleno expediente de trabalho, foi a consumação da violência contra os direitos humanos e contra a democracia, executada pela ditadura militar no Rio Grande do Norte.

Informada sobre as prisões, dirigi-me à sede da Prefeitura, num último gesto de busca dos companheiros e dos nossos projetos de luta administrativa e social.
A rua Ulisses Caldas encontrava-se quase deserta e calma naquele fim de tarde. Nada indicava que fora palco de um acontecimento grave que feria o direito à liberdade e à democracia.

No salão nobre da Prefeitura, um funcionário fechava portas e janelas. O gabinete do prefeito encontrava-se aberto, vazio, em quase penumbra.

A partir daquela tarde, a caça aos considerados subversivos foi desencadeada com o aparato militar semelhante aos vistos nos filmes que mostram a perseguição nazista.

Para efetuar a prisão de uma pessoa indefesa e amedrontada, isolavam todo um quarteirão, invadiam as residências armados com fuzis e metralhadoras, revistavam todas as dependências, especialmente as bibliotecas, onde apreendiam os livros de acordo com o título. O “subversivo” era, então, detido e levado sem explicações à família, que teria de sair procurando localiza-lo nos quartéis.

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O Impeachment do Prefeito

No dia 3 de abril, “O Diário de Natal” divulgou as prisões efetuadas, noticiando a decretação do impeachment pela Câmara Municipal. Dizia a notícia:

“Às 17 horas, patrulhas do Exército comandadas por oficiais, simultaneamente prenderam nos respectivos gabinetes, na Prefeitura e na Câmara Municipal o prefeito Djalma Maranhão e o vice-prefeito Luiz Gonzaga dos Santos conduzidos, inicialmente, para o QG da Guarnição, Praça André de Albuquerque. Foram recolhidos ao 16° RI, onde permanecem. Logo depois, o comando militar informava Câmara que, sendo o prefeito e vice-prefeito comunistas, estavam impedidos de exercer os seus mandatos.

Diante dos fatos, a Mesa da Câmara solicitou do comando militar que a comunicação fosse feita por ofício, permanecendo o legislativo reunido. Já por volta das 22 horas, chegou à Câmara o ofício do coronel Mendonça Lima, nos termos da comunicação verbal anterior. Em seguida, ainda secretamente, decidiu a Câmara aceitar a denúncia do comando militar, iniciando o processo de impeachment ao mesmo tempo em que, conforme determinação do Exército, considerava vagos os dois cargos.”

O mesmo jornal publicou o texto da declaração do impeachment:

TEXTO DA DECLARAÇÃO DOS 2 IMPEACHMENT

É o seguinte o inteiro teor da declaração firmada pelos 21 vereadores da Câmara Municipal de Natal, em que declaram o impeachment do prefeito Djalma Maranhão e vice-prefeito Luiz Gonzaga dos Santos; “Declaramos que votamos o impeachment do prefeito e vice-prefeito por estarmos certos de que estamos defendendo a Democracia, que se define na liberdade de pensamento individual.

Tomamos tal atitude por não estarmos coagidos por ninguém e reconhecermos a plena vigência da Democracia.”

O texto da declaração, após vários debates, foi proposto pelo vereador José Godeiro, sendo aceito pela unanimidade dos edis.”

O então presidente da Câmara Municipal, vereador Raimundo Elpídio, assumiu, interinamente, o cargo de prefeito.

Assim, por uma simples ordem militar, foram cassados os mandatos do primeiro prefeito e vice – eleitos pelo voto popular na cidade de Natal.

Para nós, restou a sensação de que a vida fora interrompida para ser retomada entre ameaças, perdas e insegurança. A partir daquela tarde, amigos e companheiros sumiam e apareciam nas prisões. Alguns conseguiam fugir, mas apenas retardavam o momento de serem levados presos para os quartéis.

A cidade dividia-se entre vitoriosos e derrotados, entre os democratas silenciosos e os entusiastas do novo regime que eram massificados pelas promessas de redenção política e econômica para o país.

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Câmara elege prefeito

No dia 6 de abril, o “Diário de Natal” noticiou a eleição, pela Câmara Municipal, do novo prefeito de Natal, almirante Tertius Cesar Pires de Lima Rebelo e do vice-prefeito, vereador Raimundo Elpídio, que já ocupava a Prefeitura. Salientava que o ato da eleição dos vinte e quatro vereadores durou mais de sete minutos. Entre outras notícias, comentou a posse nos seguintes termos:

“A posse dos eleitos verificou-se às onze horas quarenta e cinco minutos, no plenário da Câmara Municipal de Natal. O prefeito Tertius Rebelo assumirá hoje o exército do cargo, em solenidade no Palácio Felipe Camarão, prevista para as 17 horas.”

O prefeito, ao assumir o cargo, iniciou o expurgo dos auxiliares do seu antecessor e deu início, através de comissões de investigação, a uma devassa sem precedentes na administração municipal. Duas comissões foram imediatamente criadas; uma delas para levantar a situação financeira da Prefeitura, composta por contadores e assim divulgada pelo “Diário de Natal”:

“Para a composição do grupo, o edil tem mantido contatos com repartições federais e estaduais, pois é seu pensamento que a comissão seja integrada por elementos estranhos aos quadros da municipalidade. Assim, a comissão deverá contar com a colaboração de um oficial contador da Aeronáutica a ser designado hoje pelo comando da Base Aérea, do contador Severino Lopes de Oliveira, do Tribunal de Contas, um contador da Contadoria Geral do Estado e um outro, também designado da Delegacia Fiscal.”

A outra comissão foi designada depois para:

“...apurar no âmbito municipal, atividades antidemocráticas antinacionais e contra a probidade administrativa. Foi escolhido para a presidência da comissão, o bacharel Rodolfo Pereira de Araújo, sendo membros da mesma o capitão Gerardo Parente, do Regimento de Obuses, o capitão-tenente Humberto Romero, da Base Naval e o coronel Severino Bezerra, da Polícia Militar. A comissão iniciará os seus trabalhos ainda esta semana, no gabinete do prefeito, com prazo de oito para receber representações dos secretários, diretores de departamentos e órgãos.”

As ditas “representações” eram as denúncias que faziam contra os servidores que se tornavam suspeitos de atividades consideradas subversivas e desonestas.

Liamos as notícias com preocupação, embora fôssemos conscientes da honestidade e lisura dos atos administrativos do prefeito Djalma Maranhão.

A comissão de contadores trabalhou exaustivamente durante alguns meses, mas não conseguiu encontrar as improbidades administrativas esperadas, frustrando, assim, a expectativa dos acusadores que ficavam sem as provas desejadas. Nenhuma notícia, parecer ou relatório dessa comissão apresentou qualquer indício de irregularidades. Tempos depois, o almirante Tertius Rebelo, num encontro casual com o deputado Roberto Brandão Furtado, que fora secretário de finanças na administração Djalma Maranhão, parabenizou-o pela correção que se encontrou nas finanças da Prefeitura quando assumiu, como prefeito, em abril de 1964.

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Interrogatório

Na tarde do dia 8, encontrava-me na residência de uma irmã, nas imediações do 16° RI, quando chegou, muito assustada, a minha filha, acompanhada por militares do Exército, armados com metralhadoras para me levarem. Não deram explicações e, sem palavras, conduziram-me a um jipe e mandaram-me sentar no banco traseiro, entre dois soldados que não conseguiam acomodar bem as suas armas. Sentados na frente estavam o motorista e um oficial. Aquela cena de tragicomédia já se tornara comum pela cidade mas fiquei muito assustada.

Na saída da casa, crianças que brincavam na área com meu sobrinho Marcos Frederico perguntavam-lhe, surpresas e amedrontadas: “Sua tia é comunista?” As perguntas ficaram sem resposta, mas no meu sobrinho ficou o medo, a dúvida e o espanto.

Em 1964 muitas crianças foram marcadas pelas imagens de terror do anticomunismo e de pessoas queridas levadas sob a mira das metralhadoras.

Até chegarmos ao 16° RI, que não ficava distante, minha emoção era indefinida. Espanto, medo, raiva e tristeza misturavam-se. Tentei com dificuldade, ficar calma e assumir o papel que me cabia naquela trapalhada que ainda não podia entender. Não conseguia mesmo compreender que esperassem de mim um ato de terrorismo ou de preparação de guerrilha e que pertencesse ao Partido Comunista, como eram acusados, naquele momento, os que trabalhavam com Djalma Maranhão.

Chegando ao quartel, conduziram-me ao primeiro andar, para uma sala de onde vinha saindo uma cantora de festas populares promovidas pela Prefeitura. A moça estava chorando muito. Realmente, era impossível compreender quais os critérios adotados para aquele aparato militar de investigações. A prisão de Luiza de Paula, uma jovem de vida simples, sem vinculações políticas nem participações na administração municipal, pareceu-me incrível e me senti participante de uma farsa grosseiramente surrealista.

Entrei na sala do interrogatório levada pelos mesmos soldados armados que me prenderam. Entregaram-me a dois oficiais. O mais graduado continuou sentado atrás de uma mesa; aparentava calma. O outro, porém, estava irritado e inquieto. O capitão indicou-me uma cadeira para sentar. O tenente pediu minha bolsa e, num gesto brusco, esvaziou-a sobre a mesa. Iniciava-se o primeiro dos seis interrogatórios que respondi em diversas comissões de inquérito.

Consciente da gravidade daquele momento, procurei manter a calma e lutar para continuar livre. A situação, no entanto, era excepcional e imprevisível. As condições de defesa de um suspeito eram mínimas diante da força arbitrária dos Atos Institucionais pelos quais éramos julgados. O tenente queria descobrir onde estavam escondidos os meus documentos subversivos. Momentos antes, quando me procuraram, invadiram minha residência, armados com fuzis e metralhadoras, revistaram todos os cômodos da casa e, no meu quarto, mexeram até nas caixas de absorventes íntimos. Levaram apenas alguns livros, entre eles “Guerra e Paz”, de Tolstoi, “O Diabo”, de Papini, “O Vermelho e o Negro”, de Stendhal e “Nosso Homem em Havana”, de Graham Greene. Insistia que eu fazia parte de uma organização terrorista que preparava uma revolução armada para implantar o comunismo no país.

As coisas se passavam como num teatro. Parecia que todos representavam. Do ato de terror passamos à tragicomédia quando o tenente, nervoso, supôs encontrar em meus pertences a pista que procuravam para me incriminar. Leu um soneto do poeta Ledo Ivo, que se encontrava em minha bolsa, intitulado “Soneto de Abril” e considerou que os versos “Agora que é abril e o mar se ausenta / secando-se em si mesmo, como um pranto” eram uma senha preparada pelos guerrilheiros da esquerda para, naquele mês, desencadearam uma luta armada. Foi muito difícil argumentar e meu espanto era enorme. Sequer podia rir da loucura do tenente. Além do mais, ele exigia respostas imediatas, pisava duro ao caminhar em redor da mesa, falava sem entender sobre os livros das bibliotecas populares, sobre a campanha “Dé Pé no Chão Também se Aprende a Ler” e voltava ao “Soneto de Abril”.

Eu vivi a desagradável coincidência de tanto naquela sala.

Já estava cansada do interrogatório quando o tenente, num entra-e-sai da sala, informou, irritou, que minha filha encontrava-se, ao lado da porta, com uma crise de choro. Conseguiu, com isso, deixar-me no limite do nervosismo e preocupação. Sem mais controlar a raiva, esqueci o medo e apelei ao capitão para que afastasse o tenente e assumisse, ele próprio, o interrogatório. O capitão Moura Costa, que se mantinha calado, dispensou-se e encerrou a sessão.

Eram quase 18 horas quando saí da sala e encontrei Dilma chorando. Meu irmão León esperava no pátio do quartel. Senti vergonha e tristeza diante dele e da nossa humilhação. Por uma suspeita absolutamente infundada e sem sentido, invadiam as residências, prendiam pessoas e expunham as famílias ao vexame das investigações na vida pessoal e profissional. Perdia-se a privacidade, o direito de defesa e a estabilidade nos empregos.

A vida de todos os perseguidos foi desarticulada tão de repente que precisávamos de algum tempo para voltar ao mínimo de normalidade. Nunca se sabia quantas pessoas inocentes estariam, a qualquer hora, sendo levadas presas e torturadas.

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Comemorações pelo golpe

Enquanto acabavam com a democracia e os perseguidos da ditadura eram encarcerados, organiza-se na cidade uma espetacular manifestação para festejar o golpe militar e homenagear as forças armadas. Celebravam-se atos religiosos na catedral metropolitana e passeatas eram patrocinadas pelos governos estadual e municipal. Senhoras da elite social da cidade, muitas delas frequentadoras dos eventos sociais realizados na Prefeitura antes do golpe, organizavam as festividades, com febril entusiasmo. Desfilaram a pé pelas ruas, juntas ao povo, maquiadas e penteadas, oferecendo um espetáculo de estranho e cômico contraste.

Os jornais da cidade “Diário de Natal” e “Tribuna do Norte” gastaram muito espaço divulgando notícias dos eventos. O “Diário” do dia 8 de abril noticiava, em manchete:

CHUVA NÃO PREJUDICOU TRIBUTO DO POVO ÀS FORÇAS ARMADAS, NA MARCHA DA FAMÍLIA COM DEUS.

Foi talvez a maior concentração cívica e popular que a nossa cidade já assistiu, a que todas as classes sociais realizavam em homenagem às Forças Armadas vitoriosas no movimento de redemocratização do país...”

A notícia ocupava uma página inteira, contornando duas grandes fotografias do monumental comício que se realizou em frente ao Quartel-General do Exército. O povo massificado atendeu, entusiasmado, a convocação do governo, cantou o Hino Nacional, aplaudiu e deslumbrou-se com as promessas de paz, progresso e salvação da pátria. Foguetões espocavam naquela tarde chuvosa. Pude observar a alegria das pessoas que voltavam da concentração, cansadas e suadas, mas com o Brasil “salvo” de todos os males.

Nas demais capitais do país, as comemorações se sucediam com a mesma vibração e ardor patriótico.

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Novas prisões

As prisões efetuadas pelo Exército foram marcadas pelo aparato militar exagerado, com exibição ostensiva de armas e encenação de manobras, como isolamento de quarteirões, cerco e invasão de residências. Amedrontavam as famílias e levavam o perseguido sem explicações sobre o seu destino.

Nas entrevistas com alguns companheiros, falamos sobre as nossas experiências, procurei apenas os mais íntimos respeitando-lhes as emoções. Assim é que as informações limitam-se às lembranças de alguns momentos vividos nas prisões e nas tentativas de fuga.


EVLIM MEDEIROS
(Advogado e ex-Presidente do Comando Estadual dos Trabalhadores do Rio Grande do Norte)

O advogado Evlim Medeiros era membro do Partido Comunista Brasileiro, dirigente do Comando Estadual dos Trabalhadores do Rio Grande do Norte e foi o primeiro a ser preso no Estado pela ditadura militar de 1964. Sua prisão foi efetuada na noite de 1° de abril, por ocasião da invasão pelo Exército na Prefeitura de Natal.

No relatório do delegado Carlos Veras, foi acusado de pertencer ao Partido Comunista,

“contribuir para o partido com a importância de cinquenta cruzeiros mensais e haver disputado a eleição para deputado estadual sob a legenda do Partido Republicano, apoiado não só pelo Partido como por várias organizações sindicais.”

Após vários meses de prisão nos cárceres do 16° RI, conseguiu habeas-corpus, concedido pelo Supremo Tribunal Federal, requerido pelo deputado federal Joaquim Inácio de Carvalho Neto.


HÉLIO XAVIER DE VASCONCELOS
(Advogado, Professor de Direito da UFRN, Presidente do Conselho Regional da Ordem do Advogados do Brasil)

O advogado e ex-líder estudantil Hélio Xavier de Vasconcelos encontrava-se em vésperas de mudança para o Rio de Janeiro e era hóspede de uma família na rua Gonçalves Ledo. No momento da prisão, ouvia um noticiário político transmitido através de um rádio, na voz do jornalista Adalberto Rodrigues, que ameaçava, entusiasmado: “Falta ainda muita gente para ser presa ! Tem muita gente solta !” (sic) Infelizmente, foi semelhante a este o comportamento de muitas pessoas no Rio Grande do Norte.

Hélio foi avisado pela empregada da casa que um oficial do Exército queria lhe falar e que a residência encontrava-se cercada por soldados. Estando no primeiro andar, foi até a janela e viu o quarteirão até a esquina cercado por soldados armados com fuzis e metralhadoras, curiosas nas calçadas e um jipe à sua espera. Apesar de todo o aparato militar, o tenente Ronald foi excepcionalmente gentil ao prendê-lo e o fez como um convite para depor aconselhando, no entanto, a levar a escova de dentes...

O tenente procurou pelos livros que possuía. Estavam guardados na residência do Sr. José Bessa, pai do estudante Danilo Bessa, que era, igualmente, procurado. Hélio respondeu que os livros estavam em casa de um tio, já falecido. Deslocaram-se à casa do tio que, em vida, fora farmacêutico e, na sua biblioteca, encontraram apenas livros sobre medicina, farmácia e uns poucos de literatura, entre os quais, um de capa vermelha intitulado “Vingança Não”, que foi levado. Os militares suspeitavam dos livros de capa vermelha...

Hélio Vasconcelos consegue descrever a prisão com ironia bem-humorada. Conta que, chegando ao quartel do Regimento de Obuses (RO) e entrando em uma cela especial localizada dentro do alojamento transformado em prisão, encontrou já prisioneiros. Luiz Gonzaga dos Santos, Luiz Maranhão Filho, o funcionário “Bual”, da Rede Ferroviária, e José Macedo, ex-tesoureiro do então Departamento de Correios e Telégrafos, que já fora preso em 1935, como participante da intentona comunista. Hélio, ainda atordoado pelo que lhe acontecia, perguntou: “José Macedo, você, que foi prisioneiro político, diga-me como foi o tratamento?” Resposta: Indescritível! Diante da enigmáticas respostas. Hélio deitou-se na cama, cobriu-se com um lençol e desistiu de procurar saber o que o esperava.

O tratamento recebido pelos presos do Regimento de Obuses era, no geral, menos repressivo que o empregado no 16° Regimento de Infantaria. Lá, a presença ostensiva do Capitão Ênio Lacerda deixava sob tensão permanente os ocupantes das prisões. Certa vez, Hélio teve a surpresa de ver, entre os livros que chegavam apreendidos e que se encontravam no corredor de entrada de sua cela, um que ele mesmo havia oferecido a Omar Pimenta, com dedicatória exposta, em página virada, onde se lia: “Para o professor Omar Pimenta, para que faça da cidade de Natal o mundo do socialismo.” O livro era “O Mundo do Socialismo”, de Caio Prado Júnior.

No dia seguinte, chegou preso ao RO o professor Omar Pimenta. Tentaram transformar o encontro em gozação para se distraírem e manterem o equilíbrio emocional na comunicação entre os presos. Hélio considera que a maior presença no quartel era a do professor Luiz Maranhão Filho. Entre todos era o único comunista atuante e assumido. Mantendo-se com altivez e força moral. Luiz distraía os presos relatando suas experiências em viagens e nos embates da vida. Entre outras lembranças de Luiz, Hélio fala de um momento de tensão entre os presos quando iniciaram uma discussão. O professor aproximou-se e falou para todos, com muita calma: “Companheiros, lembrem-se que o nosso inimigo estão lá do lado de fora, não está aqui dentro !” Repetiu a afirmação e os presos exaltados contiveram-se, voltaram às camas e ficaram em silêncio.

Hélio foi terrivelmente pressionado nos depoimentos e vítima da técnica da intriga usada pelos delegados Veras e Domingos, que tentavam jogar os presos uns contra os outros para conseguirem delegações e confissões, mesmo que fossem falsas. A justificativa para a prisão era haver exercido liderança estudantil, pertencer ao Centro de Cultura Popular do Rio Grande do Norte e proferir palestras nos sindicatos.

O primeiro habeas-corpus concedido no Estado foi para ele, logo no mês de agosto e requerido por orientação de um parente militar e pertencente ao Superior Tribunal Militar. A ordem de soltura foi, rapidamente, divulgada entre os demais presos, causando natural euforia.

Num anoitecer de agosto, o tenente Roosevelt, assessor do capitão Lacerda, chegou ao quartel da Polícia Militar, para onde havia sido transferido Hélio, a fim de prestar depoimentos com o delegado Veras, ali instalado. O tenente chamou-o e disse: “Há uma ordem de habeas-corpus para o Sr.” e entregou a ordem de soltura para assinar. Confiante e aliviado, assinou o recibo e pediu para telefonar chamando um táxi. O tenente respondeu, sorrindo: “Não precisa. O Sr. vai andando e encontra um táxi logo ali”, e apontou para a saída do quartel. Hélio saiu apressado, com sua maleta de roupa e um travesseiro, luxo permitido apenas no quartel da Polícia Militar. Caminhou até o portão de saída do quartel, deu mais alguns passos e se deparou com um jipe do Exército de onde saiam dois brutamontes e uma voz que dizia: “Eu tenho uma nova ordem de prisão com o Sr.” A voz era a do coronel João José Pinheiro da Veiga, que demonstrava nervosismo como se fosse a vítima. Hélio, muito surpreso, entrou no jipe e foi levado para o quartel do RO, onde já havia passado alguns meses, antes de ser transferido para o quartel da Polícia Militar. Ao entrar no alojamento-prisão alvoroçou todos os presos. Omar Pimenta, com ironia e decepção, perguntou: “Mestre, o que é isso?” Hélio respondeu, irritadíssimo: “É habeas-corpus, em que dá...”

A reação dos demais presos foi de tristeza e revolta pelo não cumprimento e desrespeito à instituição do habeas-corpus e por sentirem que lhes eram tiradas as esperanças e perspectivas de liberdade.

Na entrevista Hélio lembrou, com emoção, os companheiros torturados fisicamente no quartel do Regimento de Obuses: Luiz Maranhão Filho, João Doca Filho, Geraldo Mafra e Valter Nascimento.

Hélio continuou preso no RO até o dia 18 de fevereiro de 1965, quando foi libertado por um novo habeas-corpus, mais de cinco meses após a sua segunda prisão.


OMAR FERNANDES PIMENTA
(Advogado, ex-Diretor do Ensino Municipal, ex-Chefe de Gabinete da Secretaria Municipal de Educação e Assessor Técnico da Secretaria de Educação do Estado)

No dia 10 de abril, ainda exercendo funções na Diretoria do Ensino Municipal, o professor Omar Fernandes Pimenta foi preso por um comando do Exército, no próprio local de trabalho e levado para o quartel do Regimento de Obuses. Foi ele o primeiro técnico da equipe a ser encarcerado.

Sua prisão e a forma ostensiva como foi efetuada assustou-nos muito. Todas as prisões deixaram marcas profundas nas famílias; a de Omar foi, simplesmente, destruidora. Albaniza, sua esposa, sustentou firmemente a luta em defesa do marido e dos filhos menores, suportou humilhações e dificuldades econômicas, resistiu até à libertação, mas sucumbiu ao esgotamento emocional e hoje apenas sobrevive. De toda a equipe de trabalho, Omar era o mais alegre. Descobria e evidenciava o aspecto engraçado de nossos apuros e conseguia superar, facilmente, as “explosões temperamentais” de Djalma, que não admitia erros ou omissões na execução dos trabalhos.

Na prisão, Omar conheceu a tortura e sadismo de alguns militares. Certa noite escura, levaram-no do local onde se encontrava na prisão para uma cela de castigo, diante do quartel, onde o largaram, sem espaço para deitar, permanecendo de pé até a madrugada, quando vieram buscá-lo. A escuridão era completa; era possível ouvir o mar, mas não sabia onde se encontrava.

Nas noites de 1964, muitas coisas aconteceram nos quartéis de Natal que não queremos lembrar.

Omar falou do episódio pela primeira vez vinte e oito anos depois, com a amargura e a ironia de quem conheceu a tortura e o desprezo pela dignidade humana. Sobre os interrogatórios Omar guarda silêncio. Recebeu habeas-corpus que, igualmente, não foi cumprido. Libertaram-no e o prenderam, em seguida; disse que teve liberdade para caminhar apenas dez metros, sendo recolhido novamente por soldados armados que já se encontravam num jipe, à sua espera. O ritual foi o mesmo vivido por Hélio Vasconcelos. Conta que voltou à cela irritadíssimo, repetindo para os colegas que os militares brincaram de liberdade com ele. Por sorte sua, tiveram que libertá-lo três dias depois, como consequência da chegada a Natal do general Ernesto Geisel, que viajava em inspeção às regiões militares, a fim de apurar denúncias de não cumprimento de habeas-corpus expedidos pelo Supremo Tribunal Federal. Omar voltou, então, para casa.


GENIBERTO DE PAIVA CAMPOS
(Médico cardiologista, ex-professor da Universidade de Brasília)

Geniberto despertou na manhã de 1° de abril com as notícias do agravamento da crise política nacional e ouviu perplexo, pelo rádio, a informação de que tropas militares já haviam se deslocado de Minas Gerais, com destino ao Rio de Janeiro. Sofreu, então, o que considera “um impacto emocional”.

Com apenas vinte e dois anos de idade, não possuía, ainda a perspectiva histórica em profundidade para compreender aquele momento da vida política brasileira. Dirigiu-se à residência do professor Moacyr de Góes, onde encontrou, de passagem, o prefeito Djalma Maranhão, com quem saiu de carro, tentando analisar os acontecimentos e situar-se na nova realidade; nos anos sessenta não existia ainda a integração nacional através de noticiários, como ocorre hoje, via televisão.

Na condição de líder estudantil, ajudou a organizar, no mesmo dia, uma assembleia de estudantes universitários, que se realizou na mesma sede do Diretório Central de Estudantes. Nela procuravam avaliar a crise nacional. Faziam pronunciamentos e manifestações em defesa da democracia e do presidente João Goulart quando foram surpreendidos pela invasão e ocupação militar do DCE, comandada pelo então major Estevão Mosca. A ocupação foi pacífica, embora o universitário Abelírio Rocha, desafiando baionetas e metralhadoras, tenha subido em uma mesa para lançar o seu protesto. Os colegas conseguiram, rapidamente, imobilizá-lo, retiraram-no e saíram sem outros incidentes.

Com a intervenção do DCE, as lideranças estudantis dispersaram-se e procuraram se proteger, sumindo de circulação por algum tempo.

Além da liderança estudantil, Geniberto exercia o cargo de Diretor do Ginásio Municipal e era integrado à campanha “De Pé no Chão Também se Aprende a Ler”. Após um pequeno retiro em uma fazenda, voltou às suas atividades de aluno da Faculdade de Medicina, de onde foi levado para a prisão do 16° Regime de Infantaria, no dia 14 de abril.

Chegando cedo à prisão, foi submetido a longo interrogatório que durou até a noite, quando deram-lhe uma refeição, um colchão e uma coberta para dormir no chão de uma cela. Na mesma noite foi, novamente, levado para outro interrogatório, quando o submeteram a impiedosa tortura psicológica e aplicaram-lhe a técnica nazista denominada “boite”, que consistia em mantê-lo, por mais de duas horas, em uma pequena sala escura, sob uma forte luz contra o rosto e intenso interrogatório. Geniberto permaneceu nas celas dos quartéis por mais de oito meses, suportando as humilhações e constrangimentos impostos em 1964.

Até hoje sofre dificuldades com ambientes fortemente iluminados.


FRANCISCO FLORIPE GINANI
(Médico coloproctologista, professor da Universidade de Brasília, Chefe de ColoProctologia da UnB. Presidente da Sociedade Brasileira de ColoProctologia)

Aos vinte e dois anos de idade, Ginani cursava o segundo ano da Faculdade de Medicina, era filiado à Juventude Universitária Católica e participava da vida política estudantil, como todos os jovens idealistas e conscientizados de sua geração.

Em 1964, exercia o cargo de chefe de gabinete da Secretaria de Educação do Município assessorando o titular Moacyr de Góes. Nos primeiros dias do golpe militar foi convocado, algumas vezes, para depor com o delegado José Domingos, da Comissão Estadual de Investigações.

Precisamente no dia 22 de abril foi levado, por auxiliares do mesmo delegado, para depor no quartel da Polícia Militar. Encerrado o interrogatório, o escrivão informou-o de que estava preso. Ginani perdeu um ano de estudos, sofreu sete meses de prisão nos quartéis da Polícia Militar e 16° Regimento de Infantaria, foi denunciado pela Auditoria Militar, que julgou os atos de subversão no Rio Grande do Norte, com as acusações de haver participado de reuniões da União Nacional de Estudantes e proferir palestras em sindicatos. Obteve habeas-corpus no final de outubro, foi solto e novamente preso, na saída do quartel do 16° RI, onde uma patrulha já o aguardava. A nova prisão durou mais cinco dias.


JOÃO FAUSTINO FERREIRA NETO
(Pedagogo, Professor da UFRN, Deputado Federal)

O deputado federal João Faustino Ferreira Neto presidia, em 1964, a União Estadual de Estudantes e lutava pelas reivindicações da classe.

Conforme consta de alguns depoimentos e do relatório do delegado Carlos Veras, no dia 1° de abril, convocou uma reunião de universitários para manifestarem apoio ao presidente João Goulart. A reunião realizou-se na sede do Diretório Central de Estudantes e dela participaram Geniberto Campos, José Arruda, Abelírio Rocha, Danilo Bessa, Laly Carneiro e outros, tendo sido interrompida pela invasão das tropas do Exército, comandadas pelo então major Estevão Mosca.

Esteve preso algum tempo no quartel da Polícia Militar, foi denunciado pela Auditoria Militar do Recife e excluído do processo por habeas-corpus, requerido pelo advogado pernambucano Roque de Brito Alves.


JOSÉ ARRUDA FIALHO
(Médico cirurgião)

O médico José Arruda, universitário de apenas 22 anos de idade em 1964, foi mais um jovem a ter a vida interrompida pela violência da ditadura militar.

Politizado e engajado no movimento estudantil desde o curso secundário, Arruda participava das lutas e reivindicações estudantis, reuniões e eventos culturais promovidos pelo Centro Popular de Cultura da União Nacional de Estudantes, Centro de Cultura Popular de Natal e congressos sobre cultura popular.

No dia 1° de abril, encontrava-se em reunião no Diretório Central de Estudantes (DCE) no momento em que forças do Exército ocuparam o edifício, expulsaram os estudantes e fizeram intervenção Expulsos da sede do DCE, alguns líderes, entre eles Arruda, Francisco Ginani, Geniberto Campos e Danilo Bessa, dirigiram-se à Casa do Estudante para redigirem um manifesto de protesto e em defesa da democracia, quando foram interrompidos pelo presidente do Diretório Estudantil da Faculdade de Direito, Sílvio Procópio, que trazia um recado de Hélio Vasconcelos recomendando a se dispersarem e se protegerem, pois nada restava a fazer; o golpe estava consumado e as tropas nas ruas.

Pode se imaginar o desânimo e o espanto daqueles jovens em luta pelos seus direitos que, de repente, perdiam os sonhos, a esperança e a segurança. O universitário Sílvio Procópio transportou-se às residências dos deputados Djalma Maranhão e José Rocha, onde já eram esperados e de onde foram levados para uma fazenda, distante da cidade. Arruda não viajou; refugiou-se na Faculdade de Medicina, de onde foi retirado pelos médicos Leônidas Ferreira e João Campos, para a residência do primeiro, onde permaneceu uns poucos dias. Voltando a casa e às aulas, foi logo procurado por uma patrulha do Exército, que não conseguiu localizá-lo. Acossado e sem condições de escapar à perseguição da ditadura, apresentou-se ao Quartel-General do Exército, depois ao 16° Regimento de Infantaria, onde esperava ser interrogado e liberado, sendo recolhido à prisão que durou mais de seis meses.

Arruda não sofreu a tortura física maior, mas viveu o drama das constantes ameaças pelos torturadores, que o retiravam da cela nas madrugadas, para força-lo a delatar companheiros, o que nunca aconteceu. Os presos da sua cela, na defesa pela sobrevivência, organizavam estudos de língua, história e literatura; entre eles encontravam-se alguns professores. As distrações dependiam da criatividade de cada um dos acontecimentos do dia. Apesar de pouca idade, Arruda sentia-se forte e em condições de suportar a violência daqueles dias; acha que modificou a própria sensibilidade, fortificando-a para os momentos mais diversos de toda a sua vida. Relatou alguns momentos de maior tensão no 16° RI, quando os companheiros de prisão Valdier, Eurico Reis e Moisés grilo eram torturados fisicamente. Certo dia, no horário de visitas, um sargento empurrou pelas costas o preso Dr. Vulpiano Cavalcanti afastando-o da esposa, dona Ângela. Naquele momento, os presos sentiram tamanha revolta que renunciaram às próprias visitas e entraram nas celas. O oficial de dia, um universitário oriundo do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva do Exército e servindo em Natal, tentou dialogar com os presos, que não cederam e a visita foi encerrada.

Arruda relata uma visita feia pelo então reitor da UFRN, aos presos do quartel da Polícia Militar, ocasião em que o Dr. Onofre Lopes ficou profundamente chocado com a condição em que se encontravam os universitários, trancados em uma pequena cela e protestou energicamente aos delegados Carlos Veras e José Domingos, que o acompanhavam, dizendo-lhes que “não podia admitir aquele tratamento a jovens que representavam o que havia de melhor na universidade” e reclamou para todos os presos políticos uma condição mais humana. A partir daquela manhã, os presos foram alojados no berçário do hospital da Polícia Militar.

A ordem de soltura por habeas-corpus chegou em outubro, na noite do dia do aviador. Ele e Josemá Azevedo foram avisados a se prepararem para serem libertados. Os dois reagiram acuados e desconfiados: “Não queremos sair para sermos presos novamente.” O oficial insistiu: “Têm que sair”. E chamou-os para dizer, confidencialmente: “Rapazes, podem sair. Vocês não imaginam a repercussão daquelas prisões após os habeas-corpus. A ordem de cima agora é para soltar mesmo.” O oficial era um estudante de odontologia do Recife, servindo temporariamente no 16° RI. Eles confiaram, saíram e não voltaram.


PAULO FRASSINETI DE OLIVEIRA
(Advogado, Procurador Aposentado da Prefeitura de Natal)

O advogado Paulo Oliveira, com 27 anos de idade em 1964, exercia o cargo de chefe de gabinete do vice-prefeito Luiz Gonzaga dos Santos e trabalhava, desde 1954, no então “Jornal de Natal”, posteriormente “Folha da Tarde”, de propriedade do ex-prefeito Djalma Maranhão. A entrevista com ele foi carregada de emoção porque foi difícil para a sua sensibilidade trazer à memória os amigos de Djalma Maranhão, Luiz Gonzaga dos Santos e Luiz Maranhão Filho, que não sobreviveram à crueldade da ditadura. Paulo falou, com muita amargura e tristeza, dos sofrimentos dos pais pela sua prisão e pela de seu irmão Guaraci, mas conseguiu relatar alguns detalhes dos episódios vividos em 1964.

Comentou que sua prisão deveu-se à ligação pessoal e de trabalho com Djalma e atuação nas lutas estudantis desde o curso secundário. Com destacada liderança universitária, foi eleito, em 1961, secretário da União Nacional de Estudantes (UNE), cargo que exerceu durante um ano no Rio de Janeiro, durante a gestão do então presidente e líder da Juventude Universitária Católica (JUC), Aldo Arantes. Para os militares, o seu currículo foi acrescido com uma viagem a Cuba, onde passou um 1° de maio.

Na noite de 1° de abril, encontrava-se no gabinete do prefeito Djalma Maranhão, quando as tropas do Exército invadiram a Prefeitura, armadas com metralhadoras. Sua lembrança do episódio é muito forte. Fala que sentiu pavor da violência com que foram todos expulsos naquela noite, com metralhadoras apontadas em sua direção.

No dia 2, após as prisões do prefeito e vice, refugiou-se com o irmão Guaraci na fazenda de um tio, esperando passar a truculência dos primeiros momentos. Passados 8 dias e as prisões se sucedendo, resolveu voltar. Três dias após, saindo de uma matinê de cinema, encontrou o desembargador Paulo Luz e Louril do Nascimento que lhe comunicaram a prisão do advogado Eider Moura. Paulo compreendeu que estava chegando a sua hora e comentou: “Não sei o que fazer.” O desembargador aconselhou: “Vá para casa pois ninguém vai poder impedir a prisão de quem eles decidirem.” Paulo foi para casa e lá já encontrou os militares do Exército, os pais chorando e os livros espalhados pelo chão.

Levado para o quartel do 16° RI, foi jogado em uma cela considerada “de castigo”, onde encontrou o líder sindical Evlim Medeiros, que advertiu para o risco de serem torturados a qualquer momento, como estava acontecendo com alguns presos. Dias depois, transferido para outra cela, encontrou o irmão Guaraci.

Os dramas dos presos políticos de 1964 assemelharam-se, são repetidos, podem se tornar cansativos ao relato, mas trazem o testemunho de uma tragédia humana que não podia ter acontecido, não pode se repetir o que não se pode calar.

Com todos os demais presos, Paulo sofreu o medo, a insegurança e a humilhação, viu o terrível tenente Calado arrebatar das mãos de sua mãe, dona Iraci, e jogar fora, as frutas que lhe eram destinadas e prescritas pelo médico do quartel, capitão Dourado. Não existiram super-homens nas celas dos quartéis militares; existiram homens comuns, presos num regime de exceção, convivendo com torturadores, que chegaram a qualquer hora da noite para aterroriza-los. Resiste-se, resistimos com dignidade, até saímos fortificados e engrandecidos, mas suportamos, nos limites da resistência humana.

Transferido para o quartel da Polícia Militar, com Djalma Maranhão e outros, sentiu-se em quase bem-estar pelo tratamento respeitoso ali dispensado aos presos políticos. Lembrou, visivelmente tenso, a madrugada da saída de Djalma Maranhão para Fernando de Noronha. Naquela noite, conseguiram com um policial uma garrafa de aguardente, que tomaram antes de deitar. Djalma, numa previsão incrível, tomou a bebida e comentou: “Quem sabe... está é a minha despedida...” Ele sentia o peso do ódio contra si, tinha ouvido no rádio de um soldado um noticiário político e concluído que a pressão para destruí-lo politicamente atingia o limite.

A última visão que Paulo guarda do amigo é da sua passagem pela porta de saída, levando uma pequena mala.

Outra lembrança dolorosa ele guarda ele guarda de sua estrada no quartel do Regimento de Obuses, para onde foi, outra vez, transferido. Os militares adotavam o sistema de rodízio, seguramente para aumentar a dificuldade de adaptação dos presos. No RO, encontrou Eider Moura, que relatou detalhes das torturas físicas impostas ao professor Luiz Maranhão. Paulo nunca esqueceu as marcas de óleo na parede da cela, com a forma das mãos de Luiz, ali deixadas no ato de se amparar, quando voltava das sessões de tortura, onde era pendurado pelos pés e mergulhado num tonel contendo água e óleo.

Paulo comentou, também, a ajuda de alguns, como o então recruta do 16°RI, Fernando Bezerril, que fazia, secretamente, a comunicação entre ele e a sua família, e ressaltou a discreta solidariedade dos oficiais e subalternos do quartel da Polícia Militar de Natal.

Foi libertado no dia 26 de janeiro de 1965, por habeas-corpus, ficando ainda obrigado a apresentar-se, todas as quintas-feiras, no quartel-general. Para livrar-se daquela obrigação novo habeas-corpus foi impetrado pelo professor Carlos Varela Barca.

Como todos os funcionários do Estado e do Município, foi demitido por decreto do então governador Aluízio Alves. O mesmo advogado Varela Barca conseguiu sua reintegração, pois o ato de demissão contrariava até o que dispunha o Ato Institucional 1.


GUARACY QUEIROZ DE OLIVEIRA
(Advogado, Conselheiro da Secção Regional da Ordem dos Advogados do Brasil, Procurador Aposentado da Prefeitura Municipal de Natal)

Em 1964, o advogado Guaracy Queiroz encontrava-se tranquilamente estabelecido no seu sistema de vida, com um escritório e um emprego na Câmara Municipal de Natal. Entre seus amigos estavam o vice-prefeito Luiz Gonzaga dos Santos e o então suplente de deputado federal Aldo Tinoco, com quem conversava sobre as reformas de base para o país; desejava-as, mas não participava das lutas reivindicatórias. A única participação política de sua vida aconteceu em 1948, durante a campanha de "O Petróleo é Nosso", quando dirigiu um jornal estudantil.

Deflagrado o golpe militar e as prisões se sucedendo, inclusive de alguns amigos, resolveu sair, por uns dias, e ficar com seu irmão Paulo Frassineti, na fazenda de um tio. Regressando a Natal, voltou à quase normalidade de sua vida, embora angustiado e inseguro, como acontecia com a grande maioria dos brasileiros que viveram a ditadura militar implantada em 1964.

No dia 13 de abril, encontrava-se em sua residência com a esposa no sétimo mês de gestação, quando um comando do Exército chegou para prendê-lo. Levaram-no para o quartel do 16° RI de Infantaria onde permaneceu alguns meses, sendo transferido para o quartel da Polícia Militar e, por último, para o Regimento de Obuses, completando mais de dez meses nos cárceres militares. Até o momento, até abril de 1993, Guaracy desconhece a causa real da perseguição e prisão que desarticulou, por longo período, a sua vida. No processo não havia uma articulação formal; foi intimado a defender-se de corrupção e subversão, sem especificarem atos cometidos.

Dos diversos interrogatórios que respondeu, lembrou que perguntaram "Você é comunista?" Resposta: "Não, sou nacionalista!” Ao que contestaram: "Pois é a mesma coisa!"

Na comissão de inquérito da Câmara Municipal, o vereador José Guará interpelou: "Você acha que o almirante Aragão é almirante do povo?” Resposta: "Acho que ele é almirante da Marinha."

As perguntas eram tão sem sentido e irresponsáveis para um momento grave e decisivo na vida dos acusados que custa a acreditar tivessem os inquisidores compromisso com a dignidade da própria imagem. Guaracy comentou que, para todos os presos, os momentos mais dramáticos eram os vividos nos interrogatórios. Referências amargas foram feitas sobre a fome que passavam; a comida de péssima qualidade chegava fria e descuidada, algumas vezes sem talheres. Certa ocasião, aproveitando uma visita aos filhos, dona Iraci, sua mãe levou um sanduíche de pão com carne. Ao tentar entregar, recebeu, do capitão tapa na mão. O pão caiu longe e ela saiu em pranto.

Na aparência, os detalhes podem ser banais, mas são detalhes que tornaram quase insuportável a vida nos quartéis.

Em janeiro de 1965, Guaracy, seu irmão Paulo e outros presos continuavam, ainda, no quartel do Regimento de Obuses e já o comandante Caldas apresentava solidariedade e preocupação com a demora dos habeas-corpus. Finalmente, no mês de janeiro, foram postos em meia liberdade, com o compromisso de se apresentarem, semanalmente, ao quartel-general do exército até a concessão de outro habeas-corpus, requerido pelo professor Carlos Varela Barca.


RAIMUNDO UBIRAJARA DE MACEDO
(Jornalista)

Raimundo Ubirajara de Macedo, jornalista e funcionário do então Departamento de Correios e Telégrafos, onde exercia o cargo de Secretário do Diretor da mesma repartição, foi preso no dia 7 de abril e levado para o quartel do 16° RI, onde já se encontravam o prefeito Djalma Maranhão, o jornalista Carlos Lima, o então deputado Aldo da Fonseca Tinoco, o sindicalista Evlim Medeiros, o advogado Geraldo Pereira de Paula e outros.

Ubirajara não foi molestado fisicamente, mas considerou uma tortura psicológica a ameaça disfarçada do capitão Lacerda, que o interrogou em frente ao símbolo da justiça, fixo à parede e, nele pendurado, uma virola que era o instrumento usado para as torturas físicas de aplicação de pancadas. No interrogatório foi pressionado para informar onde se reuniam os comunistas dos Correios e Telégrafos e intimidando a explicar os artigos que publicava no jornal "Folha da Tarde", nos quais defendia idéias políticas nacionalistas.

As acusações eram, como todas, forjadas para aterrorizar, sem apresentarem fatos concretos. Lembrou detalhes que dão a idéia da condição humana na vivência diária dos prisioneiros; falou de Djalma Maranhão com admiração pelo equilíbrio, resistência moral e liderança conservados, ainda, na prisão. Do preso Luiz Gonzaga de Souza, diretor do então Correios e Telégrafos, professor do Atheneu e dedicado à literatura. contou que algumas noites ele passava a recitar na cama, poemas de Fagundes Varela, Castro Alves e outros. Certa noite, interrompeu um longo poema, levantou-se e indagou, solene: "Quando é que a gente vai sair desta merda" Todos riram. Comenta, ainda, que os presos conviviam bem, apesar dos limites de espaço e tensão emocional.

Falou também de um episódio lamentável que demonstra os critérios adotados para efetuarem prisões. Um comentário infeliz do capelão do Exército, padre Eymard Monteiro, provocou a prisão de um homem simples e sem militância política. Visitando as celas dos presos, em companhia do coronel Mendonça Lima, o capelão exclamou: "Estou sentindo falta aqui do meu compadre "Doca", porque ele gostava..." No dia seguinte, chegou preso João Doca Filho, que somente foi libertado muitos meses depois, já pelos últimos habeas-corpus. O "compadre Doca” era um modesto funcionário do Departamento de Correios e Telégrafos, com muitos filhos e difícil situação econômica.

Ubirajara lembrou os casos de tortura acontecidos no 16° RI, foram torturados, em diversas ocasiões, os presos Valdier Gomes, Eurico Reis, Moisés Grilo e, uma vez, Floriano Bezerra. As torturas eram do conhecimento de todos os presos e pode-se imaginar a tensão emocional em que viviam, sob o risco constante de serem levados pelo capitão Lacerda, para os mesmos fins. Comentou, ainda, Ubirajara, que a última seção de torturas aconteceu num dia dedicado à assunção de Nossa Senhora, fato que lhe fez reacender a fé religiosa por considerar que, naquele dia, acontecera um milagre.

Era feriado no quartel, não havia circulação de veículos e de pessoas quando viram chegar o capitão Lacerda, dirigindo o seu próprio carro. O preso Dr. Vulpiano Cavalcanti previu o que ia acontecer e aconselhou aos que eram comumente torturados e apanhavam em silêncio a gritarem o quanto fosse possível.

O capitão Lacerda levou o preso Valdier e deu início a mais uma sessão de tortura. Valdier gritou muito. Moisés Grilo gritou mais. Eurico Reis apelou por Nossa Senhora e gritou o mais alto que pôde. Naturalmente, os gritos foram ouvidos por todo o quartel. Daquele dia em diante acabaram-se as torturas no 16° RI.

Poucos meses depois, com o fim das investigações, o temido capitão Lacerda foi transferido de Natal.

Libertado em 19 de março de 1965, após 12 meses de prisão, Ubirajara deixou, ainda presos, dois camponeses. Um deles, o Sr. Manoel Bento, ruralista de Canguaretama, nunca demonstrou, nas conversas entre os presos, que tivesse qualquer envolvimento político.


LUIZ GONZAGA DE SOUZA
(Advogado, ex-Professor do Atheneu Norte-Rio-Grandense, ex-Diretor do Departamento de Correios e Telégrafos)

Convivi com Luiz no então Departamento de Correios e Telégrafos e conheci seu gosto pela literatura francesa que lia no original. Freqüentei a biblioteca de sua residência de onde levava livros emprestados e conversávamos sobre poesia, uma de suas paixões.

Na avalanche de caça às bruxas, lá foi ele parar nas celas do 16° Regimento de Infantaria, como ex-integrante do Partido Comunista Brasileiro e acusado de executar uma administração subversiva na repartição que dirigia.

Carente de beleza e sensível, valeu-se da poesia para suportar a solidão e o tédio das noites da prisão. Este era o Luiz que conheci, divagando acima do feio da vida e construindo com as suas cores o mundo que lhe convinha.

Luiz morreu há alguns anos e não chegamos a conversar sobre a prisão. Não tenho dúvidas, no entanto, de que falaria com fina ironia e muita distância dos seus perseguidores.


CARLOS ALBERTO DE LIMA
(Jornalista, Empresário e Editor)

Entre as amargas lembranças de Carlos Lima, preso nos primeiros dias de abril e encarcerado no 16° RI, ficou, especialmente, uma certa meia-noite em que o capitão Lacerda, com a grosseria que lhe era peculiar, acordou os presos ordenando que juntassem os seus pertences e saíssem das celas pois estariam sendo transferidos para o confinamento da ilha de Fernando de Noronha. Caminharam um pouco e apagaram-se as luzes do quartel, ficando na escuridão absoluta. Djalma Maranhão advertiu em voz alta que todos ficassem parados, sem qualquer movimento que pudesse justificar uma reação armada contra uma pretensa fuga. Percebeu a cilada e o risco de serem metralhados com a desculpa de tentarem a fuga. Passados alguns minutos, acenderam-se as luzes e foram todos transferidos para outras celas, nos fundo do quartel.

Carlos Lima foi uma das vítimas de tortura por parte do capitão Lacerda. Levado a depor e tendo o seu depoimento coincidido com o do prefeito Djalma Maranhão, o militar zangou-se e interrogou-o novamente, afirmando que haviam combinado previamente as respostas. Não conseguindo contradições no segundo depoimento, o capitão o levou para uma cela especial de castigo, medindo um metro de diâmetro, deixando-o incomunicável por três dias sobre o cimento molhado.

A sensibilidade de Carlos Lima e seus problemas de saúde inibiram-me de insistir nas suas lembranças de 1964.


GERALDO PEREIRA DE PAULA
(Advogado, ex-funcionário do Departamento de Correios e Telégrafos)

Contratado como advogado das Ligas Camponesas, uma sociedade civil com personalidade jurídica criada para defender os interesses dos trabalhadores do campo, atraiu contra si a fúria do patronato rural e a acusação de subversivo em 1964. Na primeira semana de abril, encontrava-se na cidade do Recife, acompanhando a cirurgia de uma filha. Voltou a Natal no dia 10 e foi logo informado que havia sido procurado por militares do Exército, com um recado para se apresentar ao coronel Estevildo Caldas, no 16 ° Regimento de Infantaria.

Dirigiu-se ao quartel, convencido de que prestaria algum esclarecimento, sem maior conseqüência. Ao se apresentar, foi logo colocado em uma cela, onde já se encontrava o pastor protestante José Fernandes Machado. No dia seguinte, o capitão Dover levou-o para o isolamento de outra cela, localizada nos fundos do quartel e vizinha à sala do capitão Guedes.

Levado a depor na noite do dia l l, foi submetido à tortura conhecida como 'boite', que consistia em ficar sentado frente a uma fortíssima lâmpada, distante dos seus olhos apenas uns vinte centímetros. De cada lado, um soldado encostava-lhe uma baioneta abaixo de cada braço. Sem poder se mexer, Geraldo suportou a tortura por, aproximadamente, três horas, rodeado pelo capitão Dover e pelos tenentes Calado e Castelo Branco, até a entrada do coronel Mendonça Lina, a quem reconheceu pela voz. Ao coronel, que antes havia comparecido à cela e ironizado o preso, afirmando que " quem tomou conta do Brasil foi o Exército brasileiro, não foi Hitler nem Mussolini", Geraldo apelou: “coronel o senhor disse que quem tomou conta do Brasil foi o Exército brasileiro; no entanto, estão aplicando os métodos de tortura usados pelas SS de Hitler". O coronel disse apenas: “Desliguem a luz”, e retirou-se.

De volta à cela sem alimento e sem água por quarenta e oito horas; quando levaram comida não lhe deram água. O sol penetrava na cela, fazia muito calor e, com a sede, entrou em desespero. Chamava pelos sentinelas e não lhe atendiam. Passou a chutar a porta que foi aberta pelo capitão Guedes que, surpreso, indagou o que estava acontecendo. Informado de que Geraldo estava sem tomar água há dois dias, retirou-o da cela, mandou-o sentar e ordenou à sentinela que trouxesse, do restaurante dos oficias, um litro de água gelada e um copo. O soldado voltou e comunicou que o oficial de dia havia dito que não era para fornecer água por dois dias. O capitão Guedes zangou-se e determinou: “Volte, diga que mande a água se não vou lá prendê-lo! Não admito este tipo de tratamento a um preso.”

A Geraldo: “O senhor pode ser o que for. Se é comunista prendam e processem mas isso não!" Geraldo saciou a sede.

No dia seguinte, foi retirado do isolamento para uma cela maior, onde encontrou diversos outros presos.

Geraldo foi interrogado apenas duas vezes uma pelos militares e outra pelo delegado Veras. Em outra ocasião, foi salvo, mais uma vez, pelo coronel Mendonça Lima, quando o capitão Dover mandou buscá-lo algemado e escoltado. No encontro, o capitão cumprimentou-o, com desdém: - "Bom-dia "Seu" Geraldo." - "Bom- dia 'Seu' Dover." O capitão se enfureceu e vociferou: "Seu" Dover? Eu sou capitão!" Geraldo revidou: “Eu sou Doutor!” O capitão partiu para agressão física e Geraldo gritou: "Vai me bater? Não pensei que um oficial do Exército brasileiro batesse num preso algemado!" Entrou o coronel, advertiu o capitão e o preso foi levado de volta.

Lembrou, ainda, o sofrimento e a resistência física do companheiro de cela João Soares, que apanhou oito surras, voltava sangrando e o próprio Geraldo tirava-lhe as roupas e lhe aplicava compressas molhadas.

O habeas-corpus de Geraldo chegou em fins de outubro, juntamente com os de Luiz Gonzaga dos Santos e outros presos, quando se encontrava no quartel da Polícia Militar, para onde fora transferido. O major João Pinheiro da Veiga procurou-os à noite, mandou assinar a ordem de soltura, mas impediu que telefonassem para a família ou pedissem um táxi. Geraldo percebeu que militares do Exército encontravam-se em frente ao quartel e propôs dormir no chão do pátio, alegando que não gostaria de sair a pé, na escuridão da noite. O major argumentou que estavam livres e não podiam pernoitar no quartel. Obrigados a sair, foram presos, novamente, na calçada, e levados de volta. Geraldo perguntou: "Major, eu gostaria que me dissesse qual foi a subversão que fiz daqui para o portão. Pelo que eu teria feito antes, o Supremo Tribunal Federal já decidiu mandar me soltar..."O major retrucou: "O senhor tem ainda coisas a explicar..."

Geraldo conseguiu passar um telegrama, em nome da esposa Anita, para o ministro Ribeiro da Costa, presidente do Supremo Tribunal Federal, e para o ministro da Guerra, general Costa e Silva. Poucos dias depois, foram postos em liberdade.

Em liberdade, conviveu com a rejeição e o preconceito contra os considerados subversivos. Nas rodas de conversas habituais no Grande Ponto a que sempre freqüentou, passou a ser discriminado, acintosamente. Resolveu divertir-se, dissolvendo grupos; aproximava-se e os companheiros de antes afastavam-se e ele ficava só.

Da tortura na "boite", restou a Geraldo Pereira de Paula séria e irreversível lesão nos olhos.


CARLOS ALBERTO GALVÃO
(Economista, Empresário)

Em 1964, o empresário Carlos Alberto Galvão era funcionário do então Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários e amigo pessoal do vice-prefeito Luiz Gonzaga dos Santos, com quem colaborava na secretaria do Partido Trabalhista Brasileiro, que Luiz dirigia a nível municipal. Carlos tocava seus negócios comerciais – um bar e a então Sorveteria Oásis - e sua vivência politica limitava-se à consciência critica da exploração do país pelas multinacionais americanas.

Viveu o l° de abril entre os negócios e a preocupação com o país comum a qualquer cidadão. No dia 4, ao sair da sua residência, foi abordado por dois militares à paisana, que se identificaram como sargentos do Exército e o intimavam a comparecer ao quartel do 16° Regimento de lnfantaria. No quartel, já ao anoitecer, colocaram-no em uma cela de isolamento onde ficou sem nenhum contato humano, além da sentinela que trazia a comida em silêncio. Em uma ocasião da troca da guarda ouviu uma recomendação: "Cuidado com este prisioneiro que ele é muito perigoso." lncrédulo e assustado, questionava se aquele prisioneiro perigoso seria ele. A tensão do isolamento crescia e foi agravada por um tiro casual que um sentinela disparou na janela, cuja bala entrou na cela. Houve um corre-corre e nova recomendação: "O prisioneiro é muito perigoso..." Um oficial que se dizia espírita passou e entregou-lhe uma Bíblia.

Fragilizado fisicamente, Carlos atingiu o limite da resistência e foi acometido por um colapso periférico. Quando despertou, os que o rodeavam estavam muito assustados; foi atendido pelo capitão Dourado, médico do quartel. No dia seguinte, levado a depor com o capitão Lacerda, observou, em cima da mesa que os separava, uns aparelhos usados para aplicação de choques elétricos. O capitão avisou que se tratava de um detector de mentiras. O interrogatório, que iniciou tenso, foi logo interrompido por ordem do coronel comandante e retomado depois, com a presença de um médico. Da sala de interrogatórios foi levado por uma escolta e, na passagem, viu toda a tropa formada e perfilada Ficou muito assustado, associando ao episódio vivido por Luiz Maranhão em uma de suas prisões, quando foi humilhado e apresentado a toda a guarnição como traidor da pátria. Carlos confessa que era muito sugestionado pelas notícias das torturas da guerra. No momento em que entrava em outra cela, começaram a tocar o Hino Nacional. Os soldados perfilaram-se e ele parou, meio apavorado, olhos arregalados, barba crescida, assustando os companheiros que ali se encontravam e que o imaginaram louco.

Meses depois foi transferido para o quartel da Polícia Militar, onde conseguiu saber que era acusado de contrabandear armas e manter comunicação, via radioamador, com Cuba, Pequim e Moscou. Compreendeu, então, porque o consideravam muito perigoso... Seu envolvimento com armas resumira-se a possuir dois rifles sem uso e, em algum tempo, haver vendido dois ou três revólveres que um parente havia trazido dos Estados Unidos. Da acusação de radioamador sobrou um prejuízo para o seu primo dentista Clemente Galvão, que lhe entregou para mandar consertar um receptor de radioamador, que foi apreendido e nunca devolvido. As acusações foram tão sem fundamento que a Auditoria Militar do Recife não o denunciou. No dia 23 de outubro, foi liberado por habeas-corpus e, em companhia de outros presos, recolhido novamente à prisão. Foi libertado dias depois.

Carlos reassumiu os negócios e verificou que se encontrava à beira da falência.


MARCOS JOSÉ DE CASTRO GUERRA
(Advogado, Doutor em Direito Internacional do Desenvolvimento, Consultor Internacional (UNESCO, FAO, OIT, PNUD, UNICEF, CEE), Consultor das Nações Unidas no Brasil, Secretário de Educação e Cultura do Rio Grande do Norte)

Em 1964 o universitário Marcos Guerra coordenava a aplicação do método de alfabetização do professor Paulo Freire no programa de alfabetização de adultos desenvolvido pelo governo, iniciado em 1962, na cidade de Angicos, através do Serviço Cooperativo de Educação do Rio Grande do Norte (SECERN), autarquia fundada com o objetivo de agilizar o acordo de cooperação firmado entre o governo americano e o governador Aluízio Alves através da Aliança para o Progresso e da SUDENE.

Com a eficácia do método no desenvolvimento do programa de alfabetização em Angicos, e estando o professor Paulo Freire na presidência da Comissão Nacional de Educação Popular, criada pelo Ministério da Educação do governo João Goulart, o mesmo sistema de alfabetização estender-se-ia para outros Estados, a começar por Sergipe, no governo Seixas Dória. Para lá dirigiu-se Marcos a uma pequena equipe do SECERN, com a finalidade de formar professores e técnicos.

Em Aracaju, encontrava-se no dia 1° de abril. Consumado o golpe, decidiram voltar a Natal e o fizeram via cidade de Caruaru, onde ficaria uma companheira, filha do prefeito do município e aliado político do governador Miguel Arraes. Na residência do prefeito, foram cercados por uma companhia do Exército de que iriam reforçar o movimento de guerrilhas. Liderado pelo prefeito. Presos e algemados, foram transportados em cima de um caminhão para o Recife e entregues ao centro de triagem e interrogatório do coronel Ibiapina, que se destacou pela repressão e tortura aplicada aos presos. Identificados durante os interrogatórios, irritaram o coronel que divulgara haver descoberto um grupo de guerrilheiros e constatava que executavam um plano de alfabetização que ele, o coronel, considerava perigosíssimo para o país. Na interpretação do coronel, o programa de alfabetização popular havia sido decidido em Moscou, para ser executado em toda a América Latina, onde o povo, conscientizado de seus direitos, tomaria o poder.

Segundo o professor Marcos Guerra, o coronel tinha grande lucidez sobre a força da educação e enorme fantasia sobre as ordens de Moscou.

No Recife, Marcos foi jogado, com os companheiros de Natal José Ribamar de Aguiar e Pedro Neves Cavalcanti, em uma cela superlotada, onde dormiam no chão, colados uns aos outros e de onde só puderam sair por habeas-corpus, após um tempo que não lembra - quarenta, cinquenta dias.

Marcos não esqueceu a primeira visita do pai, professor Otto de Brito Guerra, que lhe declarou: "Houve um grande mal-entendido sobre o trabalho que vocês faziam. Você vai ter paciência; é importante saber, que nós conhecemos o que você estava fazendo. Não baixe a cabeça!" O conselho foi de extrema importância para o jovem de 23 anos a dignidade da postura política e responsabilidade social duramente castigada pela ditadura militar.

Na prisão, conviveu com importantes figuras da política pernambucana, como o prefeito Pelópidas da Silveira, o secretariado do governador Miguel Arraes e, também Clodomir Morais, Francisco Julião e Gregório Bezerra, convívio que lhe permitiu adquirir uma grande experiência de vida. Os presos organizavam seminários permanentes, analisavam acontecimentos políticos e aproveitavam para comentar suas experiências Entre as celas havia duas para isolamento individual. Na entrevista Marcos lembrou um momento de beleza humana na solidariedade dos soldados, que conduziam o líder comunista Gregório Bezerra, destinado a uma cela do isolamento. Os soldados simularam um engano e o colocaram na cela superlotada. Gregório, que resistiu às mais ultrajantes torturas, entrou na cela exausto e faminto. O soldado comunicou: "Ele vai ser posto aqui, por engano, durante algumas horas." Gregório recebeu a solidariedade de todos os presos. Havia um bico de água onde ele conseguiu banhar-se. Um preso que se encontrava doente e recebia maçãs, deu-lhe uma. Ele comeu, descansou, e a maçã, como único alimento em muitas horas, provocou uma crise de suor. Em poucas horas o soldado voltou e o levou para o isolamento.

Marcos recebeu habeas-corpus requerido por seu pai, foi libertado, mas voltou a ser preso uma dezena de vezes. Conseguiu transferir o processo para Natal e esteve preso no 16° Regimento de Infantaria, por algum tempo. As prisões se repetiram até o ano de 1965, os habeas-corpus também.

Esclareceu que assumiu, em 1962, a coordenação da Alfabetização do SECERN com o então Secretário de Educação Calazans Fernandes, no governo Aluízio Alves. Agia integrado ao programa da União Nacional de Estudantes que, sob presidência de Aldo Arantes, convocou os universitários a se engajarem no trabalho concreto de cada região, dentro da especialidade de cada um.

Após a formatura no curso de Direito, em 8 de dezembro de 1965 e, no limite do suportável, com tantas entradas e saídas da prisão, decidiu sair do Brasil para a França, de onde lhe chegara convite e ajuda financeira para viajar. Seguiu para São Paulo onde recebeu ajuda do Sindicato dos Jornalistas e de funcionários da VARIG, que lhe facilitaram o embarque. Em Paris, participou ativamente da organização internacional de ajuda a exilados e refugiados políticos.

A experiência de Marcos na ditadura foi muito cruel mas muito rica de aprendizado de vida. Viveu 25 anos fora do Brasil. Trabalhou no Instituto de Pesquisas e Formação em Educação e Desenvolvimento, para onde foi contratado como professor e onde encontrava-se outro brasileiro, professor Heron Alencar, ex-vice-reitor da Universidade de Brasília. Com carteira de trabalho assinada, o que mudava sua condição de exilado político, assumiu um cargo de direção no mesmo Instituto e pôde ajudar muitos estudantes da América Latina, Ásia e África. Pelo mesmo Instituto, orientou a coordenação dos programas de desenvolvimento de alguns países do terceiro mundo, entre eles Níger, Costa do Marfim, Moçambique, Angola, Cabo Verde e Nicarágua, concluindo sua trajetória internacional em Paris como diretor de uma Agência de Cooperação, Solidariedade Internacional e Financiamento de Projetos, e Consultor das Nações Unidas.

Em condições privilegiadas para atuar livremente no combate à ditadura do seu país, participou ativamente do movimento de denúncias de torturas a presos políticos do Brasil e da luta externa em favor da anistia e redemocratização do país.


JOSÉ RIBAMAR DE AGUIAR
(Advogado, Professor da UFRN)

PEDRO NEVES CAVALCANTI
(Advogado, Funcionário aposentado do Banco do Nordeste)

Universitários da Faculdade de Direito, Ribamar e Pedro foram aprovados no curso para monitor do curso de alfabetização de adultos do sistema Paulo Freire a ser implantado na cidade de Angicos. Selecionados para comporem a equipe de execução do método no Estado de Sergipe, encontravam-se em Aracaju no dia l° de abril. Com o golpe militar, voltaram para Natal, quando foram presos na cidade de Caruaru, algemados e conduzidos para o quartel da 2a. Companhia de Guardas, em Recife, onde foram interrogados pelo coronel Ibiapina.

Sem pertencerem a partidos políticos, não participavam de lutas reivindicatórias nem de organizações religiosas ou estudantis. Os acontecimentos de suas experiências foram os mesmos descritos no depoimento de Marcos Guerra.


DANILO BESSA
(Advogado)

Estudante de Direito, aos vinte anos de idade, Danilo foi estimulado pelo professor Luiz Maranhão Filho a estudar o marxismo. Convencido de que o regime socialista seria a solução para as injustiças sociais, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro e passou a exercer atividades políticas, através da União Nacional de Estudantes e União Estadual de Estudantes. Na mesma época, Danilo sonhava fazer um bom curso, ingressar na magistratura e exercer dignamente a profissão. Em abril de 1964 mudou o país e seu destino.

Consumado o golpe, procurou o amigo Luiz Maranhão e a orientação que recebeu foi: "cada um que procure escapar porque o golpe é patrocinado pelos Estados Unidos e pode significar até a morte para todos." Com essa advertência, tratou de sumir. Com a ajuda do deputado estadual José Rocha viajou para Campina Grande, de onde seguiu para uma fazenda no interior do Ceará, ali trabalhando como camponês até dezembro de 1964. De lá, seguiu para o Rio de Janeiro, adotou o nome de Leo Monteiro, tentou mudar o visual, conseguiu trabalho, mergulhou no anonimato. Fez contato com militantes do Partido Comunista, colaborou no jornal "Voz da Unidade", foi novamente perseguido e obrigado a fugir para o Paraguai, de lá voltando para São Paulo.

Em São Paulo voltou à militância do Partido Comunista, foi preso e levado para o DOPS, onde ficou 17 dias, no mesmo bloco em que esteve Luiz Maranhão. Ali foi interrogado diversas vezes, levou tapas e choques elétricos, aplicados através de um chuveiro elétrico. Desesperado pelas ameaças de morte e acossado por muitos interrogatórios, solicitou papel para escrever as informações que lhe exigiam. No escrito, expôs suas idéias e atividades políticas, concluindo com um apelo dramático pela vida e liberdade.

Para ser solto, Danilo pode ter contado com a ajuda do amigo Oswaldinho, filho de general Oswaldo Cordeiro de Farias. Em liberdade, voltou ao Rio de Janeiro, fez concurso para a Confederação de Comércio, foi aprovado, conseguiu a nomeação com a interferência do senador Dinarte de Medeiros Mariz.

Danilo não esqueceu o convívio com militantes na clandestinidade e o desespero de alguns, quase garotos, quando, emocionados, despediam-se para cumprirem tarefas do Partido. Uns voltavam, outros desapareciam.

Novamente em Natal, concluiu o curso de Direito, exerce advocacia na capital e no interior mas perdeu o sonho de ingressar na magistratura estadual.


EIDER TOSCANO DE MOURA
(Advogado, Geógrafo, Professor da UFRN)

Exercendo as funções de Promotor Público, Eider foi preso pelo Exército nos primeiros dias de abril e levado para as celas do quartel do Regimento de Obuses, onde permaneceu por nove meses, sob as mesmas acusações que justificaram todas as demais prisões. Foi interrogado por oficiais do Exército e pelo delegado Veras, sendo libertado por um dos habeas-corpus requeridos pelo deputado federal Carvalho Neto, concedido pelo Supremo Tribunal Federal.

Eider faleceu em 27 de agosto de 1990.

JOSÉ FERNANDES MACHADO
(Advogado, Pastor Evangélico, Juiz de Direito)

Machado, pastor evangélico, funcionário do então Departamento do Correios e Telégrafos foi, também, uma das maiores vítimas da perseguição do 1964.

Através de Eunice, sua viúva, registro alguns episódios daqueles dias.

Preso pelo Exército nos primeiros dias de abril, foi levado para o quartel do I6° Regimento de Infantaria onde permaneceu por seis meses. Na Diretoria do então Departamento de Correios e Telégrafos ocupava o cargo do Inspetor Regional. Em alguns setores do então DCT havia, em 1964, delatores e caluniadores assumidos. A vida que Machado levou na prisão é semelhante à aqui relatada pelos outros presos.

Em um dia determinado para visitas aos presos políticos, Eunice compareceu acompanhada por um irmão de Machado, residente no Recife, o que tornou difícil a aproximação com o marido pelas restrições ao acompanhante. Na preocupação de vigia-lo esqueceram de revistar a roupa levada para Machado. Às onze horas da noite ela foi procurada em casa pelo tenente Calado, acompanhado por dois outros militares quo a obrigaram a acompanhá-los. No quartel, rodearam-na em tomo de uma mesa, para confirmar que o cunhado havia sido portador de uma carta "de outro comunista do Recife” Como não encontraram vestígios da carta, exigiam dela uma confirmação. Eunice entrou em desespero, ameaçou gritar, descontrolou-se e eles mandaram-na de volta com um motorista.

Machado foi solto por habeas-corpus, no mês de outubro.

Na ocasião de uma ação terrorista no aeroporto do Recife, quando colocaram uma bomba que explodiu no desembarque de alguns generais e matou um almirante, ele se encontrava naquela cidade, participando de um congresso de igrejas evangélicas. Regressou a Natal e foi novamente procurado por militares do Exército e da Policia. Chegando à Secretaria de Polícia para atender um chamado do secretário Ernâni Hugo, foi preso, algemado e, sem nenhuma explicação, transportado de avião para a Base Aérea do Recife. Ali foi duramente interrogado para confessar sua participação no atentado. Machado apresentou testemunhas da sua permanência no congresso e os pastores assinaram termo de responsabilidade, o que permitiu a sua liberação.

Demitido do emprego, Machado sobreviveu a muitas dificuldades econômicas, passando a residir, com a família, em casa de parentes. Conseguiu ajuda do professor Ulisses de Góes, que o contratou para ensinar na Escola Técnica de Comércio, e do professor Woden Madruga, então diretor da Escola Técnica de Comércio “Visconde de Cairu”, que o admitiu como professor de português. Woden conviveu alguns anos com Machado, guarda dele boas lembranças e fala com respeito da sua competência e responsabilidade pela formação dos alunos.

Nos anos setenta, Machado submeteu-se a concurso para professor do Departamento de Direito da UFRN, quando obteve o primeiro lugar, mas foi preterido e nomeado um outro candidato. Não foi o único a ser perseguido pela direção da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, nos anos da ditadura: diversos professores, estudantes e funcionários foram vítimas da delação interna e responderam a processos junto à Comissão de Investigação constituída por determinação do reitor Onofre Lopes, através das portarias de números 57, 65 e 70, dos dias 4 e 29 de maio e 3 de junho de 1964, respectivamente. A comissão era presidida pelo professor Genário Alves Fonseca, tendo como membros auxiliares os professores Antônio Pipolo, José ldelfonso Emerenciano e o capitão Hugo Manso.

Em outro concurso para Juiz de Direito, foi aprovado e nomeado.

No livro "O Cristo do Povo", o escritor Márcio Moreira Alves escreve sobre Machado o seguinte:

“Professor da escola dominical, presidente por duas Vezes da Federação da Mocidade Presbiteriana Independente do Norte, presbítero e secretário do Conselho da igreja, queria fazer sentir a presença de seus irmãos no grande debate social que então se realizava e onde a única influência cristã marcante era a dos católicos. O prefeito de Natal, Djalma Maranhão, realizava urna administração revolucionária, quebrando a anterior tradição imobilista e burocrática, lançando a campanha "De Pé no Chão Também se Aprende a Ler" e trazendo a discussão de temas de cultura popular para a praça pública. José Fernandes participava desses debates - sobre arte, cinema, educação - que semanalmente movimentavam o marasmo intelectual da pequena capital provinciana. Em sua repartição liderava os estudos de reivindicações salariais e na UBSPT, União Brasileira de Servidores Postais Telegráficos, fora eleito para o cargo de orador oficial, sendo, portanto, incumbido de saudar as personalidades políticas que visitavam a entidade.

As múltiplas atividades do jovem presbítero foram devidamente anotadas pelos organismos de informação militar que, mesmo no auge do delírio esquerdizante do governo Goulart, sempre funcionaram na anotação de possíveis subversivos e comunistas. Com o golpe de 1° de abril, as fichas foram imediatamente promovidas a libelos de acusação. José Fernandes foi preso a sete de abril, logo no primeiro bote da repressão, ficando sete meses na cadeia.”

José Fernandes Machado faleceu a 11 de setembro de 1982.


VULPIANO CAVALCANTI DE ARAÚJO
(Médico)

O médico Vulpiano Cavalcanti, considerado um competente profissional, era militante do Partido Comunista Brasileiro. Preso nos primeiros dias de abril de 1964 foi conduzido, inicialmente, para o quartel da Polícia Militar.

Com a experiência de outras prisões onde, inclusive, sofreu torturas físicas ajudou os demais presos com o exemplo de sua formidável resistência.

Após maus de oito meses de prisão, foi libertado por habeas-corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal, requerido, igualmente, pelo deputado federal Carvalho Neto.

Faleceu em Fortaleza, a 19 de novembro de 1988.

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Exposição de livros

As prisões se sucediam e, na Prefeitura, vivia-se a euforia da vitória.

Pretensos intelectuais, contando com o apoio do "Diário de Natal" que, em 1964, tinha como superintendente o jomalista Luís Maria Alves, fizeram, mediante critérios próprios, a seleção dos livros apreendidos nas bibliotecas municipais e nas residências dos presos e organizaram uma exposição dos mesmos, na então Galeria de Arte da Praça André de Albuquerque. O público foi mobilizado e compareceu à Galeria para conhecer a prova do crime de subversão praticado através das pequenas bibliotecas populares que serviam às populações dos bairros carentes da cidade.

Pelo amplo noticiário da imprensa, pelas fotografias de meia página dos jornais e pela leitura dos seus títulos, podia-se observar que a maioria dos livros eram os que haviam sido recebidos por doação da Biblioteca do Exército, através do General Humberto Peregrino, seu então diretor. Aqueles livros, aliás, eram raramente procurados pelos leitores que pouco se interessavam por assuntos estritamente militares; no entanto, foram o ponto crítico de todos os interrogatórios a que fui submetida. Eram títulos sugestivos e direcionados à divulgação de assuntos militares e, por causa deles, fui acusada de que estariam sendo usados para o ensinamento de táticas de luta armada.

A notícia que acompanhava a fotografia dos livros, publicada pelo "O Diário de Natal", é maldosa e irresponsável:

“Alguns dos livros apreendidos na Biblioteca Popular da Prefeitura na praça André de Albuquerque nesta capital. As obras editadas pela Biblioteca do Exército, na foto acima, embora de circulação autorizada parecem demonstrar a preocupação no preparo militar para guerrilhas.”

Nenhum outro noticiário referia-se às coleções de escritores como José de Alencar, Monteiro Lobato, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Castro Alves, Raquel de Queiroz e outros que compunham as bibliotecas populares. De, aproximadamente, oito mil livros que compunham as dez bibliotecas da Prefeitura - três em praças públicas, uma no Centro de Formação de Professores, um ônibus-biblioteca volante e cinco caixas-bibliotecas com 150 livros cada, nos acampamentos escolares, mais o acervo de reserva - selecionaram uns poucos livros que tratavam da realidade político-social do Brasil e fundamentaram desonestamente as acusações. Algum tempo depois, a amiga Nadja Amorim Barreto encontrou, num salão de cabeleireiro, a esposa de um oficial do Exército lendo, como subsídio para estudos universitários, um livro carimbado pela Diretoria de Documentação e Cultura e pertencente às caixas de empréstimos dos já desativados acampamentos da campanha de alfabetização.

Era impossível acreditar que considerassem os livros como preparação para guerrilhas apenas por ignorância, principalmente porque alguns responsáveis pela organização da exposição eram, na maioria, pessoas de formação universitária e tidos como intelectuais da cidade. Estavam todos possuídos pelo delírio do poder, perturbados pela vibração de um patriotismo falsamente direcionado e covardemente preocupados em agradar aos militares. Agradaram aos militares mas destruíram, completamente, um plano cultural que, se continuado, poderia ter modificado a lamentável e dramática situação do analfabetismo em Natal.

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Governador regulamenta Ato Institucional n° 1 e nomeia Comissão de Investigação

No dia 23 de abril o jornal "A Tribuna do Norte" publicou, na íntegra, o decreto do governador que regulamentou o Ato Institucional n° 1, expedido pela Junta Militar que assumiu a presidência da República, adaptando-o para a aplicação nas leis estaduais.

Pelo mesmo decreto, o governador nomeou uma comissão de "alto nível" para investigar atividades subversivas e antinadonais. A referida comissão era presidida pelo então Secretário de Justiça do Estado, Sr. Jocelin Vilar, e composta pelos então Secretários de Estado. coronel Ulisses Cavalcanti, da Secretaria de Segurança; Abelardo Calafange, da Secretaria da Saúde; comandante da Polícia Militar. Coronel Sílvio Ferreira e coronel, também da Polícia Militar, Luciano Veras Saldanha.

Apesar do alto nível dessa comissão, o governador do Estado importou, da Secretaria de Segurança de Pernambuco, dois policiais especializados, um deles pelo FBI dos Estados Unidos. e constituiu, por decreto de 17 de abril e republicado no dia 29, mais uma Comissão de Investigações. Esta comissão, presidida pelo delegado Carlos Moura de Morais Veras e assessorada pelo policial José Domingos da Silva, foi designada para “apurar com jurisdição em todo o Estado, a prática de atos contra a segurança do país e regime democrático com a probidade da administração pública ou crime contra o Estado e seu patrimônio, a ordem política e social ou atos de guerra revolucionária.”

Referendadas pelas leis de exceção, todas as comissões trabalhavam em perfeita sintonia com os militares responsáveis pela repressão no Estado. Necessário se faz evidenciar a superioridade do desempenho profissional do delegado Veras sobre todos os outros componentes das comissões civis e militares. O encarregado do inquérito militar do Exército para o Rio Grande do Norte, o capitão Ênio Lacerda, era um militar temperamental e limitado intelectualmente. O delegado Veras tomou-se, portanto, o cérebro dos interrogatórios e enquadramento dos presos na Lei de Segurança Nacional destacando-se, também, pelo uso da tortura psicológica.

Na imprensa local, as noticias continuavam amedrontando os perseguidos. A “Tribuna do Norte”, de 28 de abril, publicava, em manchete:

"COMEÇA A FUNCIONAR HOJE A COMISSÃO QUE EXECUTARÁ ATO INSTITUCIONAL.”

Na edição de 29 de abril:

Comissão do Estado quer nomes de funcionários subversivos: A Comissão nomeada pelo governador Aluízio Alves para promover a execução do Ato Institucional no Estado, reunida ontem pela segunda vez deliberou que todos os secretários de Estado e chefes de serviços enviarão listas completas dos funcionários para que através dos arquivos da Secretaria de Segurança Pública, sejam identificados os que estão comprometidos com os movimentos subversivos e comunistas que a revolução de l° de abril cortou. A reunião teve caráter sigiloso e realizou-se às 17 horas na CASOL. Presente o Secretário de Interior e Justiça, Jocelin Vilar. Coronel Luciano Veras, Secretário de Segurança Ulisses Cavalcanti, Secretário de Saúde Abelardo Calafange e comandante da Polícia Militar, coronel Sílvio Ferreira. Outros assuntos debatidos não foram tomados públicos pelos participantes da reunião.”

A “Tribuna do Norte”, de 12 de maio, noticia:

COMISSÃO DO ATO INSTITUCIONAL COMEÇA A OUVIR IMPLICADOS.

A Comissão do Ato Institucional esteve reunida ontem, mais uma vez, no Palácio da Esperança, prosseguindo com a apuração das atividades subversivas e a corrupção funcional dos funcionários do Estado. Até o momento a Comissão tinha solicitado às secretarias e departamentos do governo do Estado, a relação dos funcionários implicados em atos contra o regime democrático e na malversação dos dinheiros públicos. Espera-se, na reunião de hoje à tarde, a Comissão Institucional comece a ouvir os primeiros implicados.”

Na “Tribuna do Norte”, de 15 de maio, outra notícia:

UM ADVOGADO ENXUGA MATERIAL SUBVERSIVO E OUTRO É ESPERADO HOJE VINDO DO RECIFE.

O presidente da Comissão de Inquérito, policial civil advogado Carlos Veras passou o dia de ontem enxugando material apreendido nas residências dos elementos que se encontram presos mas esperava durante a noite, concluir o interrogatório do líder sindical Evlim Medeiros. Ontem à noite, também estava sendo esperado de volta do Recife, o advogado José Domingos que também faz parte da Comissão, que da capital pernambucana trará elementos para ajudar a conclusão dos processos.”

“VULPIANO CAVALCANTI. O médico Vulpiano Cavalcanti, preso no início da semana, encontra-se detido na sala de entrada do Quartel da Polícia Militar. Ontem recebeu dos familiares três exemplares da obra de Shakespeare, cujo quarto centenário de morte, o mundo comemora atualmente. Encontra-se em prisão diferente dos demais detidos em virtude de ser cardíaco, sempre é visto numa janela que dá para o portão de entrada do quartel, fumando e bem disposto. O Advogado Carlos Veras informou que as celas que se encontravam em péssimo estado de conservação foram restauradas, inclusive nas instalações sanitárias, frisando que estão aparelhadas para receber novos hóspedes.”

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Depoimento na Comissão Municipal

Em maio recebi uma intimação para depor na Prefeitura, às vinte horas de um dia determinado. Apresento-me na hora marcada. A comissão encontrava-se instalada no Salão Nobre da Prefeitura, o mesmo salão onde se realizavam as reuniões de trabalho presididas pelo prefeito Djalma Maranhão. Fiquei muito tensa quando entrei no recinto fortemente iluminado. Em torno de uma mesa estavam sentados os senhores Rodolfo Pereira, presidente, e os membros que a compunham, capitão-tenente da Marinha Humberto Romero, capitão do Exército Gerardo Parente e o coronel da Policia Militar Severino Bezerra. Fui recebida com indisfarçável hostilidade e desprezo. Senti-me naturalmente acuada e desafiada. O oficial da Polícia Militar permaneceu de cabeça baixa e em silêncio, parecendo-me constrangido e pouco à vontade. O depoimento foi muito difícil porque é difícil receber o preconceito jogado na cara, como uma pedrada. Eu não estava preparada para aquele encontro de ódio e precisei lutar muito para me defender. Envolveram-me na agressividade, fui também agressiva quase senti-me forte. Surpreendia-me a irresponsabilidade de fazê-los compreender a importância dos programas culturais da Diretoria de Documentação e Cultura - DDC. lnsistiam na acusação de que através das bibliotecas populares iríamos preparar guerrilhas. Estavam de posse das estatísticas de empréstimos de livros que atingiram uma média mensal de dois mil e quinhentos em cada Posto e não acreditavam que, sem interesses políticos e subversivos, a DDC emprestasse livros a uma comunidade popular.

Acusaram-me, também, de haver autorizado a entrega de livros pela Livraria Universitária, até uma certa importância em dinheiro, a uma associação de militares da Marinha, que havia solicitado ao prefeito a doação de alguns livros para formação de uma pequena biblioteca. Exibiam o ofício, através do qual eu fizera a autorização, como se fosse um documento de subversâo política. Um ano de rotina administrativa era transformado, de repente, em crime contra a segurança nacional. Foi um enfrentamento desigual e inútil. Usamos as mesmas palavras, falamos dos mesmos assuntos mas com sentidos diferentes; não podíamos, portanto, nos entender.

Saí do interrogatório extremamente cansada. Tentaram esmagar a minha resistência, confundiram as minhas respostas e usavam qualquer palavra para implicar outros companheiros. Citavam nomes de pessoas e insistiam nas suas participações em atos subversivos, como se dispusessem de documentos e provas. Excetuado o coronel da Polícia Militar, foram todos muito cruéis.

Em outras comissões pude conhecer os que não eram cruéis mas eram despreparados. Na comissão composta por funcionários do então Departamento de Correios e Telégrafos, um telegrafista ficou irritado quando lhe respondi que não me sentia na obrigação de ler todos os livros que a DDC expunha para emprestar. Considerou-me, então, responsável por um ato subversivo que não sabia explicar, mas insistia que não se podia emprestar livros sem antes havê-los lido. Argumentava sem maldade, apenas por ignorância.

Assim, eram preparados os termos de acusação. Na comissão dos Correios e Telégrafos, apenas o presidente tinha condições intelectuais para interrogar, mas todos o faziam e tinham as suas conclusões equivocadas incluídas nos relatórios de acusação.

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Diretoria de Documentação e Cultura

Em 1964, a tão questionada e perseguida Diretoria de Documentação e Cultura da Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Saúde, como então se denominava, ocupava, apenas, poucas dependências da casa da avenida Duque da Caxias, 190, na Ribeira, onde estavam também instalados o gabinete do secretário, as diretorias de Saúde e de Administração.

A DDC mantinha, como linha básica dos seus programas, a democratização da cultura, até então elitizada. Assim é que, através das Praças de Cultura, adaptação das já existentes no Movimento de Cultura Popular do Recife e criadas pelo professor Paulo Rosas, compostas de bibliotecas populares com jornais murais, quadras de esporte e parques infantis, promovia a integração com a comunidade dos bairros onde as praças eram instaladas, já em número de três.

No centro da cidade, precisamente na praça André de Albuquerque, a DDC mantinha uma Galeria de Arte onde eram promovidas as exposições, uma biblioteca para leitura no próprio local, frequentada especialmente por comerciários, uma concha acústica para apresentações teatrais, concertos musicais e cinema ao ar livre.

Praças de cultura com feiras de livros, arte, discos, exposições culturais, noites de autógrafos, apresentações musicais e folclóricas eram promovidas, anualmente, no centro da cidade.

Como atividades permanentes da DDC havia o Teatrinho do Povo (depois teatro "Sandoval Wanderley", na avenida Presidente Bandeira); o Museu de Arte Popular, Hemeroteca, Setores de Pesquisa. Divulgação Cultural e Valorização do Folclore, Promoção de Festas Tradicionais e Folclóricas eram preparadas, ainda que precariamente, na sede da Secretaria de Educação, Cultura e Saúde.

Estabelecido o diálogo cultural com a comunidade, sem assistencialismo e sem demagogia, construíamos, juntos, o sonho de integrado com a cultura popular, principalmente nos bairros onde o povo começava a ler e a participar das praças de cultura e esporte. Não era por acaso que nos bairros das Rocas e Quintas, os empréstimos de livros atingiam a média dos dois mil e quinhentos mensais, e as promoções culturais recebiam um público talvez nunca repetido.

Os vencedores do golpe entenderam que, através da leitura nas bibliotecas populares, estimulava-se a preparação de guerrilhas, apavoraram-se com os livros nas mãos do povo e não aceitaram explicações nem defesa dos programas culturais realizados pela DDC.

Dos livros que foram apreendidos nas bibliotecas, o então assessor da DDC Professor Paulo de Tarso Correia de Melo, recolheu alguns, que se encontram em seu poder, ainda com os carimbos da DDC. Pela qualidade dos mesmos pode-se, ainda hoje, avaliar o que eram as bibliotecas populares: “Lord Jim” (Joseph Conrad), “Viola de Bolso” (Carlos Drummond de Andrade), “O Moinho do Rio Floss” (George Eliot), “Judeus sem dinheiro” (Michael Gold), “A luz da manhã” (Robert Nathan), “Juízo Universal” (Giovanni Pappini), “Ofício de Vagabundo”' (Vasco Pratolini), “São Bernardo” (Graciliano Ramos), “Correio Sul”. (Saint - Exupéry), “O advogado do diabo” (Morris West), “Maravilhas do Conto Inglês” e "Obras-Primas do Conto Moderno”.

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Governo do Estado reafirma a sua integração com a obra revolucionária

Em 17 de maio, o jornal “Tribuna do Norte”, publicou novas informações sobre a integração do Estado com o regime militar:

ALUÍZIO ALVES AFIRMA QUE A ADMINISTRAÇÃO DO ESTADO PROSSEGUE INTEGRADA DENTRO DA OBRA REVOLUCIONÁRIA.

O governador Aluízio Alves ontem convocou o povo através da cadeia da esperança para a conjuntura de esforços na obra de reconstrução da revolução, e que a sua administração prossegue imperturbável sem ódio ou medo, levantando o Estado do caos aonde se encontrava. O governador leu o editorial da Tribuna do Norte de ante ontem intitulado: Reflexão - dizendo que não perderia tempo na hora em que o país exige serenidade e trabalho com uma oposição que faz da palavra governo reflexo condicional associando à palavra roubo.”

O mesmo jornal divulgou, em 24 de maio, uma entrevista do governador Aluízio Alves concedida ao canal 6, televisão do Recife:

REVOLUÇÃO DEVOLVEU TRANQUILIDADE AO PAÍS E DARÁ AO POVO PAZ PERDIDA;

Entrevistado às 22 horas de ontem pelo canal 6, TV - Rádio Clube, o governador Aluízio Alves, falando sobre a revolução de 31 de março, disse que a revolução devolveu a tranqüilidade ao país, acabando com as greves, algumas deflagrada apressadamente, outras injustas. O risco que corremos agora é o de que a revolução seja confundida com a paz estéril. A política do Brasil estava muito viciada, era o jogo dos interesses entre o legislativo, executivo e judiciário, a revolução veio para resolver tudo isto. Teremos no governo do presidente Castelo Branco, continuou, o esforço sério e devorado a resolução dos problemas; não o jogo político ideológico do passado que sob o rótulo das reformas mesclava os interesses subalternos e antidemocráticos. Espero que a revolução dê ao povo a paz perdida por muitos porque democracia não é opção com uns tentando superar os outros, mas uma forma de governo onde todos tenha as mesmas oportunidades. A revolução ainda está na fase policial, com o inquérito e as prisões. É verdade que já esta semana o presidente Castelo Branco enviará diversos projetos ao Congresso Nacional de alto interesse para a nação. Mas ainda é cedo para se avaliar sua importância total na vida brasileira, afirmou.”

A 14 de julho é ainda a “Tribuna do Norte” que destaca a atuação da Comissão de Investigação instituída pelo govemo do Estado:

O INQUÉRITO DE SUBVERSÃO CONTINUA NO QUARTEL DA POLÍCIA MILlTAR.

Os inquéritos que investigam a subversão no Estado do Rio Giande do Noite continuarão funcionando em três locais distintos: Quartel da Polícia Militar. Quartel do 16 RI e Quartel do RO. O advogado Carlos Veras, presidente do chamado Inquérito da subversão, com sede no Quartel da Polícia Militar, informou à Tribuna do Norte que: Por enquanto aquele inquérito prosseguirá na Polícia Militar embora as suas atividades contem com a colaboração dos outros dois, que são dirigidos por autoridades militares.”

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Continuam as prisões

MOACYR DE GÓES
(Advogado, Professor Aposentado da UFRN e UFRJ, Procurador Aposentado da Prefeitura Municipal de Natal, ex-Secretário Municipal de Educação de Natal e do Rio de Janeiro, Escritor)

De 2 de abril e por uns dez dias Moacyr esteve na clandestinidade. Depois, foi a fase da prisão domiciliar. O cárcere mesmo começou no dia 26 de maio, na Polícia Militar, e terminou no dia 15 de novembro de 1964, no 16° Regimento de Infantaria, por força de habeas-corpus do Supremo Tribunal Federal. lsto está contado no seu livro "Sem Paisagem - Memórias da Prisão." Não vale a pena repetir, A sua contribuição para este relato afasta-se da narrativa e propôs uma reflexão que se segue:

“Aprendi em 1964, que o mundo dos homens se divide em dois: o Reino da Liberdade e o Reino da Opressão. E ainda: poucos são os homens que compartilham do Reino da Liberdade, enquanto o Reino da Opressão é densamente povoado. E mais: que os homens que vivem subjugados no Reino da Opressão, quando politizados, organizam-se e lutam para destruir as cadeias que os deixam submetidos.

Convivi com homens, em 1964, que tinham os olhos postos no Reino da Liberdade, não somente porque a prisão política lhes tirara o direito constitucional de ir e vir. Eles sabiam - e com eles eu aprendi - que a questão da liberdade é muito mais complexa.

Claro: no cotidiano de um tempo que parece parado, as grades que nos roubam a paisagem e a convivência dos entes queridos são intoleráveis. Claro: ali a tortura se conjuga com o medo porque não podemos saber, antecipadamente, quais são os próprios limites - afinal somos humanos. Claro: é inadmissível aceitar a legitimidade do carcereiro. Assim a prisão política fascista é o ilógico, o antinatural, as violências física e mental instaladas, irredutíveis.

Mas, cuidado com as reflexões apressadas e superficiais ou, como dizia Gide: "não me entendam tão depressa." Aqueles homens sabem que não basta transpor aquelas grades para colher o Reino da Liberdade. A conquista do direito de ir e vir é fundamental e importantíssima. Todos lutam por ela, mas ela só não significa a vitória sobre o Reino da Opressão. Por isso é que dizia, um pouco atrás, que a liberdade é uma questão complexa.

O que é humano não me é estranho - esta lição de Marx foi aprendida na carne. As calejadas mãos dos trabalhadores do cais, os pés gretados dos operários das salinas, os ombros curvos dos camponeses, os olhos perscrutadores dos intelectuais, a palavra solta dos estudantes; e mais: os silêncios, a espera, a solidão, as noites indormidas, o medo, a saudade, a solidariedade, o riso como arma de defesa todo esse universo vivido com meus companheiros no cárcere me ensinou muitas coisas. Inclusive que a Liberdade, como Javé, "tem muitas moradas.”

Ultrapassadas as grades, restou um longo caminho a percorrer caminho que tem sido partilhado com outros homens subjugados pelo Reino da Opressão e jamais solitário. Peregrino em demanda da Terra da Promissão, do Reino da Liberdade; sei que a utopia está ao alcance das mãos - desde que elas coletiva e solidariamente - se juntem.

Na América Latina, a chegada do Reino da Liberdade (inclusive para os egressos dos cárceres de 1964) passará, simbolicamente, pela travessia do Mar Vermelho e do Rio Jordão e pela queda de Jericó, a cidade fundada sobre a injustiça, isto é, o Reino da Opressão.

Nestes tempos de travessia é preciso abrir as cadeias que se chamam: fome, miséria, doença endêmica, analfabetismo, expropriação do trabalho alheio, alienação, injustiça, ressentimento, desamor, desespero.

Aí chegaremos ao Reino da Liberdade, também chamado Reino da Felicidade. Então, construiremos a paz.


LEONARDO BEZERRA
(Jornalista, Geógrafo, ex-Professor da então Faculdade de Filosofia, ex-Presidente da Associação Norte-Rio-Grandense de Imprensa)

Jornalista e intelectual de vasta cultura, Leonardo escrevia diariamente uma coluna política no jornal "O Diário de Natal", onde comentava com inteligência e fina ironia os acontecimentos locais e nacionais.

Para fazê-lo calar, aproveitaram a onda das prisões por “subversão” e não respeitaram sequer a doença que o atormentava diabetes crônica e grave que o levou, tempos depois, à morte. Preso pelos delegados da Comissão Estadual de Investigações, permaneceu no quartel da Polícia Militar por mais de vinte dias, sendo liberado em estado de quase coma.

A prisão de Leonardo foi o absurdo dos absurdos, mesmo para um regime de exceção. Seu nome sequer constou no relatório dos delegados Veras e Domingos, apesar de haver sido interrogado pelo Veras. Não houve acusação A única referência da sua passagem pelo cárcere encontra-se na nota do jornal “A Tribuna do Norte”, de 15 de maio:

"LEONARDO

O jornalista Leonardo Bezerra, preso ante ontem, teve apreendido em sua residência material literário que provoca a atuação como elemento do partido comunista brasileiro. Apesar de estar incomunicável, recebeu visita de familiares.”

Ah, Leonardo! que grandeza você teve e que belo exemplo nos legou, perdoando - como o fez - os algozes, e rezando por eles!


JOSEMÁ AZEVEDO
(Engenheiro Civil e Sanitarista, ex-Presidente da Companhia de Águas e Esgotos do RN, ex-Secretário de Serviços Urbanos da Prefeitura de Natal, Empresário)

Em 17 de junho o jornal “A Tribuna do Norte” divulgou a prisão do universitário Josemá Azevedo, com a seguinte notícia:

ESTUDANTE DE ENGENHARIA, LIGADO AO EX-PREFEITO FOI PRESO ONTEM.

O estudante de engenharia Josemá Azevedo, que fazia parte do staf do ex-prefeito Djalma Maranhão. na campanha De Pé no Chão Também se Aprende a Ler, elemento ligado aos meios sindicais e estudantis, foi detido ontem, pela comissão que assessora o inquérito da subversão, ficando preso no quartel da Policia Militar. Josemá Azevedo é apontado como uma das peças-chave do chamado movimento subversivo em Natal pelas suas armações nos setores de alfabetização e conscientização, que tinha a cobertura do prefeito Djalma Maranhão.”

Na campanha "De Pé no Chão Também se Aprende a Ler", Josemá era o responsável pelos Círculos de Cultura, como eram chamadas as classes de alfabetização que aplicavam o método de alfabetização de adultos do professor Paulo Freire, em Natal. Ele lembra um episódio que testemunhou, em um dos Círculos de Cultura, ocasião em que uma aluna, de idade aproximada de 50 anos, empregada doméstica do ex-governador Cortez Pereira, com menos de quarenta horas-aula, entregou-lhe um bilhete para o prefeito, afirmando que, apesar de ser adversária dele, mandava aquele bilhete de agradecimento pela oportunidade que lhe era oferecida para, enfim, aprender a ler. Assessorava, ainda, o programa de interiorização da campanha "De Pé No Chão Também se Aprende a Ler", que começava a ser levada a outros municípios, através de convênios entre as prefeituras de Natal e do interior do Estado.

Josemá teve destacada atuação na política estudantil. Como membro do Diretório Estudantil da Faculdade de Engenharia, participou de congressos e representou o Estado na assembléia nacional da União Nacional de Estudantes, quando foi decidida a greve nacional na luta pela representação de um terço de estudantes nos conselhos universitários, No dia 3l de março de 1964, encontrava-se em Bem Horizonte representando o Movimento de Ação Popular do Estado (AP) em reunião nacional naquele Estado. Voltou a Natal onde ficou, sem ser molestado, até o dia 17 de junho, quando foi retirado de uma sala de aula pelos auxiliares do delegado Veras e colocado em uma cela de segurança máxima, que havia sido construída, no quartel da Polícia Militar, destinada a presos de alta periculosidade. A cela possuía um metro e cinqüenta centímetros de diâmetro e o preso media um metro e setenta centímetros de estatura. Naquela cela de castigo substituiu o bancário Campelo, um dos prisioneiros mais torturados do Estado. Não lembra quantos dias passou ali. Recorda, apenas, que os demais companheiros preocupavam-se em conforta-lo. Ele os ouvia mas não conseguia ver ninguém. Apesar de muito jovem ou até por isso, Josemá reagiu com irreverência à situação e não lembra o medo e a solidão por que passou. Do depoimento recorda apenas que a sua atividade estudantil foi pouco questionada, mas foi duramente interrogado sobre as suas atividades na campanha “De Pé no Chão Também se Aprende a Ler”. Comenta que conseguia reprimir na memória o sofrimento e a insegurança por que passava, transformando-os numa úlcera gástrica que tratava no ambulatório do quartel para onde era levado, algemado e escoltado, quando necessitava de atendimento médico. Afirma que reprimia tudo para poder viver e, ainda hoje, passados muitos anos, sente dificuldades para seqüenciar a sua história. Da prisão prefere o silêncio.


NEI LEANDRO DE CASTRO
(Advogado, Escritor, Poeta, Publicitário)

O poeta e escritor Nei Leandro de Castro foi preso em fins de junho de 1964. À hora do almoço, dois agentes da repressão entraram em sua residência e convidaram-no a prestar um depoimento no quartel da Polícia Militar. Um dos agentes, ele já conhecia: era lvan Benigno. informante infiltrado nos meios universitários que dedurou e ajudou a prender dezenas de estudantes.

No quartel colocaram-no numa solitária, onde ficou incomunicável durante dois dias. Na noite do primeiro dia recebeu do carcereiro um maço de cigarros fechado; dentro dele, para sua surpresa, havia uma mensagem de apoio de outros companheiros de prisão. No terceiro dia foi transferido para um pavilhão do mesmo quartel, onde conviveu com Vulpiano Cavalcanti. Djalma Maranhão, Luiz Gonzaga de Souza, Aldo Tinoco, Carlos Alberto Galvão, Hélio Vasconcelos, Moacyr de Góes, Paulo e Guaracy de Oliveira. Josemá Azevedo e Geniberto Campos. Entre eles, encontrava-se um velho camponês, cujo nome não lembra, porém jamais pôde esquecer as marcas de tortura na parte interna de suas coxas.

Certa madrugada o delegado Veras e o capitão Domingos mandaram buscá-lo para uma sessão de interrogatório. Nei ficou numa sala vazia e escura, sentado num tamborete, uma luz muito forte contra os olhos. Os dois circulavam em sua volta fazendo ameaças e encenações. Gritavam, crivavam de perguntas, exibiam os livros “subversivos” que havia escrito: “Voz Geral”, poesia e “Revolução e Contra-Revolução”, peça de teatro. Quando lhe pediram nomes de comunistas de Natal respondeu o que haviam antes na prisão “os comunistas são Vulpiano Cavalcanti e Luiz Maranhão”. O capitão Domingos baixou-lhe a mão com força nas costas e gritou “Não queira ser mais imbecil do que você já é, porra!”

Os interrogatórios não tinham subsídios nem informações que pudessem incriminá-lo. Não sabiam que ele era candidato a presidente do Diretório Acadêmico “Amaro Cavalcanti", da então Faculdade de Direito da UFRN, com o apoio dos comunistas e da esquerda católica. Não sabiam que ele havia ingressado, às vésperas do golpe, na Ação Popular, formando a diretoria natalense, com Moacyr de Góes, Geniberto Campos e Josemá Azevedo. O livro de poemas e a peça de teatro que permaneceu inédita, dela não restando uma só cópia, foram insuficientes para o seu indiciamento, o que não o livrou das três semanas de prisão e demissão do cargo que exercia na Secretaria de Estado das Finanças, por ato do governador Aluízio Alves.

Em uma madrugada, o capitão Domingos fez com Nei os costumeiros exercícios de tortura psicológica; levou-o do quartel onde se encontrava e simulou que o estava transferindo para o 16° Regimento de Infantaria. Chegando ao pátio daquele quartel, alegou que as celas estavam lotadas e ordenou ao motorista que tomasse o caminho do aeroporto, dizendo que iria levá-lo para Fernando de Noronha. Perguntou, então, se Nei tinha algum parente que residisse perto, de quem pudesse se despedir. Respondeu que sim e dirigiram-se para a casa do irmão Airton de Castro, que morava numa rua transversal. Eram 4 horas da manhã quando bateram à porta da casa de Airton; capitão, na farsa de seu sadismo, assistiu ao encontro emocionado dos irmãos e ao forte abraço de despedida. De repente, jogou a valise de Nei no chão e disse para Airton: "Toma conta de meu irmão" Retirou-se sem explicações. Nei ficou em liberdade.

A notícia da prisão de Nei foi publicada um "A Tribuna do Norte". de 11 de julho:

INQUÉRITO DA UNIVERSIDADE CONCLUÍDO COM PRISÃO DE POETA.

Com a prisão do acadêmico e poeta Nei Leandro de Castro encerrou-se, quarta-feira, o inquérito da Universidade, instaurado para apurar atividades subversivas entre os professores e alunos das escolas superiores de Natal. A acusação feita contra o poeta Nei Leandro de Castro foi a de ter publicado um livro de poemas “Voz Geral”, onde externa sua ideologia através do combate aos patrões, e de um canto de louvor a empregados e ser autor de uma peça teatral considerada pela Comissão de Inquérito altamente comunizante.”

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Os que não foram presos

MARIA CONCEIÇÃO PINTO DE GÓES
(Mestre em História, Professora da UFRJ, ex-Sub-Reitora de Graduação da UFRJ, Pesquisadora, Escritora)

Convidada a documentar a experiência vivida em 1964, Conceição declarou textualmente o seguinte:

“O golpe militar de 1964, como dizia um amigo, foi um incêndio em nossas vidas. Tanto ao nível pessoal quanto ao nível político. Colocamos os amigos em uma peneira, muitos não passaram. Mas os que passaram estão fortalecidos por uma amizade indescritível. Ainda hoje não sei o que foi mais difícil, se ver os parentes e amigos serem arrancados de suas casas, ouvir as ameaças de prisão, ter que responder às perguntas das crianças, pôr a mão no ventre e com doce ternura acalmar o filho que se enrijecia como cristal de pedra em sua fragilidade de suportar um mundo que lhe vinha ameaçador através do cordão umbilical, engolir o choro e comparecer diante de uma comissão de inquérito para ouvir ameaças e idiotices. Mas, quando me vêm essas lembranças que são dolorosas, eu sinto mais forte a presença de amigos como Roberto Furtado, Paulo Rosas, Aécio Aquino, Argentina Rosas, Terezinha Aquino, Bernadete e Cláudio Ramalho, Leide Moraes, José Pacheco e Nenen, Sileno Ribeiro de Paiva e Cristina, a presença solidária da familia, irmãos e cunhados. Mas devo destacar, entre todos. Leônidas, mais carinhosamente Leon, meu irmão que, em sua conhecida generosidade, jogou tudo para o alto e grudou em mim. De manhã, bem cedinho, ao som do "bigorrilho", lá íamos nós procurar notícias, pegar atestados das figuras importantes da cidade, políticos ou intelectuais, que afirmassem que o trabalho da Prefeitura não era subversivo. Leon sempre soube que aquilo era inútil mas me deixava calma e com sensação de estar ajudando aos presos.

Nem sempre fomos bem-sucedidos. Alguns intelectuais que freqüentavam a casa de Djalma Maranhão e os palanques da Prefeitura recusavam-se a atestar alegando não conhecerem a fundo os problemas da Prefeitura. Foi assim com Luís da Câmara Cascudo, quando pedi-lhe um depoimento sobre o trabalho cultural da Diretoria de Documentação e Cultura, com o qual tantas vezes havia colaborado.

Leon acompanhou-me à Prefeitura onde prestei depoimentos à Comissão de Inquérito que apurava a “subversão” na área do municipio de Natal. Era noite e eu tinha muito sono. Na entrada encontrei o coronel Mário Cabral, da Policia Militar, que era amigo de Djalma. Ele tentava me orientar: "Diga somente sim ou não. " A acusação, até hoje, é para mim uma incógnita. Não sei se me acusavam de participar de discussões em sindicatos, de ser casada com Moacyr de Góes, de ser vice-diretora do Ginásio Municipal, de ter assistido as discussões da Cartilha de Alfabetização de Adultos, da criação de Comitês Nacionalistas e, finalmente, de ajudar, ultimamente, as mulheres de outros presos. Enfim, o Dr. Otto de Brito Guerra escreveu uma brilhante defesa e me deixaram com a recomendação de ficar quieta. Assim, às pessoas que me procuravam eu sugeria que procurassem D. Eugênio Sales, arcebispo de Natal.

Nem sei quantas vezes fui ao Recife, em busca de contatos. Tinha sempre a sensação de carregar água num cesto. Mas, Leon e eu nos divertimos algumas vezes. Lembro um dia em que foi celebrado um Te-Deum, quando encontramos uma antiga professora, portando uma bandeira nacional e uma fita de filha de Maria, tiramos um “fino” com o carro,a mulher com bastante agilidade subiu a calçada sem entender os nossos gritos de: "Sai da frente, maluca!" Outras horas em que era impossível não se ter esperanças, conversara com Dona Jacira Furtado, uma mulher absolutamente extraordinária, honesta, sincera, que contava as suas experiências de 1935 com inteligência e bom humor. E houve um momento de grande felicidade, o nascimento de Leon, meu filho. Dr. Leide e Leon, meu irmão, carinhosos e comovidos. A ausência do pai já anunciada ameaçadoramente pelo Veras e pelo capitão Lacerda, quando diziam: “Prepare-se para ter o filho sozinha."

O mais difícil estava por vir para mim. Sair de Natal e deixar meus filhos, um com apenas três meses. Isso foi demais. Uma saudade nunca mais curada. Ainda vejo os seus rostinhos contraídos, no momento de despedida e aquela sensação que podia ser a última vez.


TEREZA BRAGA
(Advogada, Vice-Presidente da Comissão de Defesa do Menor, ex-advogada da Comissão de Justiça e Paz da Paraíba)

BERENICE FREITAS
(Advogada, escritora)

Em 1964, a advogada Tereza Braga era ainda universitária. Conforme relata, ficou impressionada com o processo cultural deflagrado em Natal, pelo então prefeito Djalma Maranhão. Como universitária, engajou-se na luta estudantil, conheceu o professor Luiz Maranhão, de quem se tornou amiga, filiou-se à União Nacional de Estudantes e ingressou no Partido Comunista Brasileiro, exercendo a militância junto à classe operária e ferroviária.

Na semana anterior ao golpe militar, Luiz Maranhão fez-lhe a seguinte advertência: “Tereza, você se prepare. Você é tão criança e está acontecendo uma coisa gravíssima: o produto interno bruto zerou. Há uma cumplicidade entre as forças de extrema esquerda e extrema direita. Nenhum país resiste com o PIB a zero e as greves que se fazem estão empurrando o Brasil para um golpe de extrema direita.” Tereza não se preparou, não se tocou nem mesmo com o susto que tomou quando, na noite escura de 31 de março, descendo do carro de Paulo Oliveira, na Praia do Meio, em frente à residência do médico Vulpiano Cavalcanti, pisou num corpo estendido sobre a calçada, verificando que se tratava de um militar em exercício de treinamento, Pelo menos, foi o que supôs, pois muitos outros militares encontravam-se estendidos sobre as calçadas que, àquela época, eram quase desertas.

Na manhã de 1° de abril, ouviu, através de um rádio, a leitura da nota oficial do prefeito Djalma Maranhão, em defesa da democracia e denominando a prefeitura "QG da Legalidade". Colocou na bolsa uma escova de dentes e dirigiu-se à prefeitura, onde se encontrava, à noite, quando sofreu o impacto da invasão pelas tropas militares. Tereza lembrou aquela noite com certo nervosismo, relatou que estava sentada na ante-sala do gabinete do prefeito, conversando com Berenice Freitas. quando ouviu os passos fortes e cadenciados da patrulha do Exército, subindo os degraus da escada. Os militares entraram gritando: “Pra fora, cambada de comunistas filhos da puta!” Com o susto, Tereza levantou-se. Um militar obrigou-a a sentar e proibiu que saísse do lugar. Ficou sentada com Berenice ouvindo os gritos dos militares na invasão do gabinete. Viu um oficial sair, levando pela gola do paletó o sindicalista Evlim Medeiros. Como todos os demais, as duas jovens universitárias foram expulsas da prefeitura, sob a mira das metralhadoras, em seguida levadas pelo amigo Yaponi Galvão para uma residência, onde passaram a noite sem, no entanto, conseguirem dormir, pois a dona da casa sofria de delírios por trauma da intentona comunista de 1935 e gritava: "Os comunistas estão chegando! Os comunistas tomaram Natal!" Não estivessem com tanto medo, poderiam ter se divertido com a coincidência de humor negro.

No dia seguinte, Tereza e Berenice tentaram articular-se com os companheiros da Rede Ferroviária mas foram informadas de que estavam sendo procuradas por uma patrulha do Exército, orientada pelo engenheiro daquela repartição Marco Aurélio Cavalcanti de Albuquerque. Escaparam com a ajuda de uma senhora humilde, auxiliar do Patronato das Rocas e do amigo Querubino Procópio de Moura, que as levou para a granja de outro amigo.

Do esconderijo na granja, seguiram para a cidade paraibana de Sapé, à procura dos camponeses do partido comunista que, supunham, estariam resistindo ao golpe militar. Desamparadas e desinformadas, encontraram o partido desarticulado, os companheiros presos ou desaparecidos. Desesperançadas e sem ajuda, deixaram Sapé e seguiram para Campina Grande, onde Tereza oxigenou os cabelos, passou a chamar-se Raquel e viajaram, ela e Berenice, para refugiarem-se em Fortaleza.

Tereza comenta, graciosamente, que foi o "Sancho Pança natalense de 1964." Em Fortaleza foi descoberta por um companheiro de partido, que a reconheceu na saída de um cinema e gritou o seu nome verdadeiro. Enfrentando todas as dificuldades previsíveis àquela época, fugiram para o Rio de Janeiro, onde conseguiram trabalhar no comércio. Lá, Berenice asilou-se na Embaixada do Panamá. Tereza voltou para Campina Grande, onde permaneceu até conseguir habeas-corpus, para responder o processo em liberdade, em Natal. No 16° Regimento de Infantaria, quando foi interrogada pelo capitão Ênio Lacerda, sofreu ameaças assustadoras; o capitão determinou que os auxiliares dele se retirassem, pois o que iria acontecer com ela não precisava de testemunha. Os auxiliares retiraram-se, mas ele apenas continuou, aos gritos, o interrogatório, sentado à sua frente, joelho com joelho, batendo com um cassetete em uma das mãos. A sessão foi longa exaustiva.

Novo habeas-corpus foi requerido pelo advogado Carlos Varela Barca, concedido pela unanimidade do Superior Tribunal Militar. Assim, livrou-se, definitivamente, do processo. Tereza concluiu a entrevista referindo-se aos companheiros mortos e ao medo que aos poucos, foi possuindo as pessoas que fugiam, perseguidas pela ditadura. Falou, pausadamente: "Já não éramos seres humanos, éramos ratos escondidos"

Os episódios mais dramáticos que viveu são narrados por ela com incrível reserva de resistência e a mesma saudável alegria que sempre a caracterizou. Lembrou, por fim, uma noite em que estava escondida no Rio de Janeiro, juntamente com Berenice, debaixo de um grande temporal, quando tocaram a cigarra do quarto onde moravam. Observou, pelo visor, que era um militar. Apavoradas, combinaram abrir a porta e gritar mas, ao fazê-lo, o medo foi tamanho que emudeceram. O militar queria, apenas, retira-las do prédio, ameaçado de desabamento...

Tereza concluiu a entrevista falando do poeta Sanderson Negreiros e da solidariedade por ele prestada a companheiros que se encontravam no Rio de Janeiro, quando o poeta, em 1965, trabalhava na revista "Manchete". Sanderson, em Natal, respondeu a inquérito na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a acusação de haver criticado o regime militar.


GILENO GUANABARA
(Advogado, Conselheiro da Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil no RN, Procurador Municipal, ex-Secretário Municipal de Cultura)

O advogado Gileno Guanabara, em 1964, presidia o diretório estudantil "Celestino Pimentel" do Atheneu Norte-Rio-Grandense. Convidado a participar das manifestações de repúdio pela visita do embaixador americano Lincoln Gordon ao Estado, que era, também, representante do programa de distribuição de dólares na América Latina, denominado "Aliança Para O Progresso", assinou um manifesto em nome dos estudantes e despertou para a luta em defesa da soberania nacional.

Engajando-se na política, convivendo e admirando o professor Luiz Maranhão Filho, filiou-se ao Partido Comunista. Como assessor do gabinete do então secretário municipal de educação e cultura, professor Moacyr de Góes, conheceu a campanha "De Pé no Chão Também se Aprende a Ler" e assistiu às reuniões de trabalho, com a presença do prefeito Djalma Maranhão e responsáveis pela campanha. Sua militância política era, no entanto, exercida no meio estudantil secundarista.

Na manhã de primeiro de abril, já deflagrado o golpe militar, promoveu, com os estudantes do Atheneu, um ato público, talvez o único que aconteceu naquele dia em Natal, e levou os estudantes em passeata até a prefeitura municipal, já denominada pelo prefeito, "QG da Legalidade". Na prefeitura, os estudantes dispersaram-se, sem incidentes.

Encontrava-se no gabinete do prefeito, quando aconteceu a invasão pelo Exército. Ficou muito assustado e espantado por ver um oficial do Exército gritar "filhos da puta" para todos os presentes, inclusive senhoras.

Com a prisão de Djalma logo no dia seguinte, Gileno tratou de se proteger e foi levado pela família para a cidade do Recife, onde ficou por seis meses vivendo, ainda adolescente, o sobressalto de ficar escondido para escapar da prisão militar em uma crise política que não podia, ainda, entender.

Voltando a Natal, matriculou-se novamente no Atheneu. No início de 1965, foi levado de sua residência por oficiais do Exército, para o 16° Regimento de Infantaria, onde foi interrogado durante oito horas seguidas e liberado.

Denunciado pela Auditoria Militar do Recife no mesma processo em que estavam outros estudantes, entre eles Marcos Guerra, Danilo Bessa, Geniberto Campos, lvan Sérgio e Esdras Alves, foi excluído do mesmo, por um habeas-corpus, requerido pelo professor Otto de Brito Guerra, em benefício de Marcos, seu filho, e que, por extensão, beneficiou os demais, por inépcia da denúncia.

Como todos os indiciados, Gileno foi também marcado pela perseguição e pela discriminação profissional e social nos vinte anos da ditadura militar.

NATANIAS VON SHOSTEN
(Advogado, Procurador autárquica federal aposentado, ex-Secretário Estadual de Planejamento, segundo suplente de Senador pelo PMDB)

O advogado Natanias von Shosten, líder estudantil nos anos sessenta e secretário da União Nacional de Estudantes por um ano, exerceu, com vinte e dois anos de idade, o cargo de chefe de gabinete do prefeito Djalma Maranhão, no período de 1962 a janeiro de 1963, afastando-se da SUDENE passando a residir no Recife, onde se encontrava quando aconteceu o golpe militar.

Noivo de Sacha, filha do líder comunista Hiram Pereira, político natalense com militância no Estado do Pernambuco, sofreu o drama da família por sessenta dias quartéis do Recife, pressionando para descobrir onde se encontrava o sogro. Hiram era o responsável pelo setor gráfico do Partido Comunista Brasileiro e conseguiu viver na clandestinidade até o ano de 1965, quando for preso no Estado de São Paulo, onde desapareceu.

Saindo da prisão, Natanias enfrentou a perseguição política na SUDENE, de onde foi demitido. Com outros companheiros, foi processado e denunciado por haver participado de uma articulação de líderes do PCB, por cujo processo esteve preso por mais sete dias. Solto para responder o processo em liberdade, transferiu-se para o Estado de São Paulo. Falando dos sete dias de prisão por haver participado de uma reunião comunista, lembrou o absurdo das prisões dos companheiros de Natal que, sem nenhuma acusação formal e sem atos condenatórios apresentados nos processos, ficaram meses e meses nas celas dos quartéis.

Apesar de toda a competência técnica. Natanias teve a vida profissional desarticulada por muitos anos, durante a ditadura militar.

No mês de setembro, quando ainda se encontrava no Recife, foi informado por uma estratégia de medicina que Djalma Maranhão encontrava-se doente, no Hospital Geral do Exército. Através de uma irmã, iniciou contato com o ex-prefeito. a quem deu a possível assistência.

Em novembro Djalma conseguiu habeas-corpus e mandou chamá-lo. Com a esposa Sacha foi em busca do amigo, cujo encontro ele comenta que foi muito afetivo e alegre. Djalma pediu que ele procurasse o advogado Roberto Furtado e tentasse ajudar os demais presos de Natal. Em São Paulo, recebia notícias de Djalma através de brasileiros que passavam por Montevideo. A última notícia chegou através de um cartão, que ele diz ter sido comovente, onde Djalma, cheio de saudade, considerava-o “irmão mais velho do filho, Marcos.” Em São Paulo, Natanias mantinha-se informado sobre a tragédia da tortura e o desaparecimento nos quartéis dos diversos presos políticos. Consciente da dignidade dos perseguidos de 1964, fala da experiência humana dolorosa de “alguns momentos em que se pensa que se vai partir, romper, despedaçar.” E, também, da muita beleza humana e solidariedade que compensava a degradação de tantas outras pessoas fracas e acovardadas.

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Últimas prisões

MARIA LALY CARNEIRO (MEIGNANT)
(Médica do Hospital Saint-Anne em Paris, Chefe do Serviço de Anestesia e Reanimação do mesmo Hospital, Membro da Academia Mundial de Saúde, Comendadora da Cruz de Malta por trabalhos científicos)

MARGARIDA DE JESUS CORTÊS
(Mestre em Pedagogia, Professora da UFRN, ex-Diretora do Centro de Formação de Professores da Campanha "De Pé no Chão Também se Aprende a Ler")

MARIA DIVA DA SALETE LUCENA
(Licenciada em História. ex-Professora do Atheneu e do Ginásio Municipal de Natal, Consultora de Empresas, Escritora)

MAILDE FERREIRA PINTO (GALVÃO)
(Ex-Diretora da Diretoria de Documentação e Cultura da Prefeitura Municipal de Natal, ex-Funcionária do Departamento de Correios e Telégrafos, ex-Chefe de Gabinete da Secretaria Estadual de Saúde, Chefe de Gabinete da Secretaria de Trabalho e Ação Social)

Em um dia de junho, um recado do jornalista Leonardo Bezerra, que acabava de ser libertado da prisão do quartel da Militar, acometido que fora por uma grave crise de diabetes. O recado dizia que precisava encontrar-me com urgência, em lugar discreto e seguro para os dois. Meu irmão Brígido, responsável pelo contato, levou-me, à noite, ao encontro que aconteceu dentro de um automóvel.

Leonardo chegou ao local determinado trazido por um médico, seu amigo. Para diminuir a seriedade do encontro começou dizendo que eu estava ótima e era uma das figuras mais queridas pelos "homens dos interrogatórios...” Não entendi, de início, a insinuação ou não quis entender que o comentário disfarçava um aviso. Aos poucos, foi revelando que alguns dos presos haviam informado que, nos interrogatórios feitos pela comissão do delegado Veras, indagavam insistentemente sobre as minhas atividades como Diretora de Cultura e e que, seguramente, estavam me vigiando.

Fácil era concluir que se fechava o cerco em tomo de mim e que era iminente a minha prisão. É impossível explicar o que senti. Apesar da delicadeza com que Leonardo me preparava para o momento da prisão eu me sentia flutuar entre o medo e o espanto, como nos pesadelos. Lembro que a noite era de inverno, estava fria e úmida; acho que tremi. Sentia muito medo; medo do desconhecido, da prisão militar, medo de perder a liberdade, da noite, medo de perder a mim mesma. Leonardo continuava explicando sobre os cuidados que deveria tomar quando me levassem para os interrogatórios. Teria que manter a calma. Cada palavra ou cada gesto poderiam me livrar ou condenar. Sugeriu cuidado especial com o delegado Veras, um policial treinado pelo FBI, famoso pela tortura psicológica que costumava usar nos interrogatórios. Apenas Leonardo falava.

Naquele momento tudo o que eu queria era poder fugir daquela noite e sumir na escuridão. Ali no carro eu ainda me pertencia mas não podia saber por quanto tempo. Desejei o anonimato, que não me odiassem, não me procurassem, não me perseguissem. Era o desejo infantil da minha fragilidade.

Despedi-me de Leonardo com emoção e tristeza. Ele saiu em outro carro e nunca pude lhe dizer o quanto as suas recomendações foram importantes nos meus dias de prisioneira.

Nada comentei com a família sobre o ocorrido, nem mesmo com a minha filha. Não tive coragem de antecipar-lhes o sofrimento. Tomei algumas providências domésticas, coloquei na bolsa alguns pertences, comprimidos de tranqüilizantes e aguardei.

Não foi preciso aguardar muito. Poucos dias depois, 19 de junho, mais ou menos às 12 horas, a kombi do delegado Veras subiu a calçada da nossa casa, parando junto à porta principal. Dela desceu o motorista e funcionário do Estado, agente do Departamento de Ordem Pública e Social, Sr. Pedro Vilela Cid. Entrou sem licença. informando que fora me apanhar para depor com o delegado Veras porta sem olhar para as pessoas que se encontravam na sala.

Sem despedida e sem palavras dirigi-me à kombi e saímos. Eu tinha consciência de que a despedida ou o toque de um abraço me enfraqueceria. Lembro que na sala deixei os meus pais e uma irmã. Ainda ouvi o meu pai indagando para onde me levaram mas o motorista não se dignou sequer a olhar.

Ao meio-dia, passando pelas ruas da cidade quase deserta, eu me indagava quando voltaria a caminhar livremente por elas. O carro rodava sem pressa e nenhum pensamento especial me chegava, nenhuma lembrança. De repente, o vazio mental. Depois, a minha filha doendo em mim.

Chegamos à residência de Maria Diva da Salete Lucena que foi, igualmente, convocada para prestar depoimento e recolhida da mesma forma. Diva não percebeu logo que estava prisioneira. Avisei- lhe que aquela convocação significava a nossa prisão; ficou muito pálida e não respondeu. O motorista, no entanto, insistia que não estava nos prendendo: estava nos levando para prestar depoimento.

Conduzindo Diva que se refazia do choque, passamos pela avenida Alexandrino de Alencar onde, em rua paralela, residia Leonardo Bezerra. Pedi ao motorista que entrasse naquela rua e ele, inexplicavelmente, atendeu. Passando em frente à casa de Leonardo pedi ao motorista que parasse e ele, mais inexplicavelmente ainda, atendeu. Gritei pelo nome de Leonardo e avisei que estava sendo levada para a prisão. Com a surpresa, o motorista reagiu, irritado e saiu, em alta velocidade, para a residência da professora Margarida de Jesus Cortez.

O Sr. Pedro Vilela representou a mesma farsa e Margarida entrou no carro, novamente convencida de que iria apenas depor. Tentei oonscientizá-la da nossa prisão mas não aceitou; não conseguia entender que houvesse dúvidas sobre a honestidade e integridade de seus atos como profissional e como cidadã. Guardou muito silêncio e muito espanto. Com os cabelos enrolados e cobertos por um lenço, preparava-se para mais uma tarde comum na sua vida de professora.

O motorista recusava-se a informar para onde seguíamos até que nos encontramos na avenida Hermes da Fonseca, perto do quartel do 16° RI, onde já se encontrava aprisionada a universitária Maria Laly Carneiro.

Do portão do quartel saía, no exato momento de nossa chegada, o então recruta Haroldo Pacheco. Ao reconhecê-lo gritei o seu nome, pedindo que avisasse ao meu irmão Leon para onde estavam nos levando. O motorista ficou, novamente, muito irritado e nervoso. Finalmente, estacionou junto ao Corpo da Guarda. Descemos da kombi bem ao lado das janelas das prisões. Sem nenhum comentário, aguardamos. Sabiamos que muitos companheiros, entre eles Djalma Maranhão, Carlos Lima, Aldo Tinoco, Ubirajara Macedo e outros encontravam-se ali, atrás daquelas grades, mas nenhum rosto apareceu.

O oficial de dia veio nos receber, com a indiferença de quem cumpria uma rotina. Levou nos através de uma porta de aço que me pareceu enorme. Por ela entramos num quarto todo fechado onde, há oito dias, encontrava-se Laly. Ela fora presa pelo Exército em face de denúncias sobre atividades estudantis. Retirada de uma sala de aula da Faculdade de Medicina e levada num jipe por militares fortemente armados para o Quartel do 16° RI foi, imediatamente, submetida a um longo interrogatório que durou até a noite, quando a colocaram na cela onde estivera, incomunicável, o Prefeito Djalma Maranhão. Pela madrugada, vieram buscá-la e a levaram até os fundos do quartel onde a rodearam em silêncio e assim permaneceram por um tempo que lhe pareceu infinito, em plena escuridão.

Rodeada pelos militares, Laly viveu os momentos mais dramáticos de sua experiência de prisioneira política. Saciados em seu sadismo. conduziram-na, depois, para a cela onde se encontrava quando chegamos.

Laly nos recebeu com um sorriso triste, abraçou-nos fortemente e muito trêmula. Procurava acolher quem não queria ser acolhida; eu queria sumir e não existir. Fiquei algum tempo de pé, no meio do quarto, atenta ao barulho dos carros que chegavam ao quartel. Desejava que meu irmão Leon chegasse, a qualquer momento. Uma chegada inútil, pois nada poderia fazer.

Tenho na memória que a tarde escureceu muito de repente.

Dispúnhamos de um pequeno quarto com camas, um banheiro e uma pequena passagem para a porta de metal, onde receberíamos, depois, as visitas. Acomodamo-nos nas camas. Ansiosa por notícias, Laly fazia perguntas e informava sobre a rotina da prisão. Eu permanecia em silêncio, resistindo àquele mundo militar até então completamente desconhecido. O silêncio era cortado por alguns tiros ao longe. Sentia-me meio idiota, sentada na cama, mente esvaziada, ouvindo Laly falando baixo, com medo de microfones que imaginava instalados escondidos, como nos filmes de guerra.

Não sei por quanto tempo me perdi mas lembro a imensidão da dor quando a imagem de minha filha se impôs. Então, chorei. Laly tentava confortar-me, surpresa com a minha aparente fraqueza. Já escurecendo, por uma janela vizinha à porta de metal, o jantar foi entregue, sem palavras. Não consegui comer mas não esqueci a brancura do arroz que acompanhava o bife.

Margarida despertou de seu espanto e desabafou a revolta. Sentia-se violentada mas não chorava, explodia de sofrimento e raiva. Arredia à polícia entender a sua condição de prisioneira, o que se chocava profundamente com a sua vida religiosa de protestante convicta. Eu, porém, continuava chorando, tomei um tranqüilizante que levava na bolsa e chorei até adormecer.

Acordei assustada pelo toque de corneta e me propus a dominar o sofrimento e as lágrimas; desde então e até hoje ficou difícil chorar. Paralisada na cama, procurei assumir a realidade de minha nova condição e fiquei ouvindo aqueles sons que passaram a fazer parte dos sons de minha vida.

Levantávamos cedo, revezávamo-nos no banheiro, cuidávamos da imagem, tomávamos café e ficávamos prontas para o dia. Às sete horas ouvíamos a música dos dobrados tocados para o ritual de hasteamento da bandeira nacional. Assim os militares cumpriam o ardor de seu patriotismo. Marchas, exercícios fisicos, treinamento de tiro com fuzis e metralhadoras completavam a disciplina rígida do quartel. Ouvíamos todos os dias, no mesmo horário, o tá-tá tá daqueles tiros ressoando nas dunas. Era monótono e deprimente. O quarto da prisão permaneceu, alguns dias, com as janelas fechadas até que Laly passou a sentir dores do cabeça e solicitou ao sentinela a presença do oficial de dia, a quem apelou para que pemitissem abrir a janela para a renovação do ar. Fomos, assim, autorizadas a abrir uma janela, o que nos permitia ver o pátio que se estendia até a avenida Hermes da Fonseca. Começamos, então, a receber ar puro e ganhamos um pouco de céu, algumas árvores e a visão do portão da saída. De repente, ficou muito importante aquela paisagem restrita a um pouco de azul, de verde e de um portão distante.

Analisando a nossa situação de presas políticas, combinamos que, em qualquer circunstância, teríamos que permanecer fortes e demonstrar segurança. A tudo deveriamos tentar enfrentar com naturalidade. Adquirimos a consciência de que todos os gestos e palavras eram importantes no julgamento que aqueles homens fariam, vivendo, como estavam, certamente pela primeira vez, uma experiência com prisioneiras do sexo feminino. Os militares nos olhavam discretamente e sabe-se lá que conclusões tiravam sobre as nossas vidas e os crimes que nos levaram até a prisão.

Certa noite, já estávamos recolhidas e a luz apagada quando ouvimos uma voz, bem junto à janela, dizer: "Eu quero a loura!" Laly usava cabelos louros. Continuamos em silêncio mas muito preocupadas. No dia seguinte, evitamos comentar o assunto.

Outra noite, despertamos pelos gritos de alguém que estava sendo espancado, bem perto da janela interna de nossa prisão. O torturador que batia exigia do preso a confirmação de que Laly e eu nos encontrávamos em determinada reunião. Aos gritos, indagava: "Laly estava lá ?" - "Mailde estava lá?" O preso só gemia. As lembranças desse episódio foram avivadas por Laly. Na minha memória elas chegam pesadas e escuras. É possível que tenhamos sido vítimas de uma farsa para aterrorizar. Se foi, conseguiram. Até hoje não consigo pensar no episódio sem me perturbar.

Sentíamos necessidade de alguma distração além da leitura de uns poucos livros que nos permitiram receber. Contávamos histórias das nossas lembranças, recordávamos filmes, episódios vividos e fatos pitorescos, mas as horas passavam lentas. À noite, Margarida, que era protestante, lia a Bíblia para nós; meditávamos e aliviávamos a tensão.

Nas tardes de sábado, quando o quartel não se achava de prontidão, recebíamos visitas da família e amigos. Não sei definir o efeito emocional das visitas. A espera era alegre mas assistíamos à humilhação das nossas pessoas queridas serem pressionadas pelos militares que, no momento dos encontros, metiam-se entre todos, impedindo a espontaneidade dos gestos e das conversas. Olhávamo-nos com aflição e ternura sem, no entanto, conseguir nos tranquilizar. Nunca procurei saber daquelas pessoas que sentimento levavam quando nos deixavam no quartel, já anoitecendo. Envergonhava-me daquilo. Respeito e pudor impediram-me de falar-lhes sobre aquele sofrimento que nós causávamos. Quando as visitas saíam tentávamos prolongar as lembranças, recompor os diálogos mas as imagens que guardávamos eram de pessoas impotentes e derrotadas diante daqueles homens armados, estranhos ao nosso mundo.

A nossa pobre vingança era nos divertir, observando os desfiles que os militares faziam, em frente à janela da prisão, e a tentativa para exibirem elegância e boa postura. Conseguíamos rir, algumas vezes, de alguns dos componentes daquelas marchas diárias, em que se despendia tanto tempo, sem o menor sentido para nós.

Nas noites de insônia - e eram muitas - procurava escapar da tristeza refugiando-me em outras lembranças. Buscava as manhãs de inverno de minha infância e o verde que cercava. O açude da fazenda, cheiro de terra molhada pela chuva e as brincadeiras com minhas irmãs. Impossível suportar a prisão sem voltar às raizes e à fantasia, nelas buscava alguma beleza e defendia a minha ternura. Assim, protegia-me e recompunha a minha história.

Numa manhã de domingo, levaram-nos para tomar banho sol no pátio do quartel. Caminhamos um pouco e fomos recolhidas, sem explicações. Em outro domingo fomos levadas para a varanda do magnum dos oficiais, também para tomar sol, de onde podíamos ver as dunas. Por trás das dunas estava o mar. Desejei ardentemmte aquele mar. Ficamos um pouco. Voltei à prisão com a paisagem das dunas e o desejo do mar.

Certo dia a nossa rotina foi alterada por uma agradável surpresa: aconteceu a visita do padre Francisco de Assis Pereira. Entrou no quarto com o oficial de dia e convidou-nos à confissão para receber a comunhão. Laly e eu aceitamos imediatamente. Margarida, como protestante, não aceitou. Diva estava arredia com a religião. Padre Assis estava tenso com a presença ostensiva do militar no recinto, mas conseguiu confortar-nos. Esperamos, nas semanas seguintes, o retorno do padre, que nunca mais voltou. Assim, perdemos um apoio que nos poderia deixar mais tranqüilas.

A noite de São João foi festejada pelos militares com fogos, bebidas e muita alegria. Por trás das grades vimos militares humanizados, com mulheres e crianças divertindo-se, no pátio do quartel, bem em frente às nossas prisões.

Em uma manhã de julho, logo cedo, o oficial de dia nos avisou, discretamente, que viriam revistar o quarto e nossos pertences, o que de fato fizeram. Naquele dia o quartel entrou em regime de prontidão, o que acontecia sempre que a cúpula do poder endurecia o regime. A revista não nos parecia ter sentido, pois todos os objetos, roupas e livros já haviam sido vistoriados na entrada do quartel.

Laly aniversariou na prisão; comemoramos com abraços e beijos, sem maior tristeza mas sem alegria. À tarde, através das grades, Laly reconheceu sua família chegando. Trouxeram presentes e bolos. O oficial não permitiu que se aproximassem; deixaram os pacotes e voltaram, sem nenhuma palavra com a aniversariante.

Passei o dia 7 de julho, aniversário de minha filha, na expectativa que pudesse diminuir a nossa distância. À tarde, observei pela janela que ela estava chegando. Trazia uma procuração para ser assinada por mim como um pretexto para provocar um encontro naquele dia. Falou com o oficial de dia, que não permitiu entregar-me pessoalmente o documento. Por trás das grades observei a sua volta solitária. A minha tristeza não tinha limites.

Certa noite estavámos nos recolhendo quando ouvimos o som do motor do carro do capitão Lacerda, já identificado por nós. Ficamos na expectativa de outros sons, pois nunca o víamos chegar à noite e sabíamos que torturava fisicamente os presos políticos. Assustamo-nos quando ele apareceu na janela, pronunciou o nome de Diva e retirou-se em seguida Permanecemos em silêncio; minha lembrança é a dos olhares aflitos e amedrontados. Passados alguns minutos, começaram a bater na porta de metal, parecendo uma tentativa de a arrombarem. Eram pancadas fortes e devem ter assustado, também, os demais presos do mesmo bloco. Nossa aflição era enorme e só aumentava; a porta de metal era a nossa única via de acesso para fora da prisão. Não conseguindo abrir a porta com pancadas, o capitão ordenou que entrássemos no banheiro. Dispararam tiros, possivelmente na fechadura ou em um cadeado e, afinal, a porta abriu. O capitão Lacerda chamou Diva pelo nome completo e a levou. Quase imediatamente ouvimos os seus gritos e choro convulso; gritava desesperadamente pela mãe e por Deus, com quem dizia estar rompida. O seu choro foi aos pouco sumindo com o barulho do motor do carro do capitão. Permanecemos de pé, em silêncio, a porta arrombada e soldados armados com fuzis, montando guarda. Tudo muito solene e assustador.

Não sei quanto tempo passou até que o oficial de dia, que levara a chave da porta, voltasse do seu passeio noturno, fora do quartel. Com a sua chegada fomos informadas que a mãe de Diva fora hospitalizada, em estado do coma, acometida de um derrame cerebral e encontrava-se na UTI do Hospital das Clínicas.

O estado de saúde da mãe de Diva era grave, mas como temíamos coisas terríveis naquela noite, esperamos a sua volta com menos preocupação. O oficial de dia e alguns soldados consertaram a porta e, logo depois, Diva retornou, chorando. O capitão Lacerda retirou-se e o tenente sentiu-se mais à vontade para confortar Diva e comprometeu-se em trazer, diariamente, notícias de Dona Teca. Diva passou a viver, então, mais deprimida e silenciosa. O tenente cumpriu o prometido; todas as noites, conseguia uma forma de se aproximar da janela e, discretamente, informá-la do estado de saúde de sua mãe.

Algumas vezes vimos passar os presos com problemas de saúde; eram levados para o ambulatório médico algemados e escoltados por soldados armados com fuzis e baionetas. Certa vez, Geniberto Campos, então noivo de Laly e preso no alojamento vizinho, conseguiu mandar avisar-lhe que passaria, para o dentista, em frente à janela interna de nossa cela. Outras vezes vi passar Carlos Lima e Josemá Azevedo, também algemados e escoltados.

Nos dias de visita aos presos, podíamos observar, através da janela interna de nossa prisão, a chegada das famílias ao pátio do quartel, os abraços tímidos e emocionados nos maridos, filhos e noivos. Entre eles ficavam os oficiais e soldados armados e atentos. Não há como esquecer as expressões aflitas, dignas e altivas daquelas mulheres.

Lá fora, elas lutavam incansavelmente pela nossa liberdade mas chegavam aos quartéis de mãos vazias e poucas esperanças. Dária Maranhão, Odete Roseli Maranhão, Conceição Góes, Marta Tinoco, Anita Pereira de Paula, Geni Brandão, Juraci de Vasconcelos, Albaniza Pimenta, Conceição e Salete Carneiro, Salete Lima, Joana d'Arc Cabral, Ângela e Sônia Cavalcanti, Doralice Macedo, Iraci Oliveira, Sotera Fialho, Marli Moura, Eunice Machado e tantas outras que viveram com dignidade e coragem os acontecimentos de 1964 em Natal.

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Depoimento com Veras

O mês de julho foi de muita chuva e frio. Numa manhã de neblina o tenente que nos ajudou com Diva aproximou-se da janela e conseguiu avisar que, às 9 horas, viriam buscar-me para prestar depoimento com o delegado Veras. Certamente senti medo de enfrenta-lo; final aquele era o momento de maior risco para os presos políticos. Na hora prevista dois soldados armados levaram-me para uma dependência distante do local de nossa prisão. Conduziram-me a uma pequena sala onde encontrei, de cabeça baixa, um datilógrafo junto a uma máquina de escrever.

No centro da sala estava uma cadeira vazia. Sentei-me e esperei. Minutos depois o delegado Veras chegou, vestindo terno escuro, exibindo a elegância que lhe conferia o poder da força e da prepotência. Olhou-me fixamente, como para assustar; lembrei-me de Leonardo e senti que poderia enfrentar o inquisidor maior.

De pé, junto a mim, o delegado deu início a sua missão fascista. Afirmou que conhecia tudo sobre minha vida e sobre os atos subversivos que eu havia praticado como Diretora de Cultura. Aconselhou a não mentir nem omitir o que já estava documentado. Tentava aterrorizar-me como se galanteasse. Caminhava em tomo da sala e eu me sentia muito pequena, sentada naquela cadeira. Nem ele nem eu prevíamos a dimensão da minha resistência. As perguntas surpreendiam pela rapidez com que eram formuladas, interrompidas e repetidas. O interrogatório durou todo o dia, com um pequeno intervalo para que o delegado pudesse almoçar e se fizesse a mudança da guarda. Durante aquele intervalo, entregaram-me meio copo de leite, nada mais.

Quando o delegado voltou, afirmou que estava convencido da minha responsabilidade na preparação de guerrilhas e que eu seria transferida para um cárcere no Estado de Pernambuco. Não acreditei na ameaça mas fiquei irritada pelo riso cínico que esboçou.

A segunda fase do interrogatório girou em tomo de uma reunião de professores com o prefeito, quando foi estudada a possibilidade de ser editada uma cartilha para alfabetização de adultos. A reunião acontecera no bar "Briza del Mar", à beira do rio Potengi.

A cartilha fora redigida por Diva e adaptada de uma outra preparada pelo Movimento de Cultura Popular de Pernambuco (MCP). Era utilizada pela campanha "De Pé no Chão Também se Aprende a Ler", na alfabetização de adultos.

Interrogou, ainda, sobre a conscientização política nos programas da Diretoria de Cultura. Não consegui fazê-lo entender que a palavra conscientização, usada nos nossos programas, destinava-se a preparar o homem para os seus direitos à cidadania, integração e promoção social. Insistia que a nossa conscientização visava à preparação de uma revolução comunista. No interrogatório pude sentir o valor e significado de cada palavra e cada gesto. Quando me parecia que havia esgotado o assunto, o delegado repetia a mesma pergunta, com outra formulação, como se fosse a primeira vez. Minha resposta teria que ser a mesma, sem me confundir.

O outro policial, José Domingos, companheiro de Veras, entrou na sala; olhou-me fixamente e perguntou se eu gostava de empunhar metralhadora. Senti-me insultada, sustentei seu olhar e nada respondi. Findava o dia quando o delegado encerrou o interrogatório, voltando a ameaçar com a minha transferência para o Recife. "O datilógrafo entregou-me o depoimento e assinei, sem ler.”

Seis anos depois, tentando conseguir autorização policial para obter um passaporte e viajar à Europa, reencontrei o datilógrafo que me reconheceu e confessou ao meu marido haver sofrido uma depressão nervosa durante o assessoramento ao delegado Veras e ainda ser vítima de pesadelos com cenas daquela época. É difícil saber de quantas maneiras tantos sofreram naqueles tempos cruéis da ditadura.

Voltei à prisão escoltada pelos soldados. Chovia e fazia frio, mas, novamente, o oficial de dia se afastara, levando a chave da porta de metal. Tive que esperar no Corpo da Guarda, de onde pude ver alguns rostos por trás das grades mas a escuridão não permitia identificá-los. Já não suportava mais, passado todo um dia, a necessidade de urinar. Afinal, o oficial chegou, abriu a porta e voltei à prisão. As companheiras estavam aflitas e curiosas mas não consegui falar por muito tempo; o corpo estava dormente e a cabeça esvaziada. Estendi-me na cama e tentei relaxar. Quando pude falar, transmiti todos os detalhes do interrogatório para tentar ajudar às minhas companheiras nos seus futuros depoimentos. Aconteceu, no entanto, que o delegado usou técnicas diferentes para cada uma.

Demoraram alguns dias para levarem Diva. Levaram, depois, Laly e, por último Margarida. Todas voltaram muito deprimidas, aflitas e cansadas. Diva chorou muito, Laly mal conseguia controla o nervosismo e Margarida voltou zangada e revoltada. Todas calaram, com pudor, os dramas vividos com o delegado.

Os dias continuaram insuportavelmente lentos. O silêncio só era interrompido pelas cornetas, pelas marchas militares ao amanhecer e pelos disparos das armas nos treinamentos. A falta de espaço físico reforçava o calor humano e a mútua solidariedade de nosso convívio, mas sofríamos terrivelmente, sem liberdade e sem as nossas pessoas queridas. Com nenhuma palavra poderei descrever a tensão emocional daqueles dias.

Certa noite, um soldado aproximou-se da janela interna chamando-me, em voz baixa, e se dizendo meu primo. Acrescentou que servia no restaurante dos oficiais; informou, também, que o responsável pelo restaurante era um coronel recém-chegado do Rio Grande do Sul, que havia pertencido à assessoria do comandante daquela região; tentara resistir e fora punido com transferência para Natal e reclusão naquele mesmo quartel. O coronel oferecia solidariedade às presas políticas. Fiquei muito assustada por não conhecer aquele parente e por admitir que tentassem nos envolver em alguma trama para comprometimento político. Nosso grau de insegurança justificava o medo e a desconfiança. Agradeci ao soldado e informei que não precisávamos de nada e que as comunicações deveriam chegar através do capitão Lacerda. Desde então, observávamos um militar de meia idade, caminhando lentamente, nos fins de dia, pelo pátio do quartel.

Carlos Lima testemunhou as tentativas de aproximação do mesmo coronel com outros presos. Certo dia, o coronel chegou a dialogar Djalma maranhão e pediu desculpas pelas prisões e os demais acontecimentos, tentando justificar que “aquele que não era o verdadeiro Exército, o Exército de Caxias". Outras vezes ele passava perto da janela e dizia; "Meus filhos, tenham paciência isto vai passar." Em uma dessas ocasiões foi surpreendido pelo capitão Lacerda, que o repreendeu, o que resultou numa calorosa discussão.

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Depoimento com o Capitão Lacerda

O fim de julho chegou sem novidades até uma manhã em que fui avisada pelo oficial de dia que me levariam, às 9 horas, para depor, na comissão presidida pelo capitão Lacerda. Pela quinta vez eu iria responder a um interrogatório sobre os mesmos assuntos. Torturavam-nos demais com tantas inquisições.

Do capitão Ênio Lacerda, conhecíamos a fama de torturador, violento, e de quem dependia a sorte de todos os presos políticos à disposição dos militares. Presidindo a Comissão Geral de Investigações, designado pelo alto comando do Exército, exercia um poder diabólico e impiedoso. Naquele momento, não lembro se senti medo ou cansaço. Lembro, porém, que às 9 horas encontrava-me na sala do interrogatório que era bem diferente da sala onde depus com o delegado Veras.

Sentado por trás de uma mesa, auxiliado por um tenente e um sargento, o capitão indicou-me uma cadeira. Não me olhava e folheava papéis. Assim, deu início às perguntas sobre as minhas supostas atividades comunistas, sobre o prefeito e sua equipe. Atemorizada com imprevisibilidade do capitão, respondia com cautela, escolhendo palavras e controlando as emoções. Passamos toda a manhã falando sobre as atividades culturais da Diretoria de Documentação de Cultura. Quando o capitão se referia ao prefeito, enfurecia-se e mal controlava os gestos. Às 12 horas, suspendeu o interrogatório, autorizou-me a voltar para o almoço, recomeçando às 14 horas. O capitão, então apresentou-me diversos poemas que haviam apreendido na minha mesa de trabalho. Os poemas compunham o repertório de um grupo jogral da DDC e haviam sido apresentados, no início do ano, encerrando um seminário de cultura. Entre eles encontravam-se "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Melo Neto, "Pátria Minha" e "O Operário em Construção", de Vinícius de Moraes. O capitão irritou-se por se usar aqueles poemas como cultura para o povo, "Pátria Minha", então, chocava-o enormemente; considerava-o ofensivo ao seu sentido particular de pátria. Apesar da impossibilidade de entendimento, manteve o interrogatório com respeito e sem agressividade.

Quando percebi que estava encerrando, perguntei, com muito cuidado, qual era a dificuldade que os militares sentiam para compreender o nosso trabalho na Prefeitura. Respondeu, irritado, que eram os civis os denunciantes da subversão e do comunismo na Prefeitura, que aos militares cabia a defesa da pátria e que ele iria até o fim na apuração dos fatos e na punição dos culpados. Não pude falar mais nada. Um soldado entrou com um recado de algum repórter do "Diário de Natal", através do telefone, pedindo informações sobre o inquérito e perguntando se haveriam novas prisões. O capitão irritou-se e criticou rudemente a interferência da imprensa; não foi atender ao telefone nem deu explicações.

Às 18 horas, encerrou o interrogatório e, sem me olhar, informou que, a partir daquele momento, poderia aguardar o resultado do processo em liberdade. Embora não acreditasse completamente nas ameaças do delegado Veras de me mandar para Recife, não esperava sair da prisão naquela noite. A liberdade era concedida para responder a um processo que correria na Justiça Militar, sob a vigência de leis de exceção, impostas pelos próprios militares. Aquela liberdade significava, no momento, apenas o sair da prisão. As ameaças continuavam; bastava lembrar a expressão contorcida do general Muricy pela televisão para sofrer arrepios pela minha liberdade. Despejando ódio contra os supostos subversivos, o general transferia para eles a revolta pelo episódio do acerto de contas do então deputado federal Leonel Brizola que, num inflamado e inconsequente discurso no Fórum de Debates “Djalma Maranhão”, em Natal, chama-o de “gorila”. Mas, afinal, voltava para a minha filha, minha família, meus amigos e para meu quarto. Era quase banal lembrar o meu quarto de dormir, mas, naquele momento, ele fazia parte da minha privacidade.

O estado emocional e luta para ser forte na prisão já me cansavam enormemente. O sofrimento de prisioneira, acrescido do sofrimento pela família e pelos companheiros, já me esgotava e fragilizava. Estávamos, todos os perseguidos, unidos pelo mesmo drama: na dor de meus pais estava a dor de todas as outras famílias.

Diante de uma liberdade condicionada ao resultado de um processo, senti-me comprometida a comunicar ao capitão Lacerda que gostaria de voltar ao quartel para visitar o meu cunhado Moacyr de Góes, que fora transferido do quartel da Polícia Militar para as celas do 16° R1. Comuniquei, ainda, que no dia da libertação de Diva, teria que recebê-la em minha residência, pois a dela não mais existia; a mãe continuava hospitalizada e ela sem emprego, demitida que fora pelo governador e prefeito dos cargos de professora do Atheneu e do Ginásio Municipal, tendo a casa onde morava devolvida ao proprietário por falta de pagamento do aluguel. O capitão respondeu que Diva sairia no dia seguinte. Ficou claro que as nossas prisões Diva, Margarida e eu (Laly havia sido presa pelo Exército) – haviam sido decididas unicamente pelo delegado Veras, presidente da Comissão Estadual e de sua inteira responsabilidade. Os depoimentos que decidiam nosso destino eram prestados àquele delegado. O capitão Lacerda nos interrogava para cumprir um ritual da Comissão Geral do Investigações mas não decidia sobre a nossa libertação. Falou da liberdade de Diva antes mesmo de ouvi-la e de ter elementos para julga-la; sua liberdade fora decidida, então, pelo delegado Veras, a quem Diva prestara depoimento anteriormente. O capitão, com aquela informação, confirmou minhas suspeitas sobre a responsabilidade de minha prisão e esclareceu algumas dúvidas de ordem política local. O capitão encerrou a conversa autorizando visitar Moacyr e receber Diva. Pedi-lhe, então, que mandasse vir um táxi para voltar a casa. O então sargento Elmar Guerreiro, datilógrafo da comissão, ofereceu carona no seu automóvel. Voltei à prisão, pela última vez, para as despedidas e apanhar meus objetos pessoais. Abracei demoradamarte as companheiras e, por recomendação do capitão, nada comentei sobre a saída de Diva. Retirei-me sem pressa daquele quarto de prisão, onde a minha vida assumiu dimensões quase infinitas. Cristo e eu sabemos quanta dor e quanto apelo nos nossos diálogos.

Já era noite quando deixei o quartel em companhia do sargento Elmar Guerreiro.

Sai para a liberdade, mas a liberdade na ditadura era apenas um sonho e um desejo. Nossa realidade era a vida um sobressalto e nos movíamos em círculos muito estreitos.

A vida da cidade aos poucos me era devolvida, com ruas escuras e eu querendo claridade. Desejava sentir a alegria de estar livre, mas estava cheia de sombras. Em casa ninguém me esperava. As lembranças do reencontro com a família são vagas distantes. Lembro os amigos chegando com flores e emoção.

Quase imediatamente apresentaram-se à porta da casa um repórter e um fotógrafo da “Tribuna do Norte”. procurando entrevistar-me. O mesmo jornal do dia 20 de junho havia publicado a minha prisão com a seguinte notícia:

TRÊS AUXILIARES DE DJALMA MARANHÃO DETIDAS NO 16° RI.

Por determinação dos senhores José Domingos e Carlos Veras, que presidem o chamado inquérito da subversão, foram detidas, na manhã de ontem, as senhoritas Mailde Pinto, Maria Diva e Margarida Cortês, responsáveis pelos setores de “educação e conscientização” da Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler.”

No domingo, 21, a mesma "Tribuna do Norte" publicou:

MULHERES.

Ainda repercute a prisão efetuada sexta-feira última das três professoras da Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler, a senhora Mailde Pinto e senhoritas Margarida Cortês e Maria Diva, e interrogações quanto aos papéis que elas tinham na trama subversiva abortada a 31 de março. Fala-se em método de politização com base na linha Havana-Pequim."

Os meios de comunicação cumpriam o seu papel na divulgação dos fatos e não se davam conta do quanto expunham as nossas dores e o quanto violavam a nossa intimidade. Unidos no processo de massificação popular e no anticomunismo indiscriminado, usavam os perseguidos com sensacionalismo para aumentarem suas vendas. Recusei-me a conceder entrevista e prestar qualquer informação, mas, no dia seguinte, lá estava eu sendo notícia no jornal “A Tribuna do Norte”:

MAILDE E DIVA FORAM LIBERTADAS.

A ex-diretora da DDC; senhorita Mailde Pinto e a coordenadora da Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler, que se encontravam detidas no Quartel do 16° RI há mais de um mês, foram liberadas pelos homens do chamado inquérito da subversão na noite de segunda-feira. Procurada pela reportagem em sua residência, a professora Mailde Pinto, aparentemente calma, negou-se a prestar qualquer declaração.”

Não foi possível defender a minha privacidade e, naquela noite, toda a minha sensibilidade estava exposta. Tive, também, a surpresa de ver chegarem à porta de minha casa dois oficiais que, quando nas funções de oficiais de dia, haviam sido meus carcereiros. Recebi-os na calçada, sem entender o que buscavam. Bastante encabulados e em trajes civis, queriam cumprimentar-me pela liberdade. Confessaram que haviam conseguido ouvir a gravação de meu depoimento com o capitão Lacerda, torcendo por mim a cada pergunta e resposta. Agradeci, surpresa e emocionada, àqueles homens a quem temíamos tantas vezes, que tinham as chaves de nossa prisão e que, agora, demonstravam esconder uma solidariedade que só podiam confessar fora do quartel. Entreguei-lhes uma rosa das que havia recebido e pedi-lhes que a entregassem às companheiras. Despediram- se e voltaram às suas obrigações de carcereiros. Dias depois, indo ao quartel visitar Moacyr, emocionei-me ao ver a rosa, já murcha, dentro de um copo, por trás das grades.

Diva chegou no dia seguinte, como estava previsto; abatida e triste, sem lar, sem emprego e sem referencial de vida. Laly e Margarida só foram libertadas dez dias depois, após a revogação da prisão preventiva de Laly, que fora decretada pela Auditoria Militar de Recife. Diva levou ainda alguns meses para conseguir condições de deixar Natal e partir para o Rio de Janeiro.

Não consegui das companheiras de prisão os depoimentos sobre as suas experiências; razões pessoais impediram-nas de voltar às lembranças daqueles dias. Diva falou apenas do espanto de ver serem queimados os livros das bibliotecas que existiam nos Acampamentos Escolares e as Cartilhas de Alfabetização de Adultos da Campanha "De Pé no Chão Também se Aprende a Ler". Militares do Exército fizeram uma fogueira com os livros em frente ao então Centro de Formação de Professores, no Baldo, onde funcionava o Ginásio Municipal de Escola de Comércio do Município. Ela confessa que chorou.

Laly, que reside em Paris, de passagem por Natal leu este relato e apenas comentou detalhes sobre o que já estava escrito.

De Margarida ouvi apenas um desabafo: “Foi tudo muito dolorido, muita destruição na minha vida, tudo muito difícil, não quero falar mais.”

Dias depois de minha libertação, recebi de Djalma Maranhão um recado pedindo para ir vê-lo no quartel da Polícia Militar. Relutei bastante em atender, mas acabei cedendo; havia tanta insegurança em todos nós e Djalma era tão odiado que temi pela minha liberdade. Ele recebeu a mim e Dora Furtado com o mesmo sorriso, tentando demonstrar otimismo e crendo, ainda, numa esperada volta do país à normalidade. Não sei se por desinformação dos reais acontecimentos políticos ou porque desejava tanto a liberdade, ele acreditava, para breve, a volta da democracia ao país. Era difícil encarar a realidade de ver Djalma naquela prisão, politicamente destruído. tentando sustentar uma esperança, enquanto lá fora os militares endureciam cada vez mais o regime. Dora Furtado e eu quase não falamos. Ele queria detalhes da minha prisão e das outras companheiras; preocupava-se pela nossa segurança e, principalmente, pelas consequências que ainda poderiam vir, em decorrência dos depoimentos. Queria saber, também, se guardávamos dele alguma mágoa pois considerava-se o responsável pelo nosso envolvimento. Sentia-se causador do sofrimento da equipe que fora massacrada, como consequência da perseguição política para destruição de sua liderança. Preso e impotente, Djalma comportando-se como um pai que não pôde proteger os filhos. Despedimo-nos com tristeza e admirando a resistência daquele homem que lutava sempre e não se sentia vencido.

Em nenhum instante daquele encontro comentou o sofrimento da prisão nem as violências físicas a que foi submetido e reveladas, apenas, à sua esposa Dilma Ferreira Siqueira, que acompanhou Dária, na ocasião de uma visita.

Naquela tarde, uma das primeiras após o golpe, elas foram ao quartel visita-lo. Levadas pelo tenente Calado a uma cela onde Djalma se encontrava, sozinho, tão logo entraram receberam dele o apelo de que procurassem o coronel Mendonça Lima para denunciar que havia recebido pancadas na cabeça. Estava nervoso e abatido. O tenente Calado, que era conhecido pela crueldade para com os presos, ficou muito zangado, desmentiu a afirmação e encerrou a visita.

Dário e Dilma dirigiram-se à residência do coronel Mendonça Lima, fizeram o relato e o apelo. O coronel demonstrou espanto e despediu-as, deixando a impressão de que tomaria providências e seguiria, naquele instante, para o quartel do 16° RI.

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Confinamento dos presos

O dia 15 de agosto foi mais um daqueles tantos da insegurança da ditadura quando, à noite, nasceu Leonzinho, uma criança linda e saudável, filho de Conceição e Moacyr de Góes, que chegou em plena ditadura e já marcado por ela desde antes de nascer. A alegria pelo parto normal de Conceição chocava-se com a tristeza pela prisão e ausência do pai, encarcerado no 16° RI. Conceição, emocionada e silenciosa, sem lágrimas e sem sorrisos, abraçava o filho, recebia os amigos e se fechava no mistério da sua solidão. Não sendo dia de visita, procurei ajuda do oficial de dia para avisar a Moacyr. Fui atendida ao telefone pelo capitão Aroldo Galvão que, imediatamente, transmitiu a notícia.

Poucos dias após o nascimento da criança, a imprensa divulgou que o capitão Lacerda havia retirado alguns presos dos quartéis e levado para o confinamento da ilha de Fernando de Noronha. Os quartéis entraram em prontidão e as visitas aos presos estavam suspensas, fato que acontecia sempre que surgia algo de novo ou eram editados novos atos de exceção. A notícia deixou-nos em grande aflição principalmente diante da possibilidade de terem levado Moacyr.

O meu irmão Leon e eu dividíamos a preocupação por Conceição que já programava, para a próxima visita, levar a criança ao quartel. Para protegê-la e evitar que lhe informassem sobre a transferência dos presos, os médicos que a assistiam proibiram as visitas. Decidi, então, ir ao quartel e procurar falar com o capitão Lacerda mas não o encontrei. O oficial de dia, tenente Jurema, atendeu-me e empenhou a palavra que Moacyr continuava na mesma prisão. Convidou-me a andar pelo pátio interno do quartel, onde estive na expectativa de ver Moacyr através das grades.

Naquele dia as janelas estavam vazias, nenhum rosto apareceu. Demorei o tempo possível, mas tudo era silêncio e solidão. Imaginei que os presos estariam nas camas, temendo pelos companheiros e por si mesmos. Pela minha experiência podia saber que, naquele dia, estariam acuados e recolhidos sobre os seus destinos. Agradeci ao oficial e me retirei.

Informada da minha visita ao quartel, a médica Aliete Roselli, cunhada do preso Luís Maranhão, procurou-me, chorando, pedindo ajuda para voltar ao quartel e conseguir notícias dele, através do mesmo capitão Lacerda. O nome de Luís já constava das notícias da transferência para a ilha mas ela não conseguia aceitar. Foi muito difícil para mim negar aquela ajuda mas não consegui atendê-la; havia esgotado minha reserva de coragem na busca por Moacyr. Os quatro presos, Djalma Maranhão, Luís Maranhão Filho, Floriano Bezerra e Aldo Tinoco, foram levados pelo capitão Lacerda, para a ilha de Fernando de Noronha na madrugada de uma sexta-feira. A transferência era motivada pela concessão de um habeas-corpus, requerido ao Superior Tribunal Militar, em favor do preso Aldo Tinoco, então suplente de deputado federal, conforme informação do capitão Lacerda a "O Poti", de 23 de agosto, divulgada na seguinte notícia:

DESTINO DOS QUATRO PRESOS POLÍTICOS FOI FERNANDO DE NORONHA.

Nenhuma revelação foi feita à imprensa pelas autoridades militares em torno do ponto do território brasileiro para onde foram levados, na madrugada de anteontem, os quatro presos políticos transferidos de nossa capital.

Ontem à noite, em contato com o capitão Ênio Lacerda, presidente do IPM que apura a subversão em nosso Estado, soubemos que chegara à tarde a resposta do comando do 4º Exército à consulta formulada pelo comando da guarnição, indagando sobre o informe aos jornalistas ou não do destino dos presos. A resposta foi negativa.

Adiantou, ainda, que a ordem partiu do general Antônio Carlos da Silva Muricy, que responde pelo comando do 4º Exército. Em resposta a uma pergunta, admitiu que, apesar de ser esperada a transferência, a concessão de habeas-corpus pelo Supremo Tribunal Militar pode ter tido influência para a decisão do assunto.


A TRANSFERÊNCIA

Os quatro presos políticos, ex-prefeito Djalma Maranhão, ex-deputados Luís Maranhão Filho e Floriano Bezerra e o suplente de deputado federal Aldo Tinoco saíram de nossa capital na madrugada de sexta-feira.

Foram conduzidos em avião militar da FAB, pelo próprio capitão Lacerda e pelo tenente Roosevelt, do 16° RI. O local para onde foram conduzidos estava em segredo. É certo, porém, que continuam em território do 4º Exército.

O capitão Lacerda e o tenente Roosevelt retornaram da missão na noite do mesmo dia, adiantando que os presos políticos não demonstraram, durante a viagem, constrangimento com a viagem.

Quanto ao habeas-corpus concedido pelo Superior Tribunal Militar em favor do Dr. Aldo Tinoco, afirmou o capitão Ênio Lacerda que, até o momento, nenhuma confirmação oficial recebeu em torno do assunto. – Tomou conhecimento da decisão apenas por noticiário de jornal. No entanto, respondendo a uma pergunta, afirmou que não duvida que o bacharel Aldo Tinoco será libertado se chegar o habeas-corpus.


CONFIRMADO FERNANDO DE NORONHA

No entanto, já à noite, tivemos informações que o Sr. Venâncio Zacarias, pai do ex-deputado Floriano Bezerra, vindo hoje à nossa capital, como faz todos os sábados, para visitar o seu filho e não o encontrando, procurei o coronel Mendonça Lima, que responde pelo Comando da Guarnição. Daquela autoridade militar era recebido a informação de que o seu filho, como também os outros três presos políticos, foram transferidos para a ilha de Fernando de Noronha."

O ódio do general Muricy era tanto que se sentiu com poderes para desafiar uma decisão do Superior Tribunal Militar, retirando os presos de Natal para Fernando de Noronha e impedindo ou retardando o cumprimento dos habeas-corpus.

Passamos, ainda, uma semana até a próxima visita aos presos quando ficamos convencidos de que Moacyr, realmente, se encontrava no quartel. Acompanhei Conceição quando levou o filho para ser visto pelo pai, no dia seguinte ao que deixou a Maternidade Januário Cicco, onde recebeu inteira solidariedade da equipe médica e paramédica que a manteve ali por quase quinze dias, até que ficassem tranqüilos quanto ao seu estado emocional. A equipe era composta pelos professores Leide Morais, Araken Pinto, Heriberto Bezerra, Adelmaro Cunha, Edmilson Queiroz, Lavoisier Maia, Socorro Santos, Edísio Pereira e Aluízio Leite.

As visitas aos presos aconteciam ao ar livre, no pátio ao lado das celas. Formavam-se grupinhos em torno de cada preso. Os oficiais e soldados vigiavam, circulando em torno, inibindo gestos e conversas. Moacyr estava visivelmente emocionado; beijou a esposa e o filho mas não permitiu que a excepcional visita fosse dramatizada por maior tristeza.

Os dias que se seguiram à transferência dos presos para Fernando de Noronha foram tensos e repletos de boatos. Falaram que outros presos somam levados e voltávamos das visitas sem certeza da próxima.

Ainda no mês do agosto, os jornais divulgaram que poderia haver trovas prisões mas não esclareciam que, em cinco meses de investigações não haviam conseguido uma única prova que confirmasse a preparação do atos terroristas ou subversivos a serem praticados pela equipe do prefeito Djalma Maranhão ou do qualquer outro setor da cidade. Continuávamos, no entanto, a viver sob tensão e vigiados por civis delatores e militares.

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Fernando de Noronha

ALDO DA FONSECA TINOCO
(Odontólogo, ex-suplente de Deputado Federal, ex-Professor da UFRN. Professor da USP)

Para conseguir informações sobre o confinamento dos quatro presos políticos na ilha de Fernando de Noronha, procurei ouvir o professor e ex-suplente de deputado federal Aldo da Fonseca Tinoco, que iniciou a entrevista justificando a dificuldade de recompor as lembranças de 1964 e citando o escritor André Maulraux: “A memória é uma grande artista; só guarda as passagens belas da vida.”

Aldo Tinoco encontrava-se preso há quatro meses e estava numa cela do quartel do 16° Regimento de Infantaria quando foi despertado, em uma madrugada de agosto, juntamente com o prisioneiro Floriano Bezerra; avisaram-lhes que preparassem seus pertences pois iriam viajar. Em seguida, foram levados até um caminhão que os aguardava no pátio. No caminhão encontravam-se o ex-prefeito Djalma Maranhão e o professor Luís Maranhão Filho.

Na quase escuridão daquele amanhecer, desconfortavelmente acomodados nos bancos de um caminhão militar, os presos conjecturavam sobre seus destinos. Levados ao aeroporto pelo capitão Lacerda. Certificaram-se de que seriam transferidos para prisões em outros Estados ou para a ilha de Fernando de Noronha. Admitiam, também, com muita preocupação, que poderiam ser jogados do avião para a morte no mar, como se comentava que já havia acontecido com alguns prisioneiros políticos. No avião encontraram um general, cuja presença tranquilizou Djalma, que comentou para os companheiros: “Acho que não vão nos jogar no mar porque o general deve nos garantiu um destino mais humano.” Quando o avião sobrevoava o oceano, certificaram-se de que o destino era mesmo a ilha de Fernando de Noronha.

Chegando à ilha, foram recolhidos ao quartel do exército que possuía diversas celas nas quais foram distribuídos e onde encontraram outros prisioneiros, muitos deles originários da Bahia. No mesmo avião foi embarcado, de volta, o ex-governador de Sergipe, Dr. Seixas Dória. Em cela isolada encontrava-se o prisioneiro Miguel Arraes de Alencar, ex-governador de Pernambuco.

O professor Aldo, embora estivesse beneficiado por um habeas-corpus requerido pelo desembargador Túlio Bezerra de Melo, seu cunhado, continuou preso na ilha por mais de trinta dias.

No dia-a-dia do quartel os presos se encontravam nas horas das refeições, tomavam banhos de sol e, após o jantar, conversavam por meia hora até se recolherem para dormir. Sob a liderança de Djalma trocavam ideias e fortificavam-se para suportar o isolamento do mundo, naquela ilha de beleza e solidão. Possuidor de habeas-corpus, Aldo tinha autorização para dirigir-se a uma pequena mercearia onde, algumas vezes, burlando a vigilância, comprava cachaça e fazia uma meladinha que todos tomavam. O comandante do quartel, um major espírita, sociólogo e maçom, tratava-os com respeito, o que contribuía para conservarem um estado de espírito razoável.

Aldo tinha permissão, também, para pescar e o fazia em companhia de um sargento, que se tornou seu amigo. Ao sargento confidenciou o desejo de fugir da ilha utilizando um caiaque como meio de transporte. O sargento contou-lhe histórias de pessoas que tentaram fugir e morreram. Assim, morreu também aquele frágil projeto de fuga para a liberdade. Aldo comenta que sofria do que chamou “psicose reativa do preso que pensa sempre em fugir e reagir”.

Trinta e tantos dias após a chegada à ilha, lá desembarcou, a bordo do avião presidencial, o general Ernesto Geisel, então chefe da Casa Civil do Presidente da República, general Humberto de Alencar Castelo Branco, com o objetivo de apurar denúncias de maus tratos aos presos que, segundo Aldo, não ocorriam e verificar o descumprimento dos habeas-corpus. Terminada a visita, o general Geisel trouxe, no seu avião, para uma prisão no Recife, o Dr. Miguel Arraes e, para a liberdade, o professor Aldo Tinoco. Na ilha ficaram os demais presos, entre eles Djalma, Luís Maranhão e Floriano Bezerra.

Desembarcando no Recife, o general entregou Aldo a um coronel, determinando, de dedo em riste: “O Tinoco está em liberdade! É para ser posto em liberdade!” Apesar da recomendação, Aldo foi levado, juntamente com o governador Miguel Arraes, para a mesma cela de um quartel, onde se encontrava o líder das ligas camponesas, Francisco Julião. Minutos depois chegou o coronel a quem havia sido recomendado pelo general e, bastante nervoso, disse, rapidamente e em voz alta: “O Senhor está posto em liberdade. Pode ir embora.”

Livre da prisão e consciente de que retornando a Natal seria novamente preso, Aldo embarcou anonimamente para o Rio de Janeiro onde viveu, clandestinamente, até conseguir novo habeas-corpus, requerido pelo advogado Roque de Brito Alves, o qual o livrou do processo que corria na Auditoria Militar. No mês de setembro, o ex-prefeito Djalma Maranhão foi transferido da ilha para um hospital militar do Recife, onde foi submetido a tratamento de saúde, para curar doenças adquiridas na prisão.

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Conclusão das investigações

No dia 3 de setembro “A Tribuna do Norte” divulgou o encerramento do inquérito que apurava a subversão no Estado informando que outro inquérito viria, com novas prisões. O terrorismo contra os perseguidos e suas famílias continuava, com a seguinte notícia:

CONCLUINDO O PRESENTE INQUÉRITO, OUTRO VIRÁ COM NOVAS PRISÕES DILIGÊNCIAS.

Novo inquérito para prender novos implicados de subversão no Rio Grande do Norte para apurar novas denúncias surgidas e diligências que não têm cessado desde o início da revolução, será instaurado tão logo se encerre o presentemente em fase final sob coordenação do Veras e Domingos. Esse outro inquérito será aberto tão logo o primeiro seja entregue ao governador Aluízio Alves, afirmando José Domingos que não precisa de outra requisição para o reinício dos trabalhos porque “de bom grado continuarei em Natal pata fazer a limpeza total dos elementos comprometidos com o movimento subversivo brasileiro.”

No dia 15 de setembro, o mesmo jornal noticiou, depois de criar longa expectativa através de sucessivos anúncios, a entrega dos autos do processo ao governador do Estado.

HOMENS E AUTOS.

O senhor Carlos Veras e José Domingos, juntamente com os autos do inquérito, fizeram a entrega ao governador Aluízio Alves de um relatório de mais de vinte folhas datilografadas e ofício em duas laudas, sob o número W40. Ao chegar para o encontro com o governador potiguar, Carlos Veras estava de roupa de linho branco, gravata vermelha, sapato marrom, enquanto José Domingos trazia roupa azul, gravata preta e sapato marrom, uma maleta na mão se saberia trazer no seu interior os autos da subversão."

O provincianismo da notícia descrevendo a vestimenta dos galãs do inquérito estadual evidenciava a atenção especial que os delegados recebiam de alguns órgãos da imprensa.

Os relatórios elaborados por Carlos Veras e Rodolfo Pereira, presidentes das duas comissões do Estado e Município, são extensos, repetitivos e direcionam as acusações contra o programa cultural da Prefeitura, indicando os principais responsáveis.

Apresentam como crimes praticados pelos estudantes o fato de haverem pertencido à União Nacional dos Estudantes, presidirem diretórios estudantis, organizaram-se nas reivindicações da classe e proferirem palestras a convite dos sindicatos sobre assuntos de saúde, educação e reformas de base. Acusava, também, de haverem se reunido no dia l° de abril. As provas materiais dos crimes eram os livros apreendidos nas bibliotecas de cada um.

O crime cometido pelo jornalista Leonardo Bezerra foi o de possuir livros marxistas em sua vasta biblioteca. O do poeta Nei Leandro de Castro o de abordar, com poesia, os problemas sociais.

Os líderes sindicais foram enquadrados pelos crimes da organização sindical por reivindicarem as reformas de bases, promoveram greves e pertenceram ao Partido Comunista Brasileiro. Somente uns poucos confirmaram a filiação partidária.

RELATÓRIO DA COMISSÃO MUNICIPAL.

“DJALMA MARANHÃO - Quando no exercício de Prefeito, organizou na Prefeitura – setor da educação - um trabalho de politização e conscientização de caráter puramente extremista, isso através da Diretoria de Documentação e Cultura, Centro de Formação de Professores, por meio de visitas ao setor de educação de pessoas extremistas, como podemos citar: Francisco Julião, Padre Alípio de Freitas, deputado Almino Afonso, estudantes e jornalistas cubanos e outros.

Mantinha, também, o ex-prefeito, o Fórum de Debates que tem seu nome, onde recebia todos os elementos extremistas que visitavam esta capital, fazendo ali palestras, comícios e conferências.

Sobre sua responsabilidade circulava, também, o jornal “Folha da Tarde”, que fazia a linha puramente extremista.

No dia primeiro de abril de 1964, Djalma Maranhão instalou na Prefeitura o QG da Legalidade, isto em represália a revolução de 31 de março último.”


”MOACYR DE GÓES - Quando exercia o cargo em comissão de secretário de Educação, Cultura e Saúde do município, foi o autor intelectual de todo o movimento subversivo que se processou naquela secretaria, através da Diretoria de Documentação e Cultura e do Centro de Formação de Professores”.

O relatório continua com as mesmas acusações e encerra dizendo o seguinte sobre Moacyr de Góes:

“Finalmente, acobertado no manto da religião que diz praticar, pela sua inteligência e com dotes oratórios, pode ser considerado o cérebro do movimento subversivo que se processou no setor de educação da Prefeitura.”

“MAILDE PINTO - Foi a responsável pela aquisição dos livros subversivos destinados às bibliotecas que serviam ao Centro de Formação de Professores, Concha Acústica, Postos de Empréstimo das Rocas e Quintas e às Bibliotecas Ambulantes, que eram distribuídas por meio de caixas aos acampamentos.

Grande parte desses livros foram apreendidos pelo Exército e o restante retirado das bibliotecas pelo atual diretor da Diretoria de Documentação e Cultura.”

O diretor referido no relatório, advogado Diógenes da Cunha Lima, substituiu-me no cargo de Diretor da Documentação e Cultura da Prefeitura de Natal.

Do relatório apresentado pela Comissão Estadual retirei o seguinte:

O presente inquérito policial é de natureza e investigação singular foi instaurado por força do decreto de 17 de abril do corrente ano, publicado no Diário Oficial do dia 18 e republicado no mesmo órgão oficial dia 29 do mesmo mês, através do qual O Exmo. Senhor Doutor Governador do Estado nomeou esta autoridade para como delegado de polícia, especial, apurar, com jurisdição em o Estado, a prática de atos contra a segurança do país e regime democrático, probidade da administração pública ou crime contra o Estado e seu patrimônio, a Ordem Política e Social ou atos de guerra revolucionária. (Ato Institucional, art. 7, parágrafo 1° e art. 8)

O histórico do relatório discorria sobre a atuação do partido comunista no mundo, citava Lenin em linguagem panfletária e, em alguns trechos, dizia:

“Apesar de se encontrar na ilegalidade; o Partido Comunista do Brasil, de forma aparentemente legal, vinha liderando toda a propaganda que visava a arregimentação das massas através de campanha de fundo nacionalista, tais como: "Campanha Anti-imperialista", "Campanha para Aumento de Salário", "Campanha Contra a Carestia" e, através de órgãos existentes, como U.B.E.S. - União Brasileira dc Estudantes - e U.N.E. - União Nacional de Estudantes - e, ultimamente, através das chamadas “Frentes", como Frente de Libertação Nacional, Frente Parlamentar Nacionalista, Pacto de Unidade e Ação - P.U.A.- C,G.T.- Comando Geral dos Trabalhadores e F.M.P. - Frente de Mobilização Popular - , as quais se uniam, em determinadas ocasiões para seguir o fim que lhes fora determinado pelo partido.”

O relatório continua, cheio de chavões e sem um único fato concreto para fundamentar juridicamente as prisões.

Sobre a responsabilidade da Prefeitura foi dito o seguinte:

“Foi para o setor de alfabetização que o ex- prefeito Djalma Maranhão do seu staff de funcionários escolheu cuidadosamente um grupo dela encarregado. Formou este grupo tirando-o de forças esquerdistas em quase sua totalidade... "A subversão educacional que sob o nome e slogan de Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler, era dirigida e supervisionada pela Secretaria de Educação, Cultura e Saúde da Prefeitura de Natal, contou com a participação direta dos seguintes elementos, todos indiciados no presente inquérito: Djalma Maranhão, ex-prefeito de Natal, Moacyr de Góes, (ex-secretário de Educação, Cultura e Saúde, Margarida de Jesus Cortez, ex-diretora do Centro de Formação de Professores da “Campanha” Maria Diva da Salete Lucena, ex-vice-diretora do Centro de Formação de Professores, Omar Fernandes Pimenta, ex-assessor técnico de ensino da Prefeitura de Natal, Mailde Ferreira Pinto, ex-diretora da Diretoria de Documentação e Cultura, Luiz Gonzaga dos Santos, ex-vice-prefeito do município de Natal bem como outros que deram o seu apoio, colaboração e esforço a esta que tornou-se a maior obra de subversão no ensino do Rio Grande do Norte.”

O relatório final, com acusações feitas pelas três comissões de investigação e o indiciamento de oitenta e três pessoas, foi remetido à 7a. Auditoria Militar do Recife pelo governador Aluízio Alves e pelo Comandante da Guarnição no Rio Grande do Norte. No final do exercício de 1965, começamos a receber as intimações para identificação e posterior julgamento naquela corte.

O relatório da Comissão Estadual foi, em seguida, publicado com fotografias dos indiciados retiradas dos arquivos do DOPS, impresso em plaquetas nas oficinas da Editora O Diário Associados e distribuídas às autoridades civis, militares e pessoas de prestígio social.

“A Tribuna do Norte” de 10 de outubro publica o ato do governador com as demissões dos empregos dos considerados subversivos e concessão de pensão às famílias. Com esse ato o governador Aluízio Alves completou a execução civil da ditadura militar no Rio Grande do Norte.

A pensão concedida pelo percentual do tempo de serviço correspondia a 10% em média sobre os salários dos demitidos que cantavam, em sua maioria, com pouco tempo de exercício no quadro de funcionalismo. Um exemplo da humilhante e insignificante pensão era a importância que recebia a esposa do professor Omar Pimenta: do salário de seiscentos mil cruzeiros, passou a receber sessenta mil cruzeiros para a manutenção de cinco filhos. Baseado no mesmo Ato Institucional, o governador demitiu, também, funcionários nomeados pelo senador Dinarte Mariz, sem acusações de subversão, entre os quais Descartes de Medeiros Mariz, jornalista Joanilo de Paula Rego e engenheiro Roberto Freire.

ATO DE DEMISSÃO - Despacho do Governador.

Em processos diferentes que mandei anexar, a Comissão de Aplicação do Ato Institucional indica os responsáveis sobre processo de subversão que se desenvolvia no Estado, de par com atos de improbidades apuradas em longas e penosas investigações que abrangeram, também, o período do governo anterior.

Constituída de pessoas da maior probidade e da maior isenção de ânimo para esse árduo e delicado trabalho, a Comissão se esmerou nas investigações a que procedeu para evitar injustiças ou omissões e aponta os indiciados afinal encontrados como incursos nas sanções do Art. 7, parágrafo primeiro do Ato Institucional.

Nessa conjuntura, tenho que considerar de um lado o dever que a lei me impõe para proferir a decisão final. Por outro lado, se devo cumprir este dever, devo igualmente considerar a situação das famílias dos indiciados, muitos deles presos e entregues a incertezas e as dificuldades a que foram súbita e inesperadamente largados.

Devo também considerar como elementar princípio de justiça o grau ou a intensidade das atividades desenvolvidas por cada um dos indiciados para que não resulte aplicação uniforme e penalidade a atividades desiguais ou menos intensas.

Assim considerando, determino que aos demitidos, ocupantes de cargos efetivos, o ente público respectivo (Estado ou Município) providencie pelos meios legais adequados a concessão de uma pensão na base de 50% sobre o vencimento padrão, contado proporcionalmente o tempo de serviço a ser apurado pelo órgão competente.

Em conseqüência resolvo, na forma do Art.7, parágrafo primeiro do Ato Institucional, demitir:”

Segue-se a relação dos demitidos com os respectivos cargos. A lista é encabeçada pelo ex-prefeito Djalma Maranhão, que ocupava o cargo efetivo de Diretor da Diretoria de Documentação e Cultura e o de Professor do Atheneu.

Alguns companheiros, demitidos dos empregos, sem meios de sobrevivência e acossados pela delação e perseguição local, ao saírem da prisão procuraram refúgios em outros Estados e até fora do país: Laly Carneiro e Marcos Guerra conseguiram fixar residência em Paris; Djalma Maranhão exilou-se no Uruguai: Moacyr de Góes, Hélio Vasconcelos, Diva Lucena, Berenice Freitas, Tereza Braga, Luiz Gonzaga dos Santos, Luiz Maranhão Filho, Aldo da Fonseca Tinoco, Margarida de Jesus Cortez, Ubirajara de Macedo, Geniberto Campos, Francisco Ginani seguiram para o Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília.

Poucos dos que saíram retornaram para morar em Natal e a cidade perdeu alguns de seus melhores valores intelectuais e políticos.

Recém-saídos das prisões, enfrentávamos preconceitos e o afastamento de muitas pessoas com as quais convivíamos. O medo, a insegurança e a covardia explicavam essas atitudes. Acostumei-me aos olhares de curiosidade e rejeição e nem sei explicar por que me sentia tão forte. Da experiência de enfrentar cinco comissões e ser questionada na revisão dos atos como diretora da Diretoria de Documentação e Cultura e da luta contra a invasão de minha vida privada, adquiri uma forte segurança de cidadania.

Entre as dezenas de pessoas indiciadas por terrorismo, encontravam-se seis mulheres: Maria Laly Carneiro, Maria Diva da Salete Lucena, Margarida de Jesus Cortês, Tereza Braga, Berenice Freitas e eu.

Como os demais subversivos, fui intimada a comparecer ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) para ser fichada como indiciada por crimes cometidos contra a segurança nacional. Submeteram-me ao mesmo ritual empregado para fichar criminosos comuns. O fotógrafo trabalhava automatizado pelo atendimento a tantos e não se alterou com um rato, enorme, que saiu de um móvel de onde tirava alguns objetos. O rato corria entre ele e a porta e eu fiquei parada, num canto da sala. Estava assustada mas não pude deixar de rir de minha própria situação, acuada por um rato numa dependência da polícia.

Viver sob a tensão daqueles tempos e conservar o bom humor já era um exercício de autodefesa e até de proteção à saúde. Muitas vezes consegui rir de situações que considerava ridículas mas que me envolviam nos males da ditadura. Assustava-me e muito quando via uma viatura militar e ria de mim mesma quando as encontrava.

As associações de lembranças de alguns acontecimentos de 1964 surgem inesperadamente, às vezes emocionam sem tristeza, mas sempre incomodam. Chegam, outras vezes, carregadas de ternura como no fim de uma visita à prisão na qual Iaponi Araújo despediu-se com lágrimas nos olhos e tanta tristeza que precisei sorrir afirmando que “apesar de tudo, a vida é boa e eu gosto de viver”. Foi o comentário que me ocorreu naquele instante e valeu para os dois.

Fomos todos muito magoados e ofendidos em 1964. Perdemos mais do que dizemos ter perdido. Vivemos uma incrível experiência do conhecimento humano; vimos o bem e o mal sem limites e conhecemos, também, a solidariedade humana em gestos da maior grandeza.

Houve gestos como o do Dr. Alvamar Furtado, chegando à nossa casa, numa hora do almoço, meio encabulado, oferecendo-se para fazer uma coleta entre os amigos e conseguir passagens aéreas para devolvermos a Conceição e Moacyr, àquela altura refugiados no Rio de Janeiro, os cinco filhos que haviam ficado conosco. Conseguiu as passagens com a ajuda dos empresários Walter Pereira e Geraldo Santos e as crianças puderam partir ao encontro dos pais.

O médico Pedro Coelho teve uma atitude de corajosa solidariedade naqueles tempos de medo; informado da minha prisão, dirigiu-se ao Quartel-General, solicitou e conseguiu audiência com o comandante, apresentou o seu depoimento sobre a minha vida, que conhecia como médico e amigo, demonstrando estranheza pela minha prisão. Repetiu o mesmo gesto quando da prisão de um estudante, igualmente, seu conhecido. Sua atitude não mudou os acontecimentos das nossas vidas mas, sem dúvida, foi um testemunho importante num momento em que muitos outros se afastavam dos perseguidos.

Em 1964 havia muito ódio mas havia muito amor. Na noite em que saí da prisão a minha casa encheu-se de ternura, a ternura da família e dos amigos. Paulo de Tarso Correia de Melo chegou com rosas vermelhas e exuberante de alegria; Cléa e Nísia Bezerra, Nadja Amorim, Moacy Cime, Iaponi Araújo, Dailor Varela e outros abraçaram-me com um calor humano impossível de descrever.Entregaram-me um livreto com provérbios chineses preparado por eles e um dragão, símbolo da resistência, desenhado na capa por Newton Navarro.

Até mesmo os oficiais que trouxeram, naquela noite, os seus cumprimentos, demonstraram que a solidariedade humana pode existir, também, dentro dos quartéis.

Um destaque especial deve ser dado à família do Dr. João Maria Furtado que, desde os primeiros dias da ditadura, assumiu a paternidade de todos os presos, a quem deu assistência jurídica e moral. Roberto Furtado, que escapou da prisão por interferência do coronel Ulisses Cavalcanti, conforme afirmação do mesmo, advogou gratuitamente todos os perseguidos; Dora Furtado dedicava-se especialmente aos que não tinham família em Natal. Dona Jacira era considerada a mãe de todos.

Os gestos de solidariedade, hoje lembrados, ainda sensibilizam e emocionam; em 1964 eles atenuavam o sofrimento e a solidão.

O Dr. Otto de Brito Guerra, apesar de ter a sua residência cercada por militares nas diversas ocasiões em que prendiam seu filho Marcos, assumiu, com destemor e gratuitamente, a defesa de diversos presos políticos. Em uma única noite, na residência do Dr. João Maria Furtado, datilografou, ele mesmo, assessorado por Roberto Furtado e Odete Roselli, esposa de Luiz Maranhão Filho, dezenas de requerimentos para solicitação de habeas-corpus dirigidos ao Superior Tribunal Militar. Na madrugada daquela noite, Dora Furtado e Odete Roselli começaram a recolher assinatura das famílias dos presos.

Por todo o dia, enquanto procurava assinaturas, Dora foi seguida por um jipe do Exército. Na residência de Omar Pimenta e Albaniza, sua esposa, assinou o requerimento, vendo um jipe parado a uns dez metros de distância de Dora. Todos sentiam medo mas não estavam vencidos.

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Luta nos tribunais

Os requerimentos preparados naquela noite, com tanta urgência, foram entregues ao então deputado federal Joaquim Inácio de Carvalho Neto que, atendendo a um pedido da esposa de Djalma Maranhão, assumiu a responsabilidade de apresenta-los e defendê-los no Superior Tribunal Militar.

Em entrevista concedida sobre o episódio dos habeas-corpus o ex-deputado Carvalho Neto esclareceu detalhes de sua participação na libertação de quarenta e dois presos políticos do Rio Grande do Norte.


JOAQUIM INÁCIO DE CARVALHO NETO

(Advogado, ex-Prefeito do município de Antônio Martins, ex-Deputado Estadual, ex Deputado Federal, Empresário)

Procurado em sua residência pela Sra. Dária Maranhão, esposa do ex-prefeito, e sensibilizado pelo drama dos presos políticos, indefesos há vários meses nas celas dos quartéis, o deputado advogado, que até então estava afastado do sofrimento pessoal das famílias atingidas pelo golpe militar, assumiu a responsabilidade de lutar nos tribunais militares pela liberdade dos presos políticos de Natal.

Após inteirar-se do conteúdo das acusações com o desembargador João Maria Furtado, Carvalho Neto recebeu os requerimentos e viajou ao Rio de Janeiro.

O primeiro requerimento a dar entrada foi o do ex-prefeito Djalma Maranhão, que apresentava o maior peso de acusações, embora não houvesse provas materiais de crimes. Julgado, foi negado por unanimidade, no Superior Tribunal Militar, apesar da defesa apresentada na sessão de julgamento.

Carvalho Neto recorreu imediatamente ao Supremo Tribunal Federal em Brasília, teve o seu recurso acolhido por unanimidade, sendo concedido o habeas-corpus. Na ocasião, aquele tribunal era presidido pelo ministro Ribeiro da Costa e, como relator do processo atuou o ministro Emer Guimarães.

De posse do documento de habeas-corpus, Carvalho Neto viajou ao Recife, apresentou-se ao 14° RI, onde foi atendido pelo coronel João Dutra de Castilho que o tratou grosseiramente. Disse o coronel:

- “O sr. tão moço e prestando um desserviço à nossa revolução! O sr. fique sabendo que a nossa revolução é como um trator que não tem marcha a ré!”

Carvalho Neto tentou dialogar e perguntou onde se encontrava Djalma Maranhão. O coronel respondeu, em tom de ameaça:

- “Ele está aqui mas eu não cumpro a ordem.”

O deputado, sem condições de argumentar com o coronel, voltou a Brasília e solicitou audiência com o presidente do Supremo Tribunal Federal.

Recebido pelo ministro Ribeiro da Costa, Carvalho Neto informou:

- “Sr. ministro, lamentavelmente a ordem de habeas-corpus concedida pela unanimidade do Supremo não foi cumprida; o comandante do 14° RI, coronel João Dutra de Castilho, onde se encontra o preso, disse que não cumpre a ordem.”

O ministro aconselhou, paternalmente:

- “Meu filho, você se resguarde o máximo que vou me reunir com os outros membros e vamos ao presidente da república.”

A reunião aconteceu, os ministros fecharam o Supremo e foram ao presidente Castelo Branco entregar-lhe as chaves do edifício.

O presidente da república, conforme afirma o deputado, ouviu os ministros e respondeu que voltassem que lhes daria todas as garantias.

Nova ordem de habeas-corpus foi expedida pelo Supremo para Djalma Maranhão e entregue ao mesmo Carvalho Neto, que voltou imediatamente ao Recife. Mais uma vez foi recebido grosseiramente pelo coronel Castilho, que não teve alternativa senão cumprir a determinação de soltura do preso.

Assim, foi concedida a liberdade a Djalma Maranhão em novembro de 1964, oito meses após a prisão.

Carvalho Neto acompanhou Djalma na viagem ao Rio de Janeiro e, atendendo a seu pedido, levou-o do aeroporto para a residência do senador Dinarte de Medeiros Mariz.

O deputado ainda se emociona com as lembranças de Djalma ao sair da; estava inseguro, traumatizado e triste.

Quando tentaram embarcar do Recife para o Rio, encontraram o aeroporto repleto de militares que aguardavam a chegada do general Costa e Silva. Somente no dia seguinte é que puderam viajar.

O encontro com o senador Dinarte Mariz foi espontâneo e afetuoso. O senador, que era considerado um dos líderes civis do golpe militar, abraçou Djalma e disse:

- “Eu não disse, Djalma, que isso não ia dar certo! Você se envolve com essas coisas... Eu sei que você não é comunista mas você estava muito afoitão...”

Perguntou, então, em que poderia ajudar. Djalma respondeu que queria asilar-se na embaixada da Argélia, mas, antes, gostaria de divulgar um manifesto através de algum jornal. O manifesto, transcrito em seguida, foi publicado pelo jornal "O Correio da Manhã", do Rio de Janeiro; nele declarava, entre outras coisas, que não acreditava na validade do habeas-corpus naquele momento da vida nacional.

PALAVRAS AO POVO

Depois de oito longos meses de cárcere, nos presídios de Natal, Fernando de Noronha e Recife, fui libertado por habeas-corpus, concedido pelo Supremo Tribunal Federal. Resolvi, no entanto, procurar asilo político na embaixada do Uruguai e, deste gesto, sinto-me na obrigação de prestar aos brasileiros, particularmente aos nordestinos e aos meus conterrâneos do Rio Grande do Norte, os seguintes esclarecimentos:

I - Não creio na validade de um habeas-corpus neste momento da vida brasileira em que a ordem jurídica é vilipendiada e destruída diariamente; os casos Seixas Dória e Astrogildo Pereira, para citar apenas os mais recentes, comprovam, sobejamente, essa interpretação.

II - Meu estado de saúde exige tratamento imediato, sendo impossível fazê-lo no clima de apreensão em que vive o país. Duas vezes, dado o clima de terror em que estamos mergulhados, minha morte foi anunciada pela imprensa. Perdi vinte e cinco quilos de peso. Em Natal, fui internado no Hospital da Polícia Militar e, antes de concluir o tratamento, levado para Fernando de Noronha, de onde, posteriormente, fui mandado para o Hospital do Exército no Recife, visto que receavam o escândalo do meu falecimento na ilha. Ultimamente, estava detido no Regimento Guararapes, na capital pernambucana. Vou para o exterior, também, na tentativa de recuperar a saúde.

III - Além do mais, com os direitos cassados, demitido do emprego e sem condições de trabalho, são mínimas as possibilidades de tentar; aqui; o tratamento de que necessito. Confio em que minha ausência será de pouco tempo.

IV - O governo está totalmente submetido ao imperialismo; agrava-se, dia a dia, a crise econômico- financeira; a inflação toma proporções imprevisíveis e já nos encontramos às vésperas daquilo que Jânio Quadros classificam como a "revolução do orçamento doméstico". O general fome está nas ruas, nos campos, nas fábricas, nas escolas, nas repartições públicas e, muito em breve, nos quartéis, absorvendo o aumento de Vencimentos dado aos militares. Este governo ilegal, arbitrária e inimigo do povo, não terá meios para travar a batalha decisiva.

Garanto, porém, que ante o espectro da fome, nenhum povo permanece de braços cruzados. A história demonstra. Até breve, meus irmãos.

Djalma Maranhão

Rio de Janeiro, novembro de 1964"

Djalma permaneceu ainda três dias no apartamento do senador Dinarte Mariz, até conseguir entrar na embaixada da Argélia, que não lhe concedeu exílio, o que lhe foi concedido pelo governo do Uruguai, após uma curta permanência na embaixada do mesmo país, para onde transferiu-se.

O lançamento do manifesto irritou mais ainda os militares contra Djalma Maranhão e, por extensão, o deputado Carvalho Neto, que continuava apresentando requerimentos ao Superior Tribunal Militar, onde os habeas-corpus eram negados e recorridos ao Supremo Tribunal Federal, no qual eram concedidos.

Já os quarenta e seis presos encontravam-se em liberdade quando Carvalho Neto foi preso, em sua residência, por militares do Exército. Sua casa amanheceu cercada por tropas militares, comandadas pelo coronel João José Pinheiro da Veiga, que apresentou uma intimação para o deputado comparecer ao 16° RI. A prisão efetuada com a apresentação de um documento de intimação pode ter sido uma exceção, em face da imunidade parlamentar.

O deputado espantou-se com o aparato militar, casa cercada e cinco jipes com soldados armados e disse:

- “Coronel, sou um homem civilizado. O sr. não está prendendo nenhum Al Capone."

O coronel respondeu:

-"Estou apenas cumprindo ordens."

O deputado obteve permissão para tomar café, conversou com a esposa e recomendou que procurasse o advogado Joanilo de Paula Rego para comunicar ao senador Dinarte de Medeiros Mariz que estava sendo levado pelos militares para o 16° RI.

Chegando ao quartel às oito horas, Carvalho Neto foi obrigado a esperar na sala dos interrogatórios até o meio dia, quando chegou o capitão Ênio Lacerda, acompanhado pelos capitães Aroldo e Airton. Lacerda iniciou o interrogatório insultando e ameaçando, exigindo saber os motivos pelos quais o deputado estava requerendo habeas-corpus, que "atrapalhavam a revolução e a vida da nação." Os argumentos do deputado irritaram o capitão que se preparou para mais um ato de violência, exclamando:

- “Ah, é sabidinho? É inteligentezinho? Pois então vai apanhar!"

E partiu para consumar a agressão. O capitão Aroldo Galvão interferiu com determinação e disse:

- “Neste aqui você não bate. Você tem batido em muita gente, mas neste aqui não!”

Com a discussão entre os dois militares o interrogatório foi encerrado. Carvalho Noto ficou detido até às vinte e duas horas, sendo libertado por interferência do Senador Dinarte Mariz.

Considerado um dos líderes civis do golpe militar, o senador Dinarte de Medeiros Mariz comportou-se de forma diferenciada dos demais implantadores da ditadura. Enquanto a cúpula do poder institucionalizava os atos de exceção para perseguirem e punirem os considerados subversivos, ele assumia a defesa das vítimas e tentava reparar as injustiças.

O advogado e atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio Grande do Norte, professor Hélio Xavier de Vasconcelos, relatou detalhes da interferência de Dinarte Mariz em dois momentos decisivos para os perseguidos do Estado. Quando eram negados aos presos do Rio Grande do Norte os habeas-corpus requeridos ao Superior Tribunal Militar, o senador procurou o ministro Alcides Carneiro, do mesmo Tribunal e fez-lhe a seguinte afirmação: "Esses meninos do Rio Grande do Norte não são comunistas; lá só tem dois comunistas, Luís Maranhão e Vulpiano Cavalcanti e são dois homens de bem."

Para impedir a demissão de Hélio de um emprego na Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, no Rio de Janeiro, o senador levou-o à presença do Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid. Este, informado de que Hélio havia sido punido pelo Ato Institucional, observou: "Os atos institucionais são os dogmas da revolução." Dinarte respondeu:

-"Mas, quem aplicou os dogmas da revolução na sua terra, São Paulo, foi o governador Ademar de Barros e, na minha terra, o Rio' Grande do Norte, foi Aluízio Alves, ambos depois cassados por corrupção, pela própria revolução."

Hélio não foi demitido e, a partir daquele encontro, não voltou a ser molestado.

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Dois anos depois

Em abril de 1966, recebi telegrama da Auditoria Militar do IV Exército, no Recife, comunicando que estava enquadrada nos crimes previstos nos artigos 9, 10 e 12, da Lei 1802/53 - a Lei de Segurança Nacional. Recebi o comunicado sem surpresa mas fiquei mais uma vez muito assustada.

Somente em fins de agosto fui intimada, com data marcada, para comparecer perante aquela Auditoria. Não consigo lembrar se a convocação informava se eu seria interrogada ou apenas identificada. Para apresentar-me à Auditoria, necessitava da companhia de um advogado, o que não conseguia em Natal. Por aqueles dias a tensão nacional atingia os limites do terror; todos os quartéis encontravam- se em prontidão, em consequência da explosão de uma bomba, justamente no aeroporto do Recife, por ocasião do desembarque de alguns generais, quando morreu o almirante Nelson Fernandes. Os militares tinham estavam agitados e procuravam em todos os lugares possíveis os autores do atentado que, até hoje, não foram, de fato, identificados. Na época suspeitava-se que a bomba havia sido colocada pela “linha dura” dos próprios militares, numa tentativa de justificarem um maior endurecimento do regime.

Viajar ao Recife, por aqueles dias e na condição de subversiva, era um risco muito grande. Depois de alguns entendimentos, decidi, através dos amigos Paulo Rosas e José Eufrânio Alves, residentes naquela cidade, contratar, para minha defesa, o conceituado profissional Dr. Roque de Brito Alves. O advogado aceitou a causa mas os seus honorários eram altos demais para os meus parcos recursos. Com um empréstimo da família e de amigos viajei ao Recife.

Apresentei-me ao Dr. Roque na sua residência com certa timidez mas ele me recebeu com tranqüilidade e inspirou confiança. Leu a intimação, não fez comentários, indagou sobre o meu cargo na Prefeitura e convidou-me a visitar a sua coleção de porcelanas antigas. A coleção era linda e bem cuidada mas concentrei-me em uma reprodução de Salvador Dali, com um Cristo na cruz, flutuando entre um céu infinitamente azul e um lago sereno. A comunicação com o Cristo ajudou-me a vencer o medo, a angústia e a solidão. Deixei a sala quase tranqüila. Senti gratidão e carinho por Dr. Roque, que proporcionou aquele encontro antes de me levar até a Auditoria.

A Auditoria era uma casa antiga e bem recuada. Caminhamos até uma sala onde já se encontravam diversos denunciados, com expressões aflitas e assustadas. O ambiente era solene e tenso. Sentamo-nos à frente de um estrado onde se encontravam os militares, separados de nós por uma divisória de madeira. Ao lado ficavam os advogados, pouquíssimos para tantos indiciados. O Dr. Roque ocupou um lugar e passou a ler uma revista, como se nada lhe interessasse naquele ambiente. Era eu a única mulher naquela sala. Senti tristeza por mim e por aqueles homens desamparados, alguns mal vestidos, saídos das prisões que todos nós conhecíamos. Felizmente, a imagem do Cristo me acudiu e em meio às minhas aflições ouvi um oficial pronunciar meu nome e ordenar que me apresentasse. Enquanto caminhava até a frente dos militares, Dr. Roque ficou de pé, acompanhando-me com o olhar. Entregaram-me, então, um documento que me encaminhava a outro setor do Exército, onde seria identificada e fichada.

À saída, despedi-me do Dr. Roque de Brito Alves que assumiu a responsabilidade de conseguir-me um habeas-corpus que me livrasse do processo que corria naquela Auditoria.

Às 14 horas dirigi-me, sempre acompanhada por Leon e Socorro, sua esposa, a um quartel ido Exército, onde encontramos os estudantes Geniberto Campos, Francisco Ginani, João Faustino Ferreira Neto e diversos outros "subversivos" de Natal. Após o ritual de identificação fomos liberados. Deixamos a cidade quando já ia anoitecendo. Conosco voltaram Geniberto e Ginani. Era agosto e uma lua imensa clareava a noite. Liguei o rádio do carro e o cantor Jair Rodrigues começou a cantar: "Tristeza, por favor vá embora." Chegamos a Natal aliviados e quase felizes. Soube, depois, que na pressa de sair do Recife, Leon esquecem de abastecer o carro e corrêramos o risco de ficar pelo caminho...

Meu habeas-corpus, de número 29.135, foi concedido somente em 4 de outubro de 1967, quando fui excluída da denúncia oferecida pela Auditoria da 7 Região Militar. O relator foi o ministro Dr. Orlando Moutinho Ribeiro da Costa.

A denúncia apresentada era a seguinte:

“Dedicou-se à organização de postos bibliotecas. sendo que participou da reunião em se tratou da necessidade da adaptação da “Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler”. Como diretora que foi da Diretoria de Documentação e Cultura de Secretaria de Educação do Município, imprimiu cunho subversivo a seu serviço.” fls. 14.

Caracterizando a denúncia assim se expressou o ministro relator:

“Assim, dita denúncia não devia ter sido recebida, na conformidade do disposto no art. 189, do CJM, porque não fixa dia, hora, lugar em que teria cometido crime e, mais, ainda, não descreve nenhum ato delituoso por ventura praticado pela paciente, de forma que torna-se um verdadeiro constrangimento ilegal a obrigação da paciente abandonar o seu serviço e o seu lar, em Natal, R. G. do Norte, para comparecer e responder ao processo em Recife, Pernambuco.”

Os consideranda que antecederam à exclusão do processo e respectiva sentença foram:

“Considerando que a denúncia na narração dos fatos não descreve nenhum delito que possa ser atribuído a paciente;

Considerando que a dita denúncia, além de não descrever crime nenhum quanto à paciente, não fixa dia, hora e lugar em que teriam ocorridos os fatos ali descritos;
Considerando que a paciente comprova que é funcionária pública federal, servindo no Departamento de Correios e Telégrafos há mais de vinte anos. sem nota desabonadora, nunca tendo sofrido qualquer penalidade;

Considerando que a denúncia oferecida não tipifica crime de espécie alguma contra a paciente;

Considerando o mais que dos autos consta;

ACORDAM, em Tribunal, por unanimidade de votos, conceder a presente ordem impetrada em favor da funcionária Mailde Ferreira Pinto, para excluí-la da denúncia oferecida na auditoria da 7° R.M., como incursa nas penas dos arts. 9,10 e 12 da Lei n 1802/53 por falta de justa causa.

Superior Tribunal Militar, 4 de outubro de 1967."

Seguem-se as assinaturas de quinze ministros do Superior Tribunal Militar, entre eles o general Olympio Mourão Filho, um dos cabeças do golpe militar, e do general Ernesto Geisel, um dos presidentes da República durante a ditadura.

O habeas-corpus anulou as denúncias que me fizeram na ditadura militar; ficaram, porém, e definitivamente, as marcas do sofrimento.

Os outros companheiros foram, igualmente, excluídos dos processos por habeas-corpus concedidos, também, pela unanimidade do Superior Tribunal Militar e assistimos então, todos nós, em silêncio, através dos votos dos próprios militares, a desmistificação das acusações que nos fizeram.

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Os que não sobreviveram

Aos que não sobreviveram ao sofrimento e crueldade da ditadura militar de 1964, particularmente aos companheiros do Rio Grande do Norte, apresento aqui a minha comovida homenagem e o respeito o mais profundo.

LUIZ IGNÁCIO MARANHÃO FILHO, advogado, professor, deputado estadual e militante do Partido Comunista.

Integrante da cúpula nacional do Partido Comunista Brasileiro, foi preso em Natal, logo nos primeiros dias de abril e encarcerado no quartel do Ro, de onde foi levado, no mês de agosto, para a prisão da ilha de Fernando de Noronha. Libertado por habeas-corpus, voltou a Natal seguindo, depois, para o Rio de Janeiro, onde passou a viver na clandestinidade e continuou a militância política. Luiz não reapareceu, depois de divulgado o decreto de anistia aos punidos e condenados políticos. A única informação sobre o seu destino foi publicada na revista "Veja", edição de 18 de novembro de 1992, em uma entrevista concedida ao editor Expedito Filho, pelo ex-sargento e ex-agente do Destacamento de Operações Internas ( DOI - CODI ) de São Paulo e do Centro de lnformações em Brasília, Marival Dias Chaves.

Na entrevista, o ex-agente declara a morte de "Luiz Ignácio Maranhão Filho, preso em São Paulo, em 1974: Levado para Itapevi, Maranhão Filho morreu com a injeção para matar cavalo". Em Itapevi, situada na região da grande São Paulo, existia uma casa que, segundo o ex-agente, havia sido transformada “em centro de torturas e execuções.”


LUIZ GONZAGA DOS SANTOS, esportista, funcionário público, vice-prefeito de Natal, eleito com Djalma Maranhão, morreu de infarto em uma prisão do Recife, quando cumpria pena de um ano de reclusão, por condenação da IV Auditoria Militar.


DJALMA MARANHÃO, esportista, funcionário municipal, professor do Atheneu Norte-Rio-Grandense e primeiro prefeito eleito de Natal, morreu no exílio em Montevidéu, no dia 30 de julho de 1971. É comum, nas três mortes, o isolamento da família, dos amigos e a solidão. Suportou com dignidade e coragem todo o sofrimento e humilhação que lhe impuseram nas prisões da ditadura mas sucumbiu ao isolamento e solidão do exílio. Entre os companheiros das prisões por onde esteve, deixou a marca da sua liderança, coerência política e resistência moral. De acordo com o testemunho deles, entre os quais o jornalista Raimundo Ubirajara de Macedo e o empresário Carlos Lima, causava admiração o equilíbrio de humor com que ele administrava a tensão emocional da pressão que sofria. Em alguns momentos, brincava com os companheiros e levantava a força moral dos demais prisioneiros.

Omar Pimenta, que se encontrava preso no quartel do Regimento de Obuses, foi surpreendido, um dia, pela chegada do ex-prefeito que para lá fora levado para prestar mais um depoimento. Entrou no alojamento sorrindo, cumprimentando a todos e repetindo: Vai passar...vai passar..." Os oficiais retiraram-no, rapidamente. Ubirajara lembra apenas um momento em que Djalma entristeceu: aconteceu quando o próprio Ubirajara, que fora libertado dias antes pelo capitão Lacerda, foi novamente preso pelo simples fato de haver passado no Grande Ponto, para comprar jornais. Denunciaram-no como se estivesse participando de conversas políticas. Sua liberdade havia levantado o ânimo dos demais presos; a nova prisão trouxe o desânimo e a confirmação do endurecimento do regime. No reencontro, a decepção dos presos foi geral e Djalma, com ansiedade, cobriu-lhe de perguntas sobre a situação do país. Informado de que continuavam as prisões em todo o território nacional, não escondeu a tristeza e depressão.

Outras lembranças de Djalma Maranhão são relatadas pelo seu filho Marcos, que não o acompanhou ao exílio mas visitou-o quatro vezes, com passagens oferecidas pelo então senador Dinarte Mariz. Marcos recorda a enorme saudade que ele sentia e a ansiedade com que aguardava o fim da ditadura. Cada ano esperava que fosse o último; o tempo passava e a ditadura continuava. Para ele, nunca acabou.

O empresário José Pacheco e sua esposa Nenen guardam recordações desde quando o conheceram como professor de Educação Física no Atheneu, ainda jovem e esportista, e já entusiasmado pelo nacionalismo puro, com o qual defendia soluções brasileiras para os problemas brasileiros. À fidelidade e a amizade resistiram a toda a perseguição, calúnias e perseguição vividas em 1964. Pacheco e Nenen visitaram Djalma em todas as prisões por onde esteve, inclusive na embaixada do Uruguai, no Rio de Janeiro, exceção para Fernando de Noronha.

No quartel do 16° RI receberam de Djalma um pedido para que divulgassem que ele estava sofrendo ameaça de tortura física. Não explicou quem ameaçava nem as condições em que o fizeram. Pacheco tentou, então, fazer um “abaixo-assinado”, pedindo transferência do clero, para que os comandantes militares concedessem-lhe um tratamento mais humanitário. Entre os supostos amigos, pessoas de prestígio social a quem procurou, conseguiu apenas uma assinatura: a do escritor Veríssimo de Melo.

Não conseguindo assinaturas para o “abaixo-assinado”, Pacheco recorreu à Assembleia Legislativa e encontrou receptividade no deputado Erivan França, filho de um amigo do ex-prefeito. O deputado apresentou denúncia em plenário e, talvez, evitou a consumação da tortura.

A última lembrança do casal Pacheco vem do último encontro no exílio de Montevidéu, em 1967. Encontraram-se no local onde Djalma cumpria a obrigação de se apresentar diariamente, na condição de exilado. Abatido e emocionado, Djalma os abraçou e chorou; não conseguiu conter a explosão dos sentimentos.

Passaram juntos quinze dias, até se acabarem os recursos e serem obrigados a voltar. No momento da despedida, o ex-prefeito propõe voltar com eles e entrar, clandestinamente, no Brasil. Pacheco fez-lhe várias advertências sobre o risco de voltar e ser novamente preso; mas ele estava cheio de vontade e desespero. Finalmente, despediram-se; e despediram-se pela última vez.

Outro casal que visitou Djalma Maranhão no exílio de Montevidéu foi seu ex-auxiliar e companheiro de prisão Josemá Azevedo com a esposa Joana d’Arc. Eles falam da saudade imensa que Djalma sentia. Nos três dias que passaram juntos, Djalma procurava disfarçar a emoção mas se traía nas indagações sobre os amigos, os conhecidos e sobre a cidade que amava muito. Josemá é enfático e incisivo em afirmar: “Djalma Maranhão morreu de saudades.”

O mais longo convívio no exílio, com amigos de Natal, Djalma teve com o médico Leônidas Ferreira e esposa, quando o mesmo fazia especialização no Hospital Pereira Roussel, de Montevidéu. Leônidas, que era amigo pessoal do prefeito, com ele dividiu todos os momentos disponíveis daqueles oito meses. Em alguns dias em que era obrigado a permanecer no hospital, Djalma o procurava, quase sempre angustiado e tenso. Leônidas, dispondo de carro próprio, levava-o sempre a passeios para ver o mar. Ele falava do sonho de voltar ao Brasil e residir na praia de Ponta Negra.

Como ocupação, Djalma mantinha uma pequena representação de revistas e turismo, instalada na casa comercial de um judeu, com quem fez amizade. O comércio com revistas não apresentava lucro real mas lhe impunha uma obrigação diária.

Permanentemente ávido por notícias do Brasil e de Natal, inquietava-se quando não as recebia nos dias previstos. Mantinha bom relacionamento e constante convívio com os outros exilados políticos e com alguns comemorava, em seu pequeno apartamento, as datas cívicas brasileiras.

Na distância do tempo, Leônidas analisa a luta intensa que Djalma desenvolvia para adaptar-se ao exílio sem, portanto, conseguir vencer a angústia, solidão e saudade.

Algumas pessoas podem surpreender-se com a sensibilidade de Djalma Maranhão, mas, quem o conheceu de fato, quem assistiu a seus transbordamentos emocionais nos momentos de luta, de agressividade, generosidade e afeto para com os amigos, sabe bem que escondia uma sensibilidade profunda.

Quase sempre só no exílio, porque a esposa não se adaptava ao clima de Montevideo, a saudade que sentiu foi devastadora. A ditadura durou vinte anos; ele resistiu a apenas seis.

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