Coleção
Memória das Lutas Populares no RN
Acervo Impresso
Moacyr de Góes
Livros
e Publicações
Mailde Pinto Galvão, Edições
Clima 1994
Dedicatória
ESTE
LIVRO,
Dedicado a Dilma, Cláudio, Roberto, Marcelo, Beto e Raquel
(filha, marido, genro e netos), é uma homenagem a todos os
perseguidos pela ditadura militar de 1964.
É igualmente, a oportunidade para lembrar e agradecer os
gestos de solidariedade que todos nós, os “subversivos”,
recebemos de pessoas que participaram da nossa história.
Agradeço, em especial, a meu pai (in memoriam), à
minha mãe, irmãos e cunhados, silenciosos e dignos
no sofrimento, pela compreensão e apoio.
Aos amigos que, em muitas tardes, foram presenças emocionadas
e inesquecíveis nas visitas à prisão.
Aos que colaboram na realização deste livro: poeta
Nei Leandro de Castro, que o enriqueceu, oferecendo a capa e sugestões;
aos professores Willington Germano, pela valiosa contribuição
oferecida, e Márcia Muniz, pelo apoio técnico à
edição do texto.
Apresentação
O
livro de Mailde é um grito abafado de quase trinta anos.
É um grito cheio de sentidos, pedaços do sofrimento
de uma mulher cujo tema principal é a continuidade ou, se
quiserem, o recomeço. Conduz-nos a um tempo de sofrimento,
mas, também, de muita alegria, visto que foi o tempo da possibilidade
de concretizar um sonho, o tempo de nossa juventude. A ditadura
amadureceu a maioria, como se diz, o carbureto.
Num
certo sentido, livrou-nos da transição via mediocridade
que a “mesmice” pode acarretar. Carregamos dentro de
nós um sentimento de vitória, não de derrota.
A morte esteve presente, é verdade. Levou amigos belíssimos
que poderiam estar conosco. Tudo bem. Mas a morte, em certas condições,
não significa o fim. Estão conosco, e mais, estão
em todas as ações e lutas da sociedade brasileira
em defesa do homem. Na práxis política, na cultura,
portanto, em todas as manifestações sociais.
Não
se sabe por onde andam os outros. Aqueles que se colocavam às
paredes, com medo do contágio da subversão, que fizeram
as exposições do material apreendido nas escolas,
nas bibliotecas públicas e particulares, nos sindicatos.
Convivem com o lodo.
Mailde,
nascida no Sertão do Nordeste brasileiro, região semi-árida,
onde os meninos têm toda a liberdade do mundo e as meninas
estão sempre acompanhadas, nasceu do lado de cá da
vida. Podia ter filha de um morador, mas era filha do dono da terra.
Ali, a infância é muito dolorosa. As histórias
de assombração são as cantigas de ninar. O
lado gostoso são os banhos de açude, onde as meninas
nuas sentem no corpo o sol e água. Perdeu muito cedo este
prazer, pois ao ser internada no Colégio das freiras, o banho
de chuveiro era vestida.
O
caminho das mulheres ao espaço público é quase
sempre acompanhado de sofrimento, discriminação e
violência. Sair do espaço privado, do seio da família
protetora, ocupar uma função no Estado em expansão,
desempenhando “função de homem”, pode
torná-las o alvo dos vigias permanentes da moralidade social.
Mais ostensiva pode tornar-se a vigilância se esta mulher
não carrega ao seu lado a sombra do marido protetor. Qualquer
atitude não entendida, que possa pôr em risco a salvação
das aparências ou criar um novo modelo de comportamento, assusta
homens e mulheres – por motivos diferentes, é claro.
O
casamento, assumido muitas vezes na adolescência, significava
uma condenação “ad aeternun”. Não
importavam as diferenças, o desamor, o desespero que estas
situações acarretavam. O “caritó”
também podia significar uma dependência afetiva e emocional
dos parentes, quando não uma dependência econômica.
A separação do casal, portanto, expressava geralmente
o abandono da mulher, deixada na casa do pai.
Aos
19 anos estava Mailde de “volta” à casa do pai,
com uma filha de dois anos. As tentativas de retorno aos estudos,
interrompidos pelo casamento aos quinze anos, foram inúteis.
As escolas temiam o ingresso de uma jovem mulher descasada. Em casa
ouvia rádio (todos os noticiários da Rádio
Nacional) e voltou-se para os livros. Por uma feliz coincidência,
o primo e amigo de seu pai, professor Antônio Pinto de Medeiros,
escritor e poeta, colocou em suas mãos uma biblioteca de
clássicos, responsável por uma formação
humanística que nenhuma escola da cidade poderia dar.
Perdeu-se
no caminho sem volta da inquietação intelectual; à
solidão de mulher somou-se a solidão do intelectual.
Aquela
família do sertão, parte de uma paisagem dura e apaixonante,
onde os homens e mulheres carregam nos olhos secos a imagem de cacimbas
esgotadas que se confunde com cipós e juremas retorcidas,
aprendeu a engolir e depois e respeitar e defender aquela mudança
em seus hábitos. Não se comentavam as mudanças.
Economizavam-se as palavras. Não se pode ignorar que a dureza
do solo transmitiu-se ao comportamento dos homens. Há muito
sentimento mas poucas palavras. Por isso as palavras são
tão valiosas. Acreditam que sua força está
em não deixar comover. Um toque físico ou de uma palavra
pode ser fatal. Qualquer descuido pode provocar uma tempestade de
sensível ternura. Se isto ocorre estão perdidos. Essa
é a luta maior, o grande inimigo. Neste sentido, a vigilância
tem que ser em todos os momentos. Há sempre uma possibilidade
de se escapar pelo riso, claro, a grande arma para fugir das situações
limites.
A
presença de Mailde foi sentada por duas gerações
de intelectuais. A sua própria, de Newton Navarro, Leonardo
Bezerra, João Ururay, Moacyr de Góes, Zila Mamede,
Geraldo Carvalho, Cléa Bezerra, Nísia Bezerra, Myriam
Coeli, Augusto Severo Neto, Marcelo Fernandes, Dorian Gray, Eudes
Moura e posteriormente a de Sanderson Negreiros, Luís Carlos
Guimarães, Afonso Laurentino Ramos, Nei Leandro de Castro,
Moacyr Cirne, Paulo de Tarso, Iaponi Araújo, Tomé
Filgueira, Leopoldo Nelson, Dailor Varela, Lúcia Beltrão.
No
início da década de sessenta, a maioria desses nomes
estava no noticiário cultural e político da cidade,
Mailde já estava à disposição da Prefeitura
Municipal de Natal, à frente da Diretoria de Documentação
e Cultura, da Secretaria de Educação, Cultura e Saúde.
O
Rio Grande do Norte tem uma história bela e rica em singularidades.
Foi nele o primeiro voto feminino, onde pela primeira vez uma mulher
exerceu um cargo executivo à frente de uma Prefeitura, a
criação de uma escola para a formação
de donas de casa (Escola Doméstica de Natal), a criação
da primeira escola de aviação civil, a primeira tentativa
de um governo socialista. Por outro lado, a presença dos
soldados norte-americanos na segunda guerra mundial em Natal, certamente
alterou os hábitos da pequena cidade, embora aparentemente
tudo parecesse no lugar.
As
unidades de ensino universitário, Faculdade de Direito, de
Filosofia, de Medicina, de Odontologia e outras possibilidades a
concentração na cidade de moças e rapazes que
começavam a descobrir os problemas sociais do Brasil. Hélio
Vasconcelos, Geniberto Campos, Josemá Azevedo, Danilo Bessa,
Maria Laly Carneiro, Diva da Salete Lucena, José Arruda,
Francisco Ginani, Gileno Guanabara, Edísio Pereira, Leônidas
Ferreira, João Faustino, Marcos Guerra, Nei Leandro de Castro,
Berenice Freitas, Tereza Braga, Juliano Siqueira viviam com intensidade
esse momento político. Alguns articulavam-se ao Partido Comunista
Brasileiro, que tinha como seu principal formulador político
o professor Luiz Ignácio Maranhão Filho. Outros, recém-saídos
da Juventude Universitária Católica, assumem a luta
pelo socialismo e fundam a Ação Popular. Neste contexto,
a equipe da Prefeitura com o primeiro prefeito eleito de Natal -
composta por profissionais que estavam ingressando na vida pública
– Ticiano Duarte, Roberto Furtado, Moacyr de Góes,
Luiz Gonzaga dos Santos, Omar Pimenta, Carlos Lima, Celso da Silveira,
Francisco das Chagas Oliveira, incorporava uma mulher, Mailde. Essa
equipe, sob a liderança de Djalma Maranhão, articulada
ao movimento social urbano nacional, abre para esses jovens inúmeras
possibilidades de atuação.
O
conceito de cultura, nos trabalhos de Moacyr de Góes, Paulo
Freire, Paulo Rosas, Germano Coelho, Norma Coelho, Josina Godói,
amplia-se e incorpora novos significados. Toda ação
humana é um ato cultural, portanto, a ação
política é também um ato cultural.
O
homem de qualquer classe social detém um saber. Pode não
ser um saber sistematizado, erudito, mas é um saber adquirido
no seu cotidiano de trabalho, ficando em sua pele curtida. O saber
popular. A cultura popular. Há uma sede de conhecimento,
uma necessidade de troca de saberes.
A
leitura não se limita aos textos de Marx e Lenin, a poesia
vem junto. Vinícius de Moraes, João Cabral de Melo
Neto, Pablo Neruda, Drummond, Cecília Meireles, Ledo Ivo.
Estão
todos embriagados de generosidade, de disponibilidade. Cristãos
e comunistas, comunistas e cristãos. E os independentes,
não organizados em partidos políticos. Ocupam os acampamentos
da campanha “De Pé no Chão Também se
Aprende a Ler”, ocupam as “Praça de Cultura”,
o “Teatro do Povo”, ocupam as bibliotecas da DDC, arrastam-se
para as escolas e praças, levam para os palanques da Prefeitura
os grupos das danças folclóricas que existem na periferia
da cidade, ocupam os sindicatos, onde discutem os problemas referentes
às reformas necessárias à extinção
da miséria, e às reformas que possam democratizar
a sociedade brasileira. Discutir com um camponês a reforma
agrária mas também ouvir dele a sua opinião
sobre a participação dos estudantes nos Conselhos
Universitários.
Descobriram
todos a importância do uso da palavra, grávida de significações.
Às vezes os remanescentes de “35”, como Djalma,
assustavam-se com tanto atrevimento e com tantas certezas. Àquela
altura a ação daqueles jovens era carregada de paixão.
Mas que não se pense que era um piquenique. Que não
se pense que não se conheciam os riscos que poderiam correr
por defenderem “a terra para quem nela trabalha”. Só
que não acreditavam nas transformações também
pela via pacífica, pela educação, pela prática
da liberdade.
Houve
uma grande participação de mulheres na atuação
política, criando os comitês nacionalistas. Nenen Pacheco
assumia a liderança. Havia em torno do trabalho político-cultural
da Prefeitura algumas mulheres que contribuíam, mesmo que
discretamente. Entre estas, a mulher do vice-prefeito, Lourdinha
dos Santos, Iara Pimentel. Jacira Furtado, Dora Furtado, Dária
Maranhão e Nalda Medeiros. O cotidiano da cidade mudou. A
vida daquelas pessoas estava diferente. Assumiram uma nova dimensão.
Os fins de semana não se esgotavam na sessão das 18
horas do cine Rio Grande e na leitura dos jornais do Rio. Os momentos
de melancolia, da sensação de perda real ou imaginária
de alguma coisa desejada, sumiam. Já não sobrava tempo
no final de cada dia.
Ah,
Cuba parecia tão perto!
De
repente, setores das forças armadas saem em defesa das elites
empresariais e da propriedade privada. Um Golpe de Estado contra
as reformas, contra as mudanças.
As
prisões se sucederam. As comissões de inquérito
multiplicam-se: no Estado, no Município, na Universidade,
nas Repartições Federais. Há muita perplexidade,
muito medo. Mas há muita dignidade no sofrimento.
A
boçalidade dos interrogatórios provoca uma sensação
de espanto. Percebe-se e a história já provou, que
esses policiais torturadores são os guardiões de todos
os sistemas, mas não são chamados a sentar à
mesa, ficam em baixo da mesa, recebem as sobras como os cães
e os porcos. São os Carlos Veras, os Domingos e os capitães
Lacerda.
Pela
primeira vez em Natal, uma prisão militar assiste à
entrada de mulheres. Por coincidência nenhuma tem a proteção
de marido. São acusadas de pôr em risco a segurança
da Família e da Propriedade Privada, como bem diz a nota
oficial do Exército. Mudaram a fisionomia da cidade e acrescentaram
um bel capítulo à história da cidade do Natal
e da luta das mulheres em defesa de direitos iguais.
A
velhinha de Ponta Negra, que vinha vender goma toda semana, estava
sempre a repetir com nostalgia: “os tempos são outros,
as constelações estão mudadas. Pernambuco não
é mais aquele”. Ninguém perguntava o porquê
daquele lamento. Hoje eu compreendo.
E
Cuba?
Ah,
Cuba parece muito distante!
Rio,
31 de março de 1993
Maria
Conceição Pinto de Góes
Golpe
na Memória
Por
todo o país, convivendo bem ou mal com os seus traumas, há
centenas de vítimas do golpe de 64 com muita coisa para contar
daqueles tempos de escuridão e terror. O ideal seria que
todos pudessem no papel a experiência vivida e se formasse
uma imensa bibliografia, para que não prescreva jamais o
nosso direito de indignação.
Em Natal, começam a surgir os primeiros livros sobre a repressão
de 64. Moacyr de Góes, no seu “Sem Paisagem”,
registra a provação por que passou sob a paranóia
verde-oliva.
Agora, Mailde Pinto Galvão traz a público sua via-certa
sua via-crucis pelos quartéis e interrogatórios.
Escrever memórias da prisão é escalavrar cicatrizes,
meter o dedo na ferida, reviver traumas. A lembrança de um
interrogatório no vem tão forte que pudemos sentir
o hálito do torturador. Logo, o mérito maior de quem
põe em livro essas recordações é não
deixar que o passional tome conta da narrativa; é não
criar versões para os fatos; é não permitir
que o ego se sobreponha aos nossos medos.
Este
1964 – Aconteceu em Abril é um exemplo de narrativa
equilibrada. Mailde, com a sensatez e a dignidade que os amigos
tanto admiram nela, escreveu um depoimento que enriquece a bibliografia
sobre o assunto. O livro pode ser dividido em duas partes. A primeira
é um levantamento do que ocorreu em Natal, no início
de abril de 1964, com pesquisas nos jornais da época que
mostram apoios oficiais ao golpe, o clima de terror que se instale,
as primeiras prisões.
As
memórias que ocupam a segunda metade do livro são
um mergulho na zona sombria em que se encontram as lembranças
mais dolorosas da autora. Mailde não se recusa a trazer à
luz o sofrimento e a angústia dela mesma e de suas companheiras
de cela. Os detalhes não foram esquecidos. Os torturadores
estão lá, com suas tramas e seus nomes próprios.
A tragédia de Djalma Maranhão é relatada num
tom que clama por uma biografia urgente daquele que morreu de amor
por Natal, desesperado no exílio.
Nenhum
sofrimento foi posto à margem Mailde não esqueceu
de nada. O seu livro pede tacitamente para ninguém esquecer
os violentadores da nossa liberdade.
Rio
de Janeiro, abril de 1993
Nei Leandro de Castro
O
Golpe Militar em Natal
Este
relato de fatos ocorridos em 1964 tem a pretensão de contribuir
para o conhecimento da história do golpe militar no Rio Grande
do Norte, focalizando, preferencialmente, os acontecimentos que
atingiram a Prefeitura Municipal de Natal, nos quais fui envolvida,
com alguns companheiros de trabalho do setor de educação
e cultura do município.
Por dificuldades emocionais, muitas vezes tive que interromper esta
reconstituição; mas, eu vivi, sofri e sobrevivi à
perseguição da ditadura. Sinto-me, pois, moralmente
comprometida a tirar da escuridão as minhas lembranças
reprimidas.
Logo
nas primeiras horas da manhã do primeiro dia daquele abril,
a tragédia da ditadura brasileira foi invadindo a vida dos
habitantes da cidade de Natal.
A cidade, com aproximadamente duzentos mil habitantes, assistiu,
indefesa, à ocupação militar por tropas do
Exército, à perseguição, prisão,
tortura, exílio e morte de filhos que a amavam.
Em 1964, o Rio Grande do Norte dividia-se, politicamente, entre
as oligarquias conservadoras e rivais do senador Dinarte de Medeiros
Mariz e do governador Aluízio Alves. O Partido Comunista
Brasileiro encontravam-se na ilegalidade e sobrevivia no Estado
pela liderança do professor Luiz Maranhão Filho e
do médico Vulpiano Cavalcanti.
Como terceira força, surgia o prefeito Djalma Maranhão,
político da esquerda nacionalista, que denunciava, permanentemente,
a interferência do imperialismo americano na vida nacional.
Além de denunciar, Djalma incomodava com uma administração
municipal democrata popular de esquerda, integrada com as lideranças
comunitárias, e executava um programa de alfabetização
e conscientização político-cultural.
Aluízio Alves e Djalma Maranhão foram eleitos governador
e prefeito, no ano de 1960, em aliança política, apoiados
por uma coligação de partidos – Partido Social
Democrata (PSD), Trabalhista Brasileiro (PTB), Democrata Cristão
(PDC), Trabalhista Nacional (PTN), e uma dissidência da União
Democrática Nacional (UDN). A coligação, denominada
“Cruzada da Esperança”, derrotou o candidato
do governador Dinarte de Medeiros Mariz, deputado federal Djalma
Aranha Marinho, pertencente à União Democrática
Nacional. Em poucos meses de administração, governador
e prefeito começaram a divergir e a dividir a opinião
pública.
O governador possuía prestígio e força popular
considerados inabaláveis e administrava tranquilamente, calcado
nos recursos financeiros oriundos do programa americano para a América
Latina, “Aliança para o Progresso”.
Nos anos sessenta, o governo do presidente Kennedy investiu milhões
de dólares em alguns Estados brasileiros. O pesquisador e
escritor Moniz Bandeira escreve, na página 108 de seu livro
“O Governo João Goulart”:
“O comportamento da Embaixada dos Estados Unidos,
entretanto, assumira o caráter de provocação,
corrompendo e aliciando governadores de Estados e prefeitos
de municípios, mediante utilização de verbas
da Aliança para o Progresso, com o objetivo de formar,
ela própria, uma clientela dentro do Brasil em oposição
ao governo João Goulart.”
O prefeito, com bastante dificuldade econômica, realizava
a sua administração, priorizando os programas de alfabetização
popular, conscientização política e democratização
da cultura, que eram executados através da campanha “De
Pé no Chão Também se Aprende a Ler” e
da Diretoria de Documentação e Cultura.
A
campanha de alfabetização, que incluía nos
seus quadros desde professores primários, lideranças
estudantis e professores universitários, coordenados pelo
então Secretário de Educação, Cultura
e Saúde, Professor Moacyr de Góes, mostrou-se, desde
cedo, uma solução vitoriosa, obtendo aceitação
e repercussão nacional.
Um boletim da revista UNICEF, número 27/62, comprova a validade
e seriedade da campanha, como solução para a erradicação
do analfabetismo no terceiro mundo.
Enquanto o governo do Estado usava dólares americanos em
seus programas de educação, a Prefeitura, com seus
recursos próprios, oferecia escolas para a alfabetização
das crianças carentes de Natal e divulgava o slogan ESCOLA
BRASILEIRA COM DINHEIRO BRASILEIRO.
As divergências políticas radicalizaram-se, trazendo
para o ambiente do Estado as mesmas lutas que, no início
dos anos sessenta, dividiam o país entre forças de
direita e de esquerda.
O prefeito Djalma Maranhão, proprietário de um pequeno
jornal – “Folha da Tarde” – deficitário
e de modesta circulação, divulgava diariamente seu
pensamento político nacionalista e anti-imperialista.
Deflagrado o movimento golpista, o prefeito assumiu a defesa da
democracia, bem no estilo decidido de seu temperamento e de suas
convicções políticas.
Comunicou ao comando militar local a sua posição e
fez publicar, nos meios de comunicação, uma nota de
apoio ao Presidente da República, Sr. João Goulart,
na condição de presidente legitimidade eleito, e às
instituições democráticas declarando que a
Prefeitura de Natal tornava-se, a partir daquele momento, “o
quartel-general da legalidade e da resistência.”
A ênfase da nota com a designação da prefeitura
como “QG da legalidade”, num momento em que as tropas
já que se encontravam mobilizadas, irritou os militares e
foi interpretada como uma ameaça de mobilização
para a resistência popular.
Acontecia,
no entanto, que a Prefeitura, como “QG de legalidade”,
era apenas o lugar onde se encontrava algumas lideranças
estudantis, sindicais e assessores do prefeito angustiados por notícias
que chegavam, raras e censuradas, através de um rádio
portátil, ao gabinete do prefeito.
O governador Aluízio Alves, dispondo de outros meios de comunicação
e mais bem informado sobre o desenrolar da crise, fez divulgar na
“Tribuna do Norte” a seguinte nota:
“AO POVO
O governador do Estado, está acompanhado pelos meios
a seu alcance, os acontecimentos que se desenrolam no sul do
país, a partir da crise que tão profundamente
atingiu a disciplina da Marinha, e, ontem, a guarnição
do Exército em Minas Gerais.
Pede ao povo que se conserve calmo, evitando atos ou manifestações
que aprofundem as divisões desta hora em que todos os
esforços devem ser feitos para a restauração
da paz e preservação da democracia.
Todo o Estado está em ordem e espera o governador que
assim se mantenha no resguardo da tranquilidade das nossas famílias,
que deve pairar acima das paixões das pessoas e grupos.
Tudo fazer para solução dos seus problemas, pelas
reformas pacíficas e democráticas, pela unidade
e respeito às forças armadas, pela consolidação
da ordem democrática, pela paz do povo, para o trabalho
e para o progresso.
- 04 – 64 – 1 hora da madrugada
Aluízio Alves.”
No dia seguinte, o governador divulgou outra nota oficial, adiante
transcrita, de apoio ao golpe militar e às forças
armadas.
Definindo-se pelo apoio ao golpe, o governador assumiu com os militares
o poder da ditadura no Estado e, usando o Ato Institucional com
as leis de exceção, atribuiu-se o direito de, paralelamente
aos militares, proceder investigações e prisões
que já estavam sendo efetuadas sob a responsabilidade do
major do Exército Heider Nogueira Mendes, na qualidade de
presidente da Comissão Geral de Investigações
no Rio Grande do Norte, substituído, depois, pelo capitão
Ênio de Albuquerque Lacerda.
O governador formou também sua Comissão de Investigações
e contratou, no estado de Pernambuco, dois policiais especializados,
a quem concedeu poderes absolutos e excepcionais, com toda a mordomia
oferecida aos hóspedes oficiais do governo do Estado. Não
se tem notícia de outro governador que constituísse
uma Comissão de Investigação paralela, com
poderes especiais para processar, prender e encarcerar os supostos
subversivos, como aconteceu no Rio Grande do Norte.
Os policiais Carlos Moura de Morais Veras, com treinamento no FBI,
nos Estados Unidos, e José Domingos da Silva, experientes
e eficientes, usaram, com muita competência, métodos
semelhantes aos praticados pelos nazistas da segunda guerra mundial.
Com a Comissão Geral de Investigações instalada
pelos militares, mais duas comissões ditas de “alto
nível”, criadas pelo governador, e as outras implantadas
em cada repartição pública estadual, municipal
e federal, armou-se a maior rede de investigação policial
militar de toda a história política do Rio Grande
do Norte.
Na
condição de Diretora da Diretoria de Documentação
e Cultura da Prefeitura de Natal, tive, logo nos primeiros dias
de abril de 1964, a minha residência invadida pelo Exército,
fui levada a depor diante de uma comissão militar no quartel
do 16° Regimento de Infantaria, (16° RI) durante uma tarde
inteira, e liberada, em seguida, sem restrições. Em
maio, fui intimada a depor na Comissão de Inquérito
constituída pela Prefeitura Municipal, presidida pelo Bacharel
Rodolfo Pereira e composta por mais três oficiais militares,
sem que saísse de lá nenhuma solicitação
de prisão.
Em 18 de junho, no entanto, fui levada em uma viatura do governo
estadual que se encontrava à disposição do
delegado Carlos Veras e dirigida por um funcionário do Estado,
o qual informou que eu estava sendo convocada a depor com o mesmo
delegado. Com essa informação fui conduzida aos cárceres
do 16° RI.
Decorridos mais de vinte dias, fui interrogada exaustivamente sob
tortura psicológica pelo delegado Carlos Veras, que me fez
voltar à cela com a ameaça de ser transferida para
as prisões de Recife. Passados alguns dias, o capitão
do Exército, Ênio Lacerda ordenou que me trouxessem
à sua presença, interrogou-me novamente e me liberou,
informando que a companheira de prisão Diva Lacerda, que
já fora, como eu, interrogada pelo delegado Veras, mas que
ainda não havia passado pela sua comissão, seria libertada
no dia seguinte.
Diante disto, não é possível ignorar que o
depoimento prestado ao delegado Carlos Veras foi o que decidiu o
meu destino e o das companheiras de prisão. A Comissão
de Investigações do Estado era um poder paralelo aos
dos militares; prendia, torturava e encarcerava nos quartéis,
multiplicando as ações de terror sobre os suspeitos
de praticarem atos de subversão.
O capitão Lacerda liberava porque estávamos encarcerados
no 16° RI e ele era o Presidente da Comissão Geral de
Investigações, mas nós, Diva, Margarida, eu
e outros presos igualmente levados para depor com o delegado Veras,
fomos, de fato prisioneiros da Comissão do governo do Estado.
É uma pena que, até agora, outros companheiros, vítimas
da repressão, não tenham, ainda, conseguido arrancar
das suas feridas outros fatos que poderiam denunciar e documentar
a injustiça e crueldade da ditadura em Natal.
Para registrar estes acontecimentos, recorri aos jornais da época,
“O Diário de Natal” órgão dos “Diários
Associados” e a “Tribuna do Norte”, da empresa
jornalística “Tribuna do Norte Ltda”. As transcrições
estão conforme se encontram nas fontes. Pesquisei documentos
que se encontram em meu poder e ouvi depoimentos dos perseguidos,
que considero indispensáveis para se entender a dimensão
da tragédia humana que se abateu muitas famílias do
Rio Grande do Norte.
1°
de Abril
Alguns
anos se passaram desde os acontecimentos de 1964 no Rio Grande do
Norte, mas as lembranças sobreviveram para transmitir o clima
emocional daqueles dias. Talvez porque a emoção foi
tanta, os fatos vão emergindo muito lentamente e lentamente
vão compondo a história da nossa luta e da nossa resistência.
Na manhã de 1° de abril, já deflagrada a crise
política que implantou a ditadura militar no país,
recebi um telefonema do prefeito Djalma Maranhão convidando-me
a comparecer ao seu gabinete de trabalho na Prefeitura.
Os jornais do dia divulgaram a gravidade da crise. O “Diário
de Natal” noticiava a movimentação das tropas
que se rebelaram no sul do país para deporem o presidente
João Goulart e dava conta da situação local,
divulgando as seguintes manchetes e notícias:
“IV EXÉRCITO DEFINIU-SE PELA DEMOCRACIA.
O Comandante do IV Exército, General Justino Alves Bastos,
também tomou posição a favor do movimento
revolucionário iniciado ontem em Minas, a favor da democracia
e pelo respeito da constituição.
Consta, a propósito, que dessa decisão, o general
Justino Alves deu conta ao governador do Rio Grande do Norte,
Sr. Aluízio Alves.
Idêntica comunicação foi feita ao Quartel-General
da guarnição federal, em Natal. Toda a tropa em
Natal, está coesa e firme, obedecendo às ordens
do general Justino Alves.
Desde a noite de ontem, estão em rigorosa prontidão
as tropas do exército, marinha e aeronáutica aquarteladas
em nossa capital...”
“EXÉRCITO OCUPOU SINDICATOS E REDE FERROVIÁRIA
FEDERAL. NÃO PERMITIRÁ GREVES.”
Na mesma página estavam publicadas a nota oficial do prefeito
Djalma Maranhão e uma nota conjunta do Contra-Almirante Mário
Cavalcanti de Albuquerque, Comandante Naval de Natal e do Coronel
Alberto Carlos de Mendonça Lima, Comandante da Guarnição
Militar de Natal.
A nota do prefeito, considerando a prefeitura o “quartel-general
da legalidade e da resistência” foi publicada nos seguintes
termos:
“NOTA OFICIAL DO GOVERNO MUNICIPAL DO NATAL.
O governo municipal do Natal, na hora grave e decisiva que o
Brasil atravessa, torna público:
- A posição do prefeito Djalma Maranhão
é de defesa da legalidade democrática. A mesma
posição assumida quando da posse do presidente
João Goulart, transmitida através de pronunciamento
oficial e de editorial da “Folha da Tarde”, jornal
de que é diretor.
- O prefeito Djalma Maranhão junta a sua voz à
de todas as forças democráticas e populares do
país, na denúncia aos governos de Minas Gerais,
São Paulo, Guanabara e Rio Grande do Sul que, ontem pela
madrugada, colocaram-se fora da lei, levados pelo desespero
do reacionarismo contra as reformas de base, servindo de instrumentos
e oferecendo suas falsas lideranças às forças
do antipovo e da antinação.
- O prefeito Djalma Maranhão, ao lado das forças
populares e democráticas, conclama o povo para que se
mantenha em permanente estado de alerta, nos seus sindicatos,
diretórios, órgãos de classe, sociedades
de bairros, ruas e praças públicas, na defesa
intransigente da legalidade, que possibilitará a libertação
do Povo e do País do imperialismo e do latifúndio,
a concretização das reformas de base e a construção
do amanhã mais justo e mais feliz do Brasil.
- o prefeito Djalma Maranhão, eleito pela vontade popular,
cumpre a sua obrigação de dizer que a Prefeitura
é a casa do povo onde se instala, nesta hora, o QG da
luta da legalidade e da resistência.
- Finalmente, o prefeito Djalma Maranhão reafirma o seu
pronunciamento de 18 de setembro de 1961 que serviu de palavra
de ordem para o Rio Grande do Norte: Esta é a hora da
opção – a legalidade é Jango!
Prefeitura do Natal, 1°-4-1964.
DJALMA MARANHÃO, Prefeito.
A nota dos comandantes militares denunciava uma preparação
de greve geral por parte do prefeito e ameaçava com o “emprego
da força e da violência em defesa da ordem pública,
do atentado à pessoa e à propriedade privada.”
“AO POVO DE NATAL.
Na qualidade de comandantes das guarnições Naval
e Militar desta capital e deste Estado, e em observância
a instruções dos comandos superiores sediados
em Recife-PE, sentimo-nos no dever de nos dirigir à população
ordeira desta Cidade, com a finalidade principal de tranquilizar
a família natalense, face aos acontecimentos que se desenrolam
no sul do País.
Tendo em vista a ameaça do Senhor Prefeito desta capital,
transmitida diretamente ao comandante da Guarnição
Militar, de desencadear a greve geral em todo o Estado e, em
particular, nesta capital, medidas preventivas e repressivas
estão sendo adotadas pelas autoridades militares das
Forças Armadas em Natal, em íntima ligação
e entendimentos com o Senhor Governador do Estado, no sentido
de impedir a todo custo, mesmo com o emprego violento da força,
caso necessário, a perturbação da ordem
pública nesta capital e o atentado à pessoa e
à propriedade privada.
Visam também estas medidas a, tanto quanto possível,
impedir ou pelo menos minorar, os efeitos da greve a ser desencadeada,
sempre tão prejudiciais à população
civil, à família local.
Em nome das Forças Armadas sediadas em Natal, dirigimos
veemente apelo a todos os moradores da cidade no sentido de
que cooperem nessa missão, mantendo-se em calma e em
ordem, evitando as aglomerações, permanecendo
tanto quanto possível em suas residências, confiantes
na ação preventiva e, se necessário repressiva
dos soldados, marinheiros e aviadores, que têm a honra
e o prazer de conviver nesta cidade com tão hospitaleira
e ordeira população.
Advertimos ao povo em geral, mais em particular às classes
operárias e aos estudantes, que ficam terminantemente
proibidas, por motivos óbvios, proibição
que será assegurada pela força se necessário,
as aglomerações em logradouros públicos,
as passeatas sob qualquer pretexto, os comícios, sempre
visando à manutenção da ordem Pública.
Natal, RN, 1° de abril de 1964.
Contra Almirante MÁRIO CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE Cmt
Naval de Natal
ALBERTO
CARLOS DE MENDONÇA LIMA – CORONEL Cmt da Guarnição
Militar de Natal
As duas notas apresentavam o confronto desigual entre os militares
e o prefeito Djalma Maranhão que, numa atitude muito audaciosa
para aquele momento, usou o direito de fazer publicar sua definição
política em defesa das instituições democráticas,
no momento exato em que era implantada a ditadura e retirados os
direitos civis de todos os brasileiros, principalmente dos discordantes
do golpe militar.
Com a oficialização da prefeitura como “quartel-general
da legalidade”, ironicamente composto por alguns auxiliares,
duas ou três lideranças estudantis e sindicais munidos
de um rádio portátil a pilha, Djalma provavelmente
antecipou a intervenção na prefeitura, prisão
e deposição do cargo para o qual fora eleito.
Diante do noticiário da imprensa e do movimento dos militares
pela cidade, o nosso espanto era enorme e enorme era o medo de estar
assistindo ao fim da democracia e da paz nacional. Não chegamos
a perceber, no entanto, a extensão do perigo que cercava
os assessores do prefeito Djalma Maranhão.
Naquela manhã de 1° de abril, a Prefeitura de Natal encontrava-se
quase deserta. A divulgação do “quartel-general
da legalidade” não atraiu ninguém além
do comum, na rotina diária da movimentação
política do prefeito, que atendia normalmente, em seu gabinete
de trabalho, as audiências solicitadas. Ali não se
falava em preparação de greve nem havia sinal de organização
para qualquer resistência.
O ambiente na antessala do gabinete do prefeito era de quase normalidade.
Comentava-se a crise nos limites da preocupação comum
a qualquer cidadão.
Apresentei-me ao prefeito mais ou menos às nove horas. Na
ocasião, despedia-se do professor Luiz Maranhão Filho.
Estavam sérios e compreensivelmente emocionados. Luiz, que
já fora vítima de outras prisões em anteriores
perseguições aos militares comunistas, acabava de
informar que se recolheria ao sítio de um amigo enquanto
durasse a crise política e a movimentação de
tropas pelas ruas.
Jipes e caminhões do Exército já eram vistos
transportando militares armados com metralhadoras e fuzis para os
pontos da cidade considerados por eles como estratégicos.
Era o início da exagerada exibição de força
e de poder de uma ditadura que durou vinte anos.
Ali no gabinete do prefeito aconteceu, provavelmente, a última
conversa pessoal dos dois irmãos em liberdade. Luiz voltou
ainda à Prefeitura, mas não ficaram a sós.
Encontrar-se-iam, depois, a bordo do avião que os transportou
para o confinamento de Fernando de Noronha.
Quando Luiz se retirou, Djalma permaneceu em silêncio por
algum tempo. Tentei conversar sobre a crise, mas ele se mantinha
reticente, como quem escolhe palavras. Comentou, apenas, que a situação
nacional era grave e imprevisível. Permaneceu em silêncio
e compreendi que precisava de companhia, mas dispensava o diálogo.
Passamos alguns minutos recolhidos aos próprios pensamentos
quando um funcionário anunciou outras pessoas que chegavam
e solicitavam ser recebidas.
Djalma recomendou-me que permanecesse na prefeitura; havia um telegrama
para ser transmitido ele precisava que eu assumisse a responsabilidade
de conseguir na sede do então Departamento de Correios e
Telégrafos.
Foram poucas as pessoas que chegaram, apenas assessores, estudantes
e poucos políticos que, ansiosos por notícias da crise,
buscavam esperanças e apoio. Para todos, Djalma representava,
naquele momento, a única liderança democrática
do Estado.
Ninguém conseguia compreender que estavam todos irremediavelmente
sós.
O expediente da prefeitura continuava em todos os setores de trabalho,
apesar da inquietação visível em cada funcionário.
Nas ocasiões em que a equipe se reunia, a comunicação
era alegre e afetuosa. Naquela manhã ainda pudemos sentir
o prazer de estar juntos com alguns companheiros, sem percebermos
que seria pela última vez.
Djalma recebia a todos com a expressão grave natural para
aquele momento, mas em nenhum instante deixou de demonstrar a firmeza
de seus princípios e convicções. Estavam naturalmente
preocupado e tenso, mas ainda transmitia a confiança e a
coragem inerentes à sua personalidade. Certamente pressentia
os riscos que o cercavam; sem democracia não haveria futuro
político. Manteve, até quanto possível, sua
atitude de resistência.
Passamos aquele primeiro dia de abril entre os locais de trabalho
e o gabinete do prefeito. A vida da cidade continuava dentro da
possível normalidade, com a população mal informada
e, aparentemente, indiferente.
Invasão
da Prefeitura
Pelas
21 horas ainda nos encontrávamos no gabinete do prefeito.
Era um pequeno grupo em torno da mesa de Djalma, ouvindo um rádio
que transmitia raras notícias e muitos dobrados militares.
Conversava-se sobre a crise, assuntos diversos e, principalmente,
sobre a ocupação militar nas repartições
federais.
Para conseguir passar na sede do correio da Ribeira mais uma mensagem
de Djalma ao presidente João Goulart, tive de enfrentar uma
fila controlada por soldados do Exército. O telegrafista
que recebeu a mensagem foi, em seguida, denunciado como cúmplice
daquele ato inútil, uma vez que o telegrama foi apreendido
e não chegou a ser transmitido.
Djalma tentou uma última comunicação, ignorando
o desfecho dos acontecimentos, pois, àquela hora, o presidente
João Goulart já estava deposto.
Pela janela do Salão Nobre da Prefeitura víamos o
Palácio do Governo, a pouca distância, com todas as
janelas abertas e iluminadas. O governador, naquela noite, rompia
a neutralidade em que se encontrava e divulgava sua adesão
ao golpe militar. Uma mensagem do governador Magalhães Pinto,
de Minas Gerais, principal articulador civil do golpe militar, ajudou
a definir a posição política do governador
Aluízio Alves.
No gabinete do prefeito, isolados de qualquer informação
oficial, continuávamos juntos, mas nada restava a fazer ou
dizer.
Surpresos e assustados, ouvimos os passos fortes e apressados de
pessoas subindo as escadas. Logo um oficial do Exército chefiando
uma patrulha composta por muitos soldados empurrava, com um chute,
a porta lateral do gabinete. Apontando uma metralhadora em nossa
direção, o oficial gritava, muito nervoso: “Acabou
a baderna. Pra fora, seus comunistas!”
Qualquer profissional das armas teme o confronto com a metralhadora,
nós éramos, apenas pessoas comuns, sensíveis
e sem experiência com a violência.
Perplexos e paralisados, ficamos em silêncio. Djalma ensaiou
um passo em direção ao militar, talvez tentasse um
diálogo, mas recuou. O líder sindical Evlim Medeiros
foi reconhecido pelo nervoso oficial, preso e levado para as celas
do 16° RI. Foi ele o primeiro preso político da ditadura
militar no Rio Grande do Norte.
Sem alternativas, fomos saindo, sem palavras, estonteados, cada
um com o seu espanto e o seu medo. Tivemos uma longa noite de insônia.
2
de Abril: Prisão do Prefeito
Iniciamos
o dia seguinte tentando conviver com a difícil realidade
da ditadura militar. “O Diário de Natal” divulgava,
em primeira página, as notícias da consumação
do golpe com as seguintes manchetes e notícias:
“CONGRESSO DECLAROU CARGO DE PRESIDENTE VAGO
– MAZZILI INVESTIDO HOJE: PRESIDÊNCIA.
O Senhor Ranieri Mazzili foi investido, na madrugada de hoje,
nas funções de Presidente da República...”
“JANGO DEIXOU O PAÍS COM A FAMÍLIA.
As informações conhecidas agora indicam que o
Sr. João Goulart, destituído do poder pelas forças
armadas, pela madrugada, via aérea deixou o país,
acompanhado dos seus familiares.”
“ARRAES TEVE IMPEACHMENT DECRETADO PELA ASSEMBLEIA
Ontem, pelas dez horas da manhã, as autoridades militares
resolveram o afastamento do governador Miguel Arraes, do cargo,
por considerá-lo sem condições de continuar
à frente do executivo pernambucano.
“ARRAES.
Foi deposto pelo Exército e, logo depois, demitido.
“EXÉRCITO DOMINA COMPLETAMENTE A SITUAÇÃO
NESTA CAPITAL QUE É DE COMPLETA CALMA.”
Em outra página o mesmo jornal divulgava a invasão
da Prefeitura, ocorrida na noite anterior, com a seguinte manchete
e notícia:
“QUARTEL DA LEGALIDADE FECHADO PELO EXÉRCITO.
Cerca de 21 horas de ontem, uma patrulha do Exército
ocupou as dependências da Prefeitura, dissolvendo a reunião
política que ali se realizava. Como se sabe, o prefeito
Djalma Maranhão, desde as primeiras horas de ontem anunciou
a instalação do quartel-general da legalidade.
“A notícia concluía informando que:
“A Prefeitura poderia voltar às atividades administrativas
normais, não sendo permitidas, no entanto, qualquer reunião
de caráter político.”
“OCUPADO O DCE PELAS TROPAS DO EXÉRCITO”
No mesmo jornal estava publicada a Nota Oficial do Governador
do Estado, com a sua definição pelo novo regime.
“GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE
O governador do Rio Grande do Norte, agora informado das razões
e objetivos do movimento ontem deflagrado sob a liderança
do governador Magalhães Pinto, quer manifestar o seu
apoio aos ideais dessa posição que visa a autêntica
legalidade democrática realmente ameaçada por
atitudes fatos que não eram ainda do conhecimento público.
Lamenta que o presidente João Goulart, a quem reconhece
e sempre há de proclamar inestimáveis serviços
ao Rio Grande do Norte, no plano do seu desenvolvimento econômico-social,
além de uma luta áspera por modificar estruturas
que precisam ser urgente e profundamente reformadas para atender
aos anseios do progresso nacional, não tenha pedido impedir
a radicalização das posições ideológicas
e políticas, conduzindo o país ao impasse intolerável
que só pode ser solucionado com o respeito às
tradições das forças armadas, o restabelecimento
da tranquilidade e da paz, cujos anseios estão sendo
interpretadas pela firme e corajosa atitude do governador de
Minas.
O governador do Estado pede ao povo que fique tranquilo e confie
no esforço que fará pra resguardar os melhores
interesses do Rio Grande do Norte e da democracia.
Aluízio Alves
A nota demonstrava a indecisão do governador enquanto aguardava
a definição da crise no sul do país. Após
decidir-se, e assumindo a liderança civil da ditadura no
Estado, Aluízio Alves afastou, do primeiro plano dos acontecimentos,
o udenista e participante do movimento militar, Senador Dinarte
Mariz, seu adversário político.
Apesar da violenta invasão da Prefeitura e da confirmação
da vitória das forças militares e prisão do
governador de Pernambuco, Sr. Miguel Arraes, o prefeito chegou logo
cedo, na manhã do dia 2, para o expediente de trabalho que
seria o último de seu mandato. Nós, da equipe, comparecemos
normalmente aos locais de trabalho. Esperávamos ainda continuar
aquela administração que tivera início com
a eleição, por esmagadora maioria eleitoral, de um
homem do povo que executava um programa de alfabetização
e democratização da cultura em todos os bairros da
cidade, inspirado no nacionalismo que defendia.
Nosso expediente foi, no entanto, encerrado às 17 horas,
com a prisão do prefeito e vice. Diante do quadro político,
Djalma Maranhão devia sentir que a sua prisão poderia
ser efetuada a qualquer momento.
Pela manhã, a Prefeitura não recebeu fluxo normal
de pessoas à procura do prefeito. Apenas os funcionários
movimentavam-se pelos diversos setores de trabalho.
À tarde as salas estavam vazias, poucos servidores voltaram
ao expediente e o prefeito permanecia sozinho em seu gabinete. Pelas
15 horas, os auxiliares Flávio Cláudio Siminéa
e Carlos Lima apresentaram-se ao prefeito e tentaram permanecer
a seu lado, sob qualquer pretexto. Djalma seguramente não
queria companhia; dispensou-os com atribuições para
executarem fora da Prefeitura.
Carlos Lima foi o último a se retirar; tentou ficar e conversar
sobre os noticiários dos jornais mas Djalma ordenou que saísse.
Quis permanecer só e sozinho estava quando, minutos depois,
os militares vieram prendê-lo.
Não consegui testemunhas do momento em que foi efetuada a
prisão, apenas dois funcionários viram o prefeito
descer a escada de saída para a rua, escoltado por oficiais
do Exército.
Em baixo, na rua, ficou o carro de uso oficial do prefeito, com
os quatro pneus esvaziados pelos militares.
O prefeito foi conduzido ao Quartel-General do Exército,
àquele tempo localizado na praça André de Albuquerque,
e levado à presença do coronel Mendonça Lima.
O encontro dos dois foi divulgado por um documento escrito posteriormente
pelo próprio Djalma Maranhão. O coronel lhe propôs
que renunciasse ao cargo de prefeito e, troca, teria assegurada
a liberdade. O prefeito recusou em nome da honra e do povo que o
elegeu; foi, então, levado preso, incomunicável, para
uma cela do quartel do 16° RI.
O coronel Mendonça Lima a pedido do prefeito, deu permissão
para que passasse antes em sua residência. Na mesma tarde
foi igualmente, preso o vice-prefeito Luiz Gonzaga dos Santos sem,
no entanto, ser-lhe oferecida a possibilidade da renúncia.
A prisão do prefeito e vice, em pleno expediente de trabalho,
foi a consumação da violência contra os direitos
humanos e contra a democracia, executada pela ditadura militar no
Rio Grande do Norte.
Informada sobre as prisões, dirigi-me à sede da Prefeitura,
num último gesto de busca dos companheiros e dos nossos projetos
de luta administrativa e social.
A rua Ulisses Caldas encontrava-se quase deserta e calma naquele
fim de tarde. Nada indicava que fora palco de um acontecimento grave
que feria o direito à liberdade e à democracia.
No salão nobre da Prefeitura, um funcionário fechava
portas e janelas. O gabinete do prefeito encontrava-se aberto, vazio,
em quase penumbra.
A partir daquela tarde, a caça aos considerados subversivos
foi desencadeada com o aparato militar semelhante aos vistos nos
filmes que mostram a perseguição nazista.
Para efetuar a prisão de uma pessoa indefesa e amedrontada,
isolavam todo um quarteirão, invadiam as residências
armados com fuzis e metralhadoras, revistavam todas as dependências,
especialmente as bibliotecas, onde apreendiam os livros de acordo
com o título. O “subversivo” era, então,
detido e levado sem explicações à família,
que teria de sair procurando localiza-lo nos quartéis.
O
Impeachment do Prefeito
No
dia 3 de abril, “O Diário de Natal” divulgou
as prisões efetuadas, noticiando a decretação
do impeachment pela Câmara Municipal. Dizia a notícia:
“Às 17 horas, patrulhas do Exército
comandadas por oficiais, simultaneamente prenderam nos respectivos
gabinetes, na Prefeitura e na Câmara Municipal o prefeito
Djalma Maranhão e o vice-prefeito Luiz Gonzaga dos Santos
conduzidos, inicialmente, para o QG da Guarnição,
Praça André de Albuquerque. Foram recolhidos ao
16° RI, onde permanecem. Logo depois, o comando militar
informava Câmara que, sendo o prefeito e vice-prefeito
comunistas, estavam impedidos de exercer os seus mandatos.
Diante dos fatos, a Mesa da Câmara solicitou do comando
militar que a comunicação fosse feita por ofício,
permanecendo o legislativo reunido. Já por volta das
22 horas, chegou à Câmara o ofício do coronel
Mendonça Lima, nos termos da comunicação
verbal anterior. Em seguida, ainda secretamente, decidiu a Câmara
aceitar a denúncia do comando militar, iniciando o processo
de impeachment ao mesmo tempo em que, conforme determinação
do Exército, considerava vagos os dois cargos.”
O
mesmo jornal publicou o texto da declaração do impeachment:
“TEXTO
DA DECLARAÇÃO DOS 2 IMPEACHMENT
É o seguinte o inteiro teor da declaração
firmada pelos 21 vereadores da Câmara Municipal de Natal,
em que declaram o impeachment do prefeito Djalma Maranhão
e vice-prefeito Luiz Gonzaga dos Santos; “Declaramos que
votamos o impeachment do prefeito e vice-prefeito por estarmos
certos de que estamos defendendo a Democracia, que se define
na liberdade de pensamento individual.
Tomamos tal atitude por não estarmos coagidos por ninguém
e reconhecermos a plena vigência da Democracia.”
O texto da declaração, após vários
debates, foi proposto pelo vereador José Godeiro, sendo
aceito pela unanimidade dos edis.”
O então presidente da Câmara Municipal, vereador Raimundo
Elpídio, assumiu, interinamente, o cargo de prefeito.
Assim, por uma simples ordem militar, foram cassados os mandatos
do primeiro prefeito e vice – eleitos pelo voto popular na
cidade de Natal.
Para nós, restou a sensação de que a vida fora
interrompida para ser retomada entre ameaças, perdas e insegurança.
A partir daquela tarde, amigos e companheiros sumiam e apareciam
nas prisões. Alguns conseguiam fugir, mas apenas retardavam
o momento de serem levados presos para os quartéis.
A cidade dividia-se entre vitoriosos e derrotados, entre os democratas
silenciosos e os entusiastas do novo regime que eram massificados
pelas promessas de redenção política e econômica
para o país.
Câmara
elege prefeito
No
dia 6 de abril, o “Diário de Natal” noticiou
a eleição, pela Câmara Municipal, do novo prefeito
de Natal, almirante Tertius Cesar Pires de Lima Rebelo e do vice-prefeito,
vereador Raimundo Elpídio, que já ocupava a Prefeitura.
Salientava que o ato da eleição dos vinte e quatro
vereadores durou mais de sete minutos. Entre outras notícias,
comentou a posse nos seguintes termos:
“A posse dos eleitos verificou-se às onze horas
quarenta e cinco minutos, no plenário da Câmara
Municipal de Natal. O prefeito Tertius Rebelo assumirá
hoje o exército do cargo, em solenidade no Palácio
Felipe Camarão, prevista para as 17 horas.”
O prefeito, ao assumir o cargo, iniciou o expurgo dos auxiliares
do seu antecessor e deu início, através de comissões
de investigação, a uma devassa sem precedentes na
administração municipal. Duas comissões foram
imediatamente criadas; uma delas para levantar a situação
financeira da Prefeitura, composta por contadores e assim divulgada
pelo “Diário de Natal”:
“Para a composição do grupo, o edil
tem mantido contatos com repartições federais
e estaduais, pois é seu pensamento que a comissão
seja integrada por elementos estranhos aos quadros da municipalidade.
Assim, a comissão deverá contar com a colaboração
de um oficial contador da Aeronáutica a ser designado
hoje pelo comando da Base Aérea, do contador Severino
Lopes de Oliveira, do Tribunal de Contas, um contador da Contadoria
Geral do Estado e um outro, também designado da Delegacia
Fiscal.”
A outra comissão foi designada depois para:
“...apurar no âmbito municipal, atividades antidemocráticas
antinacionais e contra a probidade administrativa. Foi escolhido
para a presidência da comissão, o bacharel Rodolfo
Pereira de Araújo, sendo membros da mesma o capitão
Gerardo Parente, do Regimento de Obuses, o capitão-tenente
Humberto Romero, da Base Naval e o coronel Severino Bezerra,
da Polícia Militar. A comissão iniciará
os seus trabalhos ainda esta semana, no gabinete do prefeito,
com prazo de oito para receber representações
dos secretários, diretores de departamentos e órgãos.”
As ditas “representações” eram as denúncias
que faziam contra os servidores que se tornavam suspeitos de atividades
consideradas subversivas e desonestas.
Liamos as notícias com preocupação, embora
fôssemos conscientes da honestidade e lisura dos atos administrativos
do prefeito Djalma Maranhão.
A comissão de contadores trabalhou exaustivamente durante
alguns meses, mas não conseguiu encontrar as improbidades
administrativas esperadas, frustrando, assim, a expectativa dos
acusadores que ficavam sem as provas desejadas. Nenhuma notícia,
parecer ou relatório dessa comissão apresentou qualquer
indício de irregularidades. Tempos depois, o almirante Tertius
Rebelo, num encontro casual com o deputado Roberto Brandão
Furtado, que fora secretário de finanças na administração
Djalma Maranhão, parabenizou-o pela correção
que se encontrou nas finanças da Prefeitura quando assumiu,
como prefeito, em abril de 1964.
Interrogatório
Na
tarde do dia 8, encontrava-me na residência de uma irmã,
nas imediações do 16° RI, quando chegou, muito
assustada, a minha filha, acompanhada por militares do Exército,
armados com metralhadoras para me levarem. Não deram explicações
e, sem palavras, conduziram-me a um jipe e mandaram-me sentar no
banco traseiro, entre dois soldados que não conseguiam acomodar
bem as suas armas. Sentados na frente estavam o motorista e um oficial.
Aquela cena de tragicomédia já se tornara comum pela
cidade mas fiquei muito assustada.
Na saída da casa, crianças que brincavam na área
com meu sobrinho Marcos Frederico perguntavam-lhe, surpresas e amedrontadas:
“Sua tia é comunista?” As perguntas ficaram sem
resposta, mas no meu sobrinho ficou o medo, a dúvida e o
espanto.
Em 1964 muitas crianças foram marcadas pelas imagens de terror
do anticomunismo e de pessoas queridas levadas sob a mira das metralhadoras.
Até chegarmos ao 16° RI, que não ficava distante,
minha emoção era indefinida. Espanto, medo, raiva
e tristeza misturavam-se. Tentei com dificuldade, ficar calma e
assumir o papel que me cabia naquela trapalhada que ainda não
podia entender. Não conseguia mesmo compreender que esperassem
de mim um ato de terrorismo ou de preparação de guerrilha
e que pertencesse ao Partido Comunista, como eram acusados, naquele
momento, os que trabalhavam com Djalma Maranhão.
Chegando ao quartel, conduziram-me ao primeiro andar, para uma sala
de onde vinha saindo uma cantora de festas populares promovidas
pela Prefeitura. A moça estava chorando muito. Realmente,
era impossível compreender quais os critérios adotados
para aquele aparato militar de investigações. A prisão
de Luiza de Paula, uma jovem de vida simples, sem vinculações
políticas nem participações na administração
municipal, pareceu-me incrível e me senti participante de
uma farsa grosseiramente surrealista.
Entrei na sala do interrogatório levada pelos mesmos soldados
armados que me prenderam. Entregaram-me a dois oficiais. O mais
graduado continuou sentado atrás de uma mesa; aparentava
calma. O outro, porém, estava irritado e inquieto. O capitão
indicou-me uma cadeira para sentar. O tenente pediu minha bolsa
e, num gesto brusco, esvaziou-a sobre a mesa. Iniciava-se o primeiro
dos seis interrogatórios que respondi em diversas comissões
de inquérito.
Consciente da gravidade daquele momento, procurei manter a calma
e lutar para continuar livre. A situação, no entanto,
era excepcional e imprevisível. As condições
de defesa de um suspeito eram mínimas diante da força
arbitrária dos Atos Institucionais pelos quais éramos
julgados. O tenente queria descobrir onde estavam escondidos os
meus documentos subversivos. Momentos antes, quando me procuraram,
invadiram minha residência, armados com fuzis e metralhadoras,
revistaram todos os cômodos da casa e, no meu quarto, mexeram
até nas caixas de absorventes íntimos. Levaram apenas
alguns livros, entre eles “Guerra e Paz”, de Tolstoi,
“O Diabo”, de Papini, “O Vermelho e o Negro”,
de Stendhal e “Nosso Homem em Havana”, de Graham Greene.
Insistia que eu fazia parte de uma organização terrorista
que preparava uma revolução armada para implantar
o comunismo no país.
As coisas se passavam como num teatro. Parecia que todos representavam.
Do ato de terror passamos à tragicomédia quando o
tenente, nervoso, supôs encontrar em meus pertences a pista
que procuravam para me incriminar. Leu um soneto do poeta Ledo Ivo,
que se encontrava em minha bolsa, intitulado “Soneto de Abril”
e considerou que os versos “Agora que é abril e o mar
se ausenta / secando-se em si mesmo, como um pranto” eram
uma senha preparada pelos guerrilheiros da esquerda para, naquele
mês, desencadearam uma luta armada. Foi muito difícil
argumentar e meu espanto era enorme. Sequer podia rir da loucura
do tenente. Além do mais, ele exigia respostas imediatas,
pisava duro ao caminhar em redor da mesa, falava sem entender sobre
os livros das bibliotecas populares, sobre a campanha “Dé
Pé no Chão Também se Aprende a Ler” e
voltava ao “Soneto de Abril”.
Eu vivi a desagradável coincidência de tanto naquela
sala.
Já estava cansada do interrogatório quando o tenente,
num entra-e-sai da sala, informou, irritou, que minha filha encontrava-se,
ao lado da porta, com uma crise de choro. Conseguiu, com isso, deixar-me
no limite do nervosismo e preocupação. Sem mais controlar
a raiva, esqueci o medo e apelei ao capitão para que afastasse
o tenente e assumisse, ele próprio, o interrogatório.
O capitão Moura Costa, que se mantinha calado, dispensou-se
e encerrou a sessão.
Eram quase 18 horas quando saí da sala e encontrei Dilma
chorando. Meu irmão León esperava no pátio
do quartel. Senti vergonha e tristeza diante dele e da nossa humilhação.
Por uma suspeita absolutamente infundada e sem sentido, invadiam
as residências, prendiam pessoas e expunham as famílias
ao vexame das investigações na vida pessoal e profissional.
Perdia-se a privacidade, o direito de defesa e a estabilidade nos
empregos.
A vida de todos os perseguidos foi desarticulada tão de repente
que precisávamos de algum tempo para voltar ao mínimo
de normalidade. Nunca se sabia quantas pessoas inocentes estariam,
a qualquer hora, sendo levadas presas e torturadas.
Comemorações
pelo golpe
Enquanto
acabavam com a democracia e os perseguidos da ditadura eram encarcerados,
organiza-se na cidade uma espetacular manifestação
para festejar o golpe militar e homenagear as forças armadas.
Celebravam-se atos religiosos na catedral metropolitana e passeatas
eram patrocinadas pelos governos estadual e municipal. Senhoras
da elite social da cidade, muitas delas frequentadoras dos eventos
sociais realizados na Prefeitura antes do golpe, organizavam as
festividades, com febril entusiasmo. Desfilaram a pé pelas
ruas, juntas ao povo, maquiadas e penteadas, oferecendo um espetáculo
de estranho e cômico contraste.
Os jornais da cidade “Diário de Natal” e “Tribuna
do Norte” gastaram muito espaço divulgando notícias
dos eventos. O “Diário” do dia 8 de abril noticiava,
em manchete:
“CHUVA NÃO PREJUDICOU TRIBUTO DO POVO ÀS
FORÇAS ARMADAS, NA MARCHA DA FAMÍLIA COM DEUS.
Foi talvez a maior concentração cívica
e popular que a nossa cidade já assistiu, a que todas
as classes sociais realizavam em homenagem às Forças
Armadas vitoriosas no movimento de redemocratização
do país...”
A notícia ocupava uma página inteira, contornando
duas grandes fotografias do monumental comício que se realizou
em frente ao Quartel-General do Exército. O povo massificado
atendeu, entusiasmado, a convocação do governo, cantou
o Hino Nacional, aplaudiu e deslumbrou-se com as promessas de paz,
progresso e salvação da pátria. Foguetões
espocavam naquela tarde chuvosa. Pude observar a alegria das pessoas
que voltavam da concentração, cansadas e suadas, mas
com o Brasil “salvo” de todos os males.
Nas demais capitais do país, as comemorações
se sucediam com a mesma vibração e ardor patriótico.
Novas
prisões
As
prisões efetuadas pelo Exército foram marcadas pelo
aparato militar exagerado, com exibição ostensiva
de armas e encenação de manobras, como isolamento
de quarteirões, cerco e invasão de residências.
Amedrontavam as famílias e levavam o perseguido sem explicações
sobre o seu destino.
Nas entrevistas com alguns companheiros, falamos sobre as nossas
experiências, procurei apenas os mais íntimos respeitando-lhes
as emoções. Assim é que as informações
limitam-se às lembranças de alguns momentos vividos
nas prisões e nas tentativas de fuga.
EVLIM MEDEIROS
(Advogado e ex-Presidente do Comando Estadual dos Trabalhadores
do Rio Grande do Norte)
O advogado Evlim Medeiros era membro do Partido Comunista Brasileiro,
dirigente do Comando Estadual dos Trabalhadores do Rio Grande do
Norte e foi o primeiro a ser preso no Estado pela ditadura militar
de 1964. Sua prisão foi efetuada na noite de 1° de abril,
por ocasião da invasão pelo Exército na Prefeitura
de Natal.
No relatório do delegado Carlos Veras, foi acusado de pertencer
ao Partido Comunista,
“contribuir para o partido com a importância
de cinquenta cruzeiros mensais e haver disputado a eleição
para deputado estadual sob a legenda do Partido Republicano,
apoiado não só pelo Partido como por várias
organizações sindicais.”
Após vários meses de prisão nos cárceres
do 16° RI, conseguiu habeas-corpus, concedido pelo Supremo Tribunal
Federal, requerido pelo deputado federal Joaquim Inácio de
Carvalho Neto.
HÉLIO XAVIER DE VASCONCELOS
(Advogado, Professor de Direito da UFRN, Presidente do
Conselho Regional da Ordem do Advogados do Brasil)
O advogado e ex-líder estudantil Hélio Xavier de Vasconcelos
encontrava-se em vésperas de mudança para o Rio de
Janeiro e era hóspede de uma família na rua Gonçalves
Ledo. No momento da prisão, ouvia um noticiário político
transmitido através de um rádio, na voz do jornalista
Adalberto Rodrigues, que ameaçava, entusiasmado: “Falta
ainda muita gente para ser presa ! Tem muita gente solta !”
(sic) Infelizmente, foi semelhante a este o comportamento de muitas
pessoas no Rio Grande do Norte.
Hélio foi avisado pela empregada da casa que um oficial do
Exército queria lhe falar e que a residência encontrava-se
cercada por soldados. Estando no primeiro andar, foi até
a janela e viu o quarteirão até a esquina cercado
por soldados armados com fuzis e metralhadoras, curiosas nas calçadas
e um jipe à sua espera. Apesar de todo o aparato militar,
o tenente Ronald foi excepcionalmente gentil ao prendê-lo
e o fez como um convite para depor aconselhando, no entanto, a levar
a escova de dentes...
O tenente procurou pelos livros que possuía. Estavam guardados
na residência do Sr. José Bessa, pai do estudante Danilo
Bessa, que era, igualmente, procurado. Hélio respondeu que
os livros estavam em casa de um tio, já falecido. Deslocaram-se
à casa do tio que, em vida, fora farmacêutico e, na
sua biblioteca, encontraram apenas livros sobre medicina, farmácia
e uns poucos de literatura, entre os quais, um de capa vermelha
intitulado “Vingança Não”, que foi levado.
Os militares suspeitavam dos livros de capa vermelha...
Hélio Vasconcelos consegue descrever a prisão com
ironia bem-humorada. Conta que, chegando ao quartel do Regimento
de Obuses (RO) e entrando em uma cela especial localizada dentro
do alojamento transformado em prisão, encontrou já
prisioneiros. Luiz Gonzaga dos Santos, Luiz Maranhão Filho,
o funcionário “Bual”, da Rede Ferroviária,
e José Macedo, ex-tesoureiro do então Departamento
de Correios e Telégrafos, que já fora preso em 1935,
como participante da intentona comunista. Hélio, ainda atordoado
pelo que lhe acontecia, perguntou: “José Macedo, você,
que foi prisioneiro político, diga-me como foi o tratamento?”
Resposta: Indescritível! Diante da enigmáticas respostas.
Hélio deitou-se na cama, cobriu-se com um lençol e
desistiu de procurar saber o que o esperava.
O tratamento recebido pelos presos do Regimento de Obuses era, no
geral, menos repressivo que o empregado no 16° Regimento de
Infantaria. Lá, a presença ostensiva do Capitão
Ênio Lacerda deixava sob tensão permanente os ocupantes
das prisões. Certa vez, Hélio teve a surpresa de ver,
entre os livros que chegavam apreendidos e que se encontravam no
corredor de entrada de sua cela, um que ele mesmo havia oferecido
a Omar Pimenta, com dedicatória exposta, em página
virada, onde se lia: “Para o professor Omar Pimenta, para
que faça da cidade de Natal o mundo do socialismo.”
O livro era “O Mundo do Socialismo”, de Caio Prado Júnior.
No dia seguinte, chegou preso ao RO o professor Omar Pimenta. Tentaram
transformar o encontro em gozação para se distraírem
e manterem o equilíbrio emocional na comunicação
entre os presos. Hélio considera que a maior presença
no quartel era a do professor Luiz Maranhão Filho. Entre
todos era o único comunista atuante e assumido. Mantendo-se
com altivez e força moral. Luiz distraía os presos
relatando suas experiências em viagens e nos embates da vida.
Entre outras lembranças de Luiz, Hélio fala de um
momento de tensão entre os presos quando iniciaram uma discussão.
O professor aproximou-se e falou para todos, com muita calma: “Companheiros,
lembrem-se que o nosso inimigo estão lá do lado de
fora, não está aqui dentro !” Repetiu a afirmação
e os presos exaltados contiveram-se, voltaram às camas e
ficaram em silêncio.
Hélio foi terrivelmente pressionado nos depoimentos e vítima
da técnica da intriga usada pelos delegados Veras e Domingos,
que tentavam jogar os presos uns contra os outros para conseguirem
delegações e confissões, mesmo que fossem falsas.
A justificativa para a prisão era haver exercido liderança
estudantil, pertencer ao Centro de Cultura Popular do Rio Grande
do Norte e proferir palestras nos sindicatos.
O primeiro habeas-corpus concedido no Estado foi para ele,
logo no mês de agosto e requerido por orientação
de um parente militar e pertencente ao Superior Tribunal Militar.
A ordem de soltura foi, rapidamente, divulgada entre os demais presos,
causando natural euforia.
Num anoitecer de agosto, o tenente Roosevelt, assessor do capitão
Lacerda, chegou ao quartel da Polícia Militar, para onde
havia sido transferido Hélio, a fim de prestar depoimentos
com o delegado Veras, ali instalado. O tenente chamou-o e disse:
“Há uma ordem de habeas-corpus para o Sr.”
e entregou a ordem de soltura para assinar. Confiante e aliviado,
assinou o recibo e pediu para telefonar chamando um táxi.
O tenente respondeu, sorrindo: “Não precisa. O Sr.
vai andando e encontra um táxi logo ali”, e apontou
para a saída do quartel. Hélio saiu apressado, com
sua maleta de roupa e um travesseiro, luxo permitido apenas no quartel
da Polícia Militar. Caminhou até o portão de
saída do quartel, deu mais alguns passos e se deparou com
um jipe do Exército de onde saiam dois brutamontes e uma
voz que dizia: “Eu tenho uma nova ordem de prisão com
o Sr.” A voz era a do coronel João José Pinheiro
da Veiga, que demonstrava nervosismo como se fosse a vítima.
Hélio, muito surpreso, entrou no jipe e foi levado para o
quartel do RO, onde já havia passado alguns meses, antes
de ser transferido para o quartel da Polícia Militar. Ao
entrar no alojamento-prisão alvoroçou todos os presos.
Omar Pimenta, com ironia e decepção, perguntou: “Mestre,
o que é isso?” Hélio respondeu, irritadíssimo:
“É habeas-corpus, em que dá...”
A reação dos demais presos foi de tristeza e revolta
pelo não cumprimento e desrespeito à instituição
do habeas-corpus e por sentirem que lhes eram tiradas as
esperanças e perspectivas de liberdade.
Na entrevista Hélio lembrou, com emoção, os
companheiros torturados fisicamente no quartel do Regimento de Obuses:
Luiz Maranhão Filho, João Doca Filho, Geraldo Mafra
e Valter Nascimento.
Hélio continuou preso no RO até o dia 18 de fevereiro
de 1965, quando foi libertado por um novo habeas-corpus,
mais de cinco meses após a sua segunda prisão.
OMAR FERNANDES PIMENTA
(Advogado, ex-Diretor do Ensino Municipal, ex-Chefe de
Gabinete da Secretaria Municipal de Educação e Assessor
Técnico da Secretaria de Educação do Estado)
No dia 10 de abril, ainda exercendo funções na Diretoria
do Ensino Municipal, o professor Omar Fernandes Pimenta foi preso
por um comando do Exército, no próprio local de trabalho
e levado para o quartel do Regimento de Obuses. Foi ele o primeiro
técnico da equipe a ser encarcerado.
Sua prisão e a forma ostensiva como foi efetuada assustou-nos
muito. Todas as prisões deixaram marcas profundas nas famílias;
a de Omar foi, simplesmente, destruidora. Albaniza, sua esposa,
sustentou firmemente a luta em defesa do marido e dos filhos menores,
suportou humilhações e dificuldades econômicas,
resistiu até à libertação, mas sucumbiu
ao esgotamento emocional e hoje apenas sobrevive. De toda a equipe
de trabalho, Omar era o mais alegre. Descobria e evidenciava o aspecto
engraçado de nossos apuros e conseguia superar, facilmente,
as “explosões temperamentais” de Djalma, que
não admitia erros ou omissões na execução
dos trabalhos.
Na prisão, Omar conheceu a tortura e sadismo de alguns militares.
Certa noite escura, levaram-no do local onde se encontrava na prisão
para uma cela de castigo, diante do quartel, onde o largaram, sem
espaço para deitar, permanecendo de pé até
a madrugada, quando vieram buscá-lo. A escuridão era
completa; era possível ouvir o mar, mas não sabia
onde se encontrava.
Nas noites de 1964, muitas coisas aconteceram nos quartéis
de Natal que não queremos lembrar.
Omar falou do episódio pela primeira vez vinte e oito anos
depois, com a amargura e a ironia de quem conheceu a tortura e o
desprezo pela dignidade humana. Sobre os interrogatórios
Omar guarda silêncio. Recebeu habeas-corpus que, igualmente,
não foi cumprido. Libertaram-no e o prenderam, em seguida;
disse que teve liberdade para caminhar apenas dez metros, sendo
recolhido novamente por soldados armados que já se encontravam
num jipe, à sua espera. O ritual foi o mesmo vivido por Hélio
Vasconcelos. Conta que voltou à cela irritadíssimo,
repetindo para os colegas que os militares brincaram de liberdade
com ele. Por sorte sua, tiveram que libertá-lo três
dias depois, como consequência da chegada a Natal do general
Ernesto Geisel, que viajava em inspeção às
regiões militares, a fim de apurar denúncias de não
cumprimento de habeas-corpus expedidos pelo Supremo Tribunal
Federal. Omar voltou, então, para casa.
GENIBERTO DE PAIVA CAMPOS
(Médico cardiologista, ex-professor da Universidade
de Brasília)
Geniberto despertou na manhã de 1° de abril com as notícias
do agravamento da crise política nacional e ouviu perplexo,
pelo rádio, a informação de que tropas militares
já haviam se deslocado de Minas Gerais, com destino ao Rio
de Janeiro. Sofreu, então, o que considera “um impacto
emocional”.
Com apenas vinte e dois anos de idade, não possuía,
ainda a perspectiva histórica em profundidade para compreender
aquele momento da vida política brasileira. Dirigiu-se à
residência do professor Moacyr de Góes, onde encontrou,
de passagem, o prefeito Djalma Maranhão, com quem saiu de
carro, tentando analisar os acontecimentos e situar-se na nova realidade;
nos anos sessenta não existia ainda a integração
nacional através de noticiários, como ocorre hoje,
via televisão.
Na condição de líder estudantil, ajudou a organizar,
no mesmo dia, uma assembleia de estudantes universitários,
que se realizou na mesma sede do Diretório Central de Estudantes.
Nela procuravam avaliar a crise nacional. Faziam pronunciamentos
e manifestações em defesa da democracia e do presidente
João Goulart quando foram surpreendidos pela invasão
e ocupação militar do DCE, comandada pelo então
major Estevão Mosca. A ocupação foi pacífica,
embora o universitário Abelírio Rocha, desafiando
baionetas e metralhadoras, tenha subido em uma mesa para lançar
o seu protesto. Os colegas conseguiram, rapidamente, imobilizá-lo,
retiraram-no e saíram sem outros incidentes.
Com a intervenção do DCE, as lideranças estudantis
dispersaram-se e procuraram se proteger, sumindo de circulação
por algum tempo.
Além da liderança estudantil, Geniberto exercia o
cargo de Diretor do Ginásio Municipal e era integrado à
campanha “De Pé no Chão Também se Aprende
a Ler”. Após um pequeno retiro em uma fazenda, voltou
às suas atividades de aluno da Faculdade de Medicina, de
onde foi levado para a prisão do 16° Regime de Infantaria,
no dia 14 de abril.
Chegando cedo à prisão, foi submetido a longo interrogatório
que durou até a noite, quando deram-lhe uma refeição,
um colchão e uma coberta para dormir no chão de uma
cela. Na mesma noite foi, novamente, levado para outro interrogatório,
quando o submeteram a impiedosa tortura psicológica e aplicaram-lhe
a técnica nazista denominada “boite”, que consistia
em mantê-lo, por mais de duas horas, em uma pequena sala escura,
sob uma forte luz contra o rosto e intenso interrogatório.
Geniberto permaneceu nas celas dos quartéis por mais de oito
meses, suportando as humilhações e constrangimentos
impostos em 1964.
Até hoje sofre dificuldades com ambientes fortemente iluminados.
FRANCISCO FLORIPE GINANI
(Médico coloproctologista, professor da Universidade
de Brasília, Chefe de ColoProctologia da UnB. Presidente
da Sociedade Brasileira de ColoProctologia)
Aos vinte e dois anos de idade, Ginani cursava o segundo ano da
Faculdade de Medicina, era filiado à Juventude Universitária
Católica e participava da vida política estudantil,
como todos os jovens idealistas e conscientizados de sua geração.
Em 1964, exercia o cargo de chefe de gabinete da Secretaria de Educação
do Município assessorando o titular Moacyr de Góes.
Nos primeiros dias do golpe militar foi convocado, algumas vezes,
para depor com o delegado José Domingos, da Comissão
Estadual de Investigações.
Precisamente no dia 22 de abril foi levado, por auxiliares do mesmo
delegado, para depor no quartel da Polícia Militar. Encerrado
o interrogatório, o escrivão informou-o de que estava
preso. Ginani perdeu um ano de estudos, sofreu sete meses de prisão
nos quartéis da Polícia Militar e 16° Regimento
de Infantaria, foi denunciado pela Auditoria Militar, que julgou
os atos de subversão no Rio Grande do Norte, com as acusações
de haver participado de reuniões da União Nacional
de Estudantes e proferir palestras em sindicatos. Obteve habeas-corpus
no final de outubro, foi solto e novamente preso, na saída
do quartel do 16° RI, onde uma patrulha já o aguardava.
A nova prisão durou mais cinco dias.
JOÃO FAUSTINO FERREIRA NETO
(Pedagogo, Professor da UFRN, Deputado Federal)
O deputado federal João Faustino Ferreira Neto presidia,
em 1964, a União Estadual de Estudantes e lutava pelas reivindicações
da classe.
Conforme consta de alguns depoimentos e do relatório do delegado
Carlos Veras, no dia 1° de abril, convocou uma reunião
de universitários para manifestarem apoio ao presidente João
Goulart. A reunião realizou-se na sede do Diretório
Central de Estudantes e dela participaram Geniberto Campos, José
Arruda, Abelírio Rocha, Danilo Bessa, Laly Carneiro e outros,
tendo sido interrompida pela invasão das tropas do Exército,
comandadas pelo então major Estevão Mosca.
Esteve preso algum tempo no quartel da Polícia Militar, foi
denunciado pela Auditoria Militar do Recife e excluído do
processo por habeas-corpus, requerido pelo advogado pernambucano
Roque de Brito Alves.
JOSÉ ARRUDA FIALHO
(Médico cirurgião)
O médico José Arruda, universitário de apenas
22 anos de idade em 1964, foi mais um jovem a ter a vida interrompida
pela violência da ditadura militar.
Politizado e engajado no movimento estudantil desde o curso secundário,
Arruda participava das lutas e reivindicações estudantis,
reuniões e eventos culturais promovidos pelo Centro Popular
de Cultura da União Nacional de Estudantes, Centro de Cultura
Popular de Natal e congressos sobre cultura popular.
No dia 1° de abril, encontrava-se em reunião no Diretório
Central de Estudantes (DCE) no momento em que forças do Exército
ocuparam o edifício, expulsaram os estudantes e fizeram intervenção
Expulsos da sede do DCE, alguns líderes, entre eles Arruda,
Francisco Ginani, Geniberto Campos e Danilo Bessa, dirigiram-se
à Casa do Estudante para redigirem um manifesto de protesto
e em defesa da democracia, quando foram interrompidos pelo presidente
do Diretório Estudantil da Faculdade de Direito, Sílvio
Procópio, que trazia um recado de Hélio Vasconcelos
recomendando a se dispersarem e se protegerem, pois nada restava
a fazer; o golpe estava consumado e as tropas nas ruas.
Pode se imaginar o desânimo e o espanto daqueles jovens em
luta pelos seus direitos que, de repente, perdiam os sonhos, a esperança
e a segurança. O universitário Sílvio Procópio
transportou-se às residências dos deputados Djalma
Maranhão e José Rocha, onde já eram esperados
e de onde foram levados para uma fazenda, distante da cidade. Arruda
não viajou; refugiou-se na Faculdade de Medicina, de onde
foi retirado pelos médicos Leônidas Ferreira e João
Campos, para a residência do primeiro, onde permaneceu uns
poucos dias. Voltando a casa e às aulas, foi logo procurado
por uma patrulha do Exército, que não conseguiu localizá-lo.
Acossado e sem condições de escapar à perseguição
da ditadura, apresentou-se ao Quartel-General do Exército,
depois ao 16° Regimento de Infantaria, onde esperava ser interrogado
e liberado, sendo recolhido à prisão que durou mais
de seis meses.
Arruda não sofreu a tortura física maior, mas viveu
o drama das constantes ameaças pelos torturadores, que o
retiravam da cela nas madrugadas, para força-lo a delatar
companheiros, o que nunca aconteceu. Os presos da sua cela, na defesa
pela sobrevivência, organizavam estudos de língua,
história e literatura; entre eles encontravam-se alguns professores.
As distrações dependiam da criatividade de cada um
dos acontecimentos do dia. Apesar de pouca idade, Arruda sentia-se
forte e em condições de suportar a violência
daqueles dias; acha que modificou a própria sensibilidade,
fortificando-a para os momentos mais diversos de toda a sua vida.
Relatou alguns momentos de maior tensão no 16° RI, quando
os companheiros de prisão Valdier, Eurico Reis e Moisés
grilo eram torturados fisicamente. Certo dia, no horário
de visitas, um sargento empurrou pelas costas o preso Dr. Vulpiano
Cavalcanti afastando-o da esposa, dona Ângela. Naquele momento,
os presos sentiram tamanha revolta que renunciaram às próprias
visitas e entraram nas celas. O oficial de dia, um universitário
oriundo do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva
do Exército e servindo em Natal, tentou dialogar com os presos,
que não cederam e a visita foi encerrada.
Arruda relata uma visita feia pelo então reitor da UFRN,
aos presos do quartel da Polícia Militar, ocasião
em que o Dr. Onofre Lopes ficou profundamente chocado com a condição
em que se encontravam os universitários, trancados em uma
pequena cela e protestou energicamente aos delegados Carlos Veras
e José Domingos, que o acompanhavam, dizendo-lhes que “não
podia admitir aquele tratamento a jovens que representavam o que
havia de melhor na universidade” e reclamou para todos os
presos políticos uma condição mais humana.
A partir daquela manhã, os presos foram alojados no berçário
do hospital da Polícia Militar.
A ordem de soltura por habeas-corpus chegou em outubro, na noite
do dia do aviador. Ele e Josemá Azevedo foram avisados a
se prepararem para serem libertados. Os dois reagiram acuados e
desconfiados: “Não queremos sair para sermos presos
novamente.” O oficial insistiu: “Têm que sair”.
E chamou-os para dizer, confidencialmente: “Rapazes, podem
sair. Vocês não imaginam a repercussão daquelas
prisões após os habeas-corpus. A ordem de cima agora
é para soltar mesmo.” O oficial era um estudante de
odontologia do Recife, servindo temporariamente no 16° RI. Eles
confiaram, saíram e não voltaram.
PAULO FRASSINETI DE OLIVEIRA
(Advogado, Procurador Aposentado da Prefeitura de Natal)
O advogado Paulo Oliveira, com 27 anos de idade em 1964, exercia
o cargo de chefe de gabinete do vice-prefeito Luiz Gonzaga dos Santos
e trabalhava, desde 1954, no então “Jornal de Natal”,
posteriormente “Folha da Tarde”, de propriedade do ex-prefeito
Djalma Maranhão. A entrevista com ele foi carregada de emoção
porque foi difícil para a sua sensibilidade trazer à
memória os amigos de Djalma Maranhão, Luiz Gonzaga
dos Santos e Luiz Maranhão Filho, que não sobreviveram
à crueldade da ditadura. Paulo falou, com muita amargura
e tristeza, dos sofrimentos dos pais pela sua prisão e pela
de seu irmão Guaraci, mas conseguiu relatar alguns detalhes
dos episódios vividos em 1964.
Comentou que sua prisão deveu-se à ligação
pessoal e de trabalho com Djalma e atuação nas lutas
estudantis desde o curso secundário. Com destacada liderança
universitária, foi eleito, em 1961, secretário da
União Nacional de Estudantes (UNE), cargo que exerceu durante
um ano no Rio de Janeiro, durante a gestão do então
presidente e líder da Juventude Universitária Católica
(JUC), Aldo Arantes. Para os militares, o seu currículo foi
acrescido com uma viagem a Cuba, onde passou um 1° de maio.
Na noite de 1° de abril, encontrava-se no gabinete do prefeito
Djalma Maranhão, quando as tropas do Exército invadiram
a Prefeitura, armadas com metralhadoras. Sua lembrança do
episódio é muito forte. Fala que sentiu pavor da violência
com que foram todos expulsos naquela noite, com metralhadoras apontadas
em sua direção.
No dia 2, após as prisões do prefeito e vice, refugiou-se
com o irmão Guaraci na fazenda de um tio, esperando passar
a truculência dos primeiros momentos. Passados 8 dias e as
prisões se sucedendo, resolveu voltar. Três dias após,
saindo de uma matinê de cinema, encontrou o desembargador
Paulo Luz e Louril do Nascimento que lhe comunicaram a prisão
do advogado Eider Moura. Paulo compreendeu que estava chegando a
sua hora e comentou: “Não sei o que fazer.” O
desembargador aconselhou: “Vá para casa pois ninguém
vai poder impedir a prisão de quem eles decidirem.”
Paulo foi para casa e lá já encontrou os militares
do Exército, os pais chorando e os livros espalhados pelo
chão.
Levado para o quartel do 16° RI, foi jogado em uma cela considerada
“de castigo”, onde encontrou o líder sindical
Evlim Medeiros, que advertiu para o risco de serem torturados a
qualquer momento, como estava acontecendo com alguns presos. Dias
depois, transferido para outra cela, encontrou o irmão Guaraci.
Os dramas dos presos políticos de 1964 assemelharam-se, são
repetidos, podem se tornar cansativos ao relato, mas trazem o testemunho
de uma tragédia humana que não podia ter acontecido,
não pode se repetir o que não se pode calar.
Com todos os demais presos, Paulo sofreu o medo, a insegurança
e a humilhação, viu o terrível tenente Calado
arrebatar das mãos de sua mãe, dona Iraci, e jogar
fora, as frutas que lhe eram destinadas e prescritas pelo médico
do quartel, capitão Dourado. Não existiram super-homens
nas celas dos quartéis militares; existiram homens comuns,
presos num regime de exceção, convivendo com torturadores,
que chegaram a qualquer hora da noite para aterroriza-los. Resiste-se,
resistimos com dignidade, até saímos fortificados
e engrandecidos, mas suportamos, nos limites da resistência
humana.
Transferido para o quartel da Polícia Militar, com Djalma
Maranhão e outros, sentiu-se em quase bem-estar pelo tratamento
respeitoso ali dispensado aos presos políticos. Lembrou,
visivelmente tenso, a madrugada da saída de Djalma Maranhão
para Fernando de Noronha. Naquela noite, conseguiram com um policial
uma garrafa de aguardente, que tomaram antes de deitar. Djalma,
numa previsão incrível, tomou a bebida e comentou:
“Quem sabe... está é a minha despedida...”
Ele sentia o peso do ódio contra si, tinha ouvido no rádio
de um soldado um noticiário político e concluído
que a pressão para destruí-lo politicamente atingia
o limite.
A última visão que Paulo guarda do amigo é
da sua passagem pela porta de saída, levando uma pequena
mala.
Outra lembrança dolorosa ele guarda ele guarda de sua estrada
no quartel do Regimento de Obuses, para onde foi, outra vez, transferido.
Os militares adotavam o sistema de rodízio, seguramente para
aumentar a dificuldade de adaptação dos presos. No
RO, encontrou Eider Moura, que relatou detalhes das torturas físicas
impostas ao professor Luiz Maranhão. Paulo nunca esqueceu
as marcas de óleo na parede da cela, com a forma das mãos
de Luiz, ali deixadas no ato de se amparar, quando voltava das sessões
de tortura, onde era pendurado pelos pés e mergulhado num
tonel contendo água e óleo.
Paulo comentou, também, a ajuda de alguns, como o então
recruta do 16°RI, Fernando Bezerril, que fazia, secretamente,
a comunicação entre ele e a sua família, e
ressaltou a discreta solidariedade dos oficiais e subalternos do
quartel da Polícia Militar de Natal.
Foi libertado no dia 26 de janeiro de 1965, por habeas-corpus, ficando
ainda obrigado a apresentar-se, todas as quintas-feiras, no quartel-general.
Para livrar-se daquela obrigação novo habeas-corpus
foi impetrado pelo professor Carlos Varela Barca.
Como todos os funcionários do Estado e do Município,
foi demitido por decreto do então governador Aluízio
Alves. O mesmo advogado Varela Barca conseguiu sua reintegração,
pois o ato de demissão contrariava até o que dispunha
o Ato Institucional 1.
GUARACY QUEIROZ DE OLIVEIRA
(Advogado, Conselheiro da Secção Regional
da Ordem dos Advogados do Brasil, Procurador Aposentado da Prefeitura
Municipal de Natal)
Em 1964, o advogado Guaracy Queiroz encontrava-se tranquilamente
estabelecido no seu sistema de vida, com um escritório e
um emprego na Câmara Municipal de Natal. Entre seus amigos
estavam o vice-prefeito Luiz Gonzaga dos Santos e o então
suplente de deputado federal Aldo Tinoco, com quem conversava sobre
as reformas de base para o país; desejava-as, mas não
participava das lutas reivindicatórias. A única participação
política de sua vida aconteceu em 1948, durante a campanha
de "O Petróleo é Nosso", quando dirigiu
um jornal estudantil.
Deflagrado o golpe militar e as prisões se sucedendo, inclusive
de alguns amigos, resolveu sair, por uns dias, e ficar com seu irmão
Paulo Frassineti, na fazenda de um tio. Regressando a Natal, voltou
à quase normalidade de sua vida, embora angustiado e inseguro,
como acontecia com a grande maioria dos brasileiros que viveram
a ditadura militar implantada em 1964.
No dia 13 de abril, encontrava-se em sua residência com a
esposa no sétimo mês de gestação, quando
um comando do Exército chegou para prendê-lo. Levaram-no
para o quartel do 16° RI de Infantaria onde permaneceu alguns
meses, sendo transferido para o quartel da Polícia Militar
e, por último, para o Regimento de Obuses, completando mais
de dez meses nos cárceres militares. Até o momento,
até abril de 1993, Guaracy desconhece a causa real da perseguição
e prisão que desarticulou, por longo período, a sua
vida. No processo não havia uma articulação
formal; foi intimado a defender-se de corrupção e
subversão, sem especificarem atos cometidos.
Dos diversos interrogatórios que respondeu, lembrou que perguntaram
"Você é comunista?" Resposta: "Não,
sou nacionalista!” Ao que contestaram: "Pois é
a mesma coisa!"
Na comissão de inquérito da Câmara Municipal,
o vereador José Guará interpelou: "Você
acha que o almirante Aragão é almirante do povo?”
Resposta: "Acho que ele é almirante da Marinha."
As perguntas eram tão sem sentido e irresponsáveis
para um momento grave e decisivo na vida dos acusados que custa
a acreditar tivessem os inquisidores compromisso com a dignidade
da própria imagem. Guaracy comentou que, para todos os presos,
os momentos mais dramáticos eram os vividos nos interrogatórios.
Referências amargas foram feitas sobre a fome que passavam;
a comida de péssima qualidade chegava fria e descuidada,
algumas vezes sem talheres. Certa ocasião, aproveitando uma
visita aos filhos, dona Iraci, sua mãe levou um sanduíche
de pão com carne. Ao tentar entregar, recebeu, do capitão
tapa na mão. O pão caiu longe e ela saiu em pranto.
Na aparência, os detalhes podem ser banais, mas são
detalhes que tornaram quase insuportável a vida nos quartéis.
Em janeiro de 1965, Guaracy, seu irmão Paulo e outros presos
continuavam, ainda, no quartel do Regimento de Obuses e já
o comandante Caldas apresentava solidariedade e preocupação
com a demora dos habeas-corpus. Finalmente, no mês de janeiro,
foram postos em meia liberdade, com o compromisso de se apresentarem,
semanalmente, ao quartel-general do exército até a
concessão de outro habeas-corpus, requerido pelo professor
Carlos Varela Barca.
RAIMUNDO UBIRAJARA DE MACEDO
(Jornalista)
Raimundo Ubirajara de Macedo, jornalista e funcionário do
então Departamento de Correios e Telégrafos, onde
exercia o cargo de Secretário do Diretor da mesma repartição,
foi preso no dia 7 de abril e levado para o quartel do 16° RI,
onde já se encontravam o prefeito Djalma Maranhão,
o jornalista Carlos Lima, o então deputado Aldo da Fonseca
Tinoco, o sindicalista Evlim Medeiros, o advogado Geraldo Pereira
de Paula e outros.
Ubirajara não foi molestado fisicamente, mas considerou uma
tortura psicológica a ameaça disfarçada do
capitão Lacerda, que o interrogou em frente ao símbolo
da justiça, fixo à parede e, nele pendurado, uma virola
que era o instrumento usado para as torturas físicas de aplicação
de pancadas. No interrogatório foi pressionado para informar
onde se reuniam os comunistas dos Correios e Telégrafos e
intimidando a explicar os artigos que publicava no jornal "Folha
da Tarde", nos quais defendia idéias políticas
nacionalistas.
As acusações eram, como todas, forjadas para aterrorizar,
sem apresentarem fatos concretos. Lembrou detalhes que dão
a idéia da condição humana na vivência
diária dos prisioneiros; falou de Djalma Maranhão
com admiração pelo equilíbrio, resistência
moral e liderança conservados, ainda, na prisão. Do
preso Luiz Gonzaga de Souza, diretor do então Correios e
Telégrafos, professor do Atheneu e dedicado à literatura.
contou que algumas noites ele passava a recitar na cama, poemas
de Fagundes Varela, Castro Alves e outros. Certa noite, interrompeu
um longo poema, levantou-se e indagou, solene: "Quando é
que a gente vai sair desta merda" Todos riram. Comenta, ainda,
que os presos conviviam bem, apesar dos limites de espaço
e tensão emocional.
Falou também de um episódio lamentável que
demonstra os critérios adotados para efetuarem prisões.
Um comentário infeliz do capelão do Exército,
padre Eymard Monteiro, provocou a prisão de um homem simples
e sem militância política. Visitando as celas dos presos,
em companhia do coronel Mendonça Lima, o capelão exclamou:
"Estou sentindo falta aqui do meu compadre "Doca",
porque ele gostava..." No dia seguinte, chegou preso João
Doca Filho, que somente foi libertado muitos meses depois, já
pelos últimos habeas-corpus. O "compadre Doca”
era um modesto funcionário do Departamento de Correios e
Telégrafos, com muitos filhos e difícil situação
econômica.
Ubirajara lembrou os casos de tortura acontecidos no 16° RI,
foram torturados, em diversas ocasiões, os presos Valdier
Gomes, Eurico Reis, Moisés Grilo e, uma vez, Floriano Bezerra.
As torturas eram do conhecimento de todos os presos e pode-se imaginar
a tensão emocional em que viviam, sob o risco constante de
serem levados pelo capitão Lacerda, para os mesmos fins.
Comentou, ainda, Ubirajara, que a última seção
de torturas aconteceu num dia dedicado à assunção
de Nossa Senhora, fato que lhe fez reacender a fé religiosa
por considerar que, naquele dia, acontecera um milagre.
Era feriado no quartel, não havia circulação
de veículos e de pessoas quando viram chegar o capitão
Lacerda, dirigindo o seu próprio carro. O preso Dr. Vulpiano
Cavalcanti previu o que ia acontecer e aconselhou aos que eram comumente
torturados e apanhavam em silêncio a gritarem o quanto fosse
possível.
O capitão Lacerda levou o preso Valdier e deu início
a mais uma sessão de tortura. Valdier gritou muito. Moisés
Grilo gritou mais. Eurico Reis apelou por Nossa Senhora e gritou
o mais alto que pôde. Naturalmente, os gritos foram ouvidos
por todo o quartel. Daquele dia em diante acabaram-se as torturas
no 16° RI.
Poucos meses depois, com o fim das investigações,
o temido capitão Lacerda foi transferido de Natal.
Libertado em 19 de março de 1965, após 12 meses de
prisão, Ubirajara deixou, ainda presos, dois camponeses.
Um deles, o Sr. Manoel Bento, ruralista de Canguaretama, nunca demonstrou,
nas conversas entre os presos, que tivesse qualquer envolvimento
político.
LUIZ GONZAGA DE SOUZA
(Advogado, ex-Professor do Atheneu Norte-Rio-Grandense,
ex-Diretor do Departamento de Correios e Telégrafos)
Convivi com Luiz no então Departamento de Correios e Telégrafos
e conheci seu gosto pela literatura francesa que lia no original.
Freqüentei a biblioteca de sua residência de onde levava
livros emprestados e conversávamos sobre poesia, uma de suas
paixões.
Na avalanche de caça às bruxas, lá foi ele
parar nas celas do 16° Regimento de Infantaria, como ex-integrante
do Partido Comunista Brasileiro e acusado de executar uma administração
subversiva na repartição que dirigia.
Carente de beleza e sensível, valeu-se da poesia para suportar
a solidão e o tédio das noites da prisão. Este
era o Luiz que conheci, divagando acima do feio da vida e construindo
com as suas cores o mundo que lhe convinha.
Luiz morreu há alguns anos e não chegamos a conversar
sobre a prisão. Não tenho dúvidas, no entanto,
de que falaria com fina ironia e muita distância dos seus
perseguidores.
CARLOS ALBERTO DE LIMA
(Jornalista, Empresário e Editor)
Entre as amargas lembranças de Carlos Lima, preso nos primeiros
dias de abril e encarcerado no 16° RI, ficou, especialmente,
uma certa meia-noite em que o capitão Lacerda, com a grosseria
que lhe era peculiar, acordou os presos ordenando que juntassem
os seus pertences e saíssem das celas pois estariam sendo
transferidos para o confinamento da ilha de Fernando de Noronha.
Caminharam um pouco e apagaram-se as luzes do quartel, ficando na
escuridão absoluta. Djalma Maranhão advertiu em voz
alta que todos ficassem parados, sem qualquer movimento que pudesse
justificar uma reação armada contra uma pretensa fuga.
Percebeu a cilada e o risco de serem metralhados com a desculpa
de tentarem a fuga. Passados alguns minutos, acenderam-se as luzes
e foram todos transferidos para outras celas, nos fundo do quartel.
Carlos Lima foi uma das vítimas de tortura por parte do capitão
Lacerda. Levado a depor e tendo o seu depoimento coincidido com
o do prefeito Djalma Maranhão, o militar zangou-se e interrogou-o
novamente, afirmando que haviam combinado previamente as respostas.
Não conseguindo contradições no segundo depoimento,
o capitão o levou para uma cela especial de castigo, medindo
um metro de diâmetro, deixando-o incomunicável por
três dias sobre o cimento molhado.
A sensibilidade de Carlos Lima e seus problemas de saúde
inibiram-me de insistir nas suas lembranças de 1964.
GERALDO PEREIRA DE PAULA
(Advogado, ex-funcionário do Departamento de Correios
e Telégrafos)
Contratado como advogado das Ligas Camponesas, uma sociedade civil
com personalidade jurídica criada para defender os interesses
dos trabalhadores do campo, atraiu contra si a fúria do patronato
rural e a acusação de subversivo em 1964. Na primeira
semana de abril, encontrava-se na cidade do Recife, acompanhando
a cirurgia de uma filha. Voltou a Natal no dia 10 e foi logo informado
que havia sido procurado por militares do Exército, com um
recado para se apresentar ao coronel Estevildo Caldas, no 16 °
Regimento de Infantaria.
Dirigiu-se ao quartel, convencido de que prestaria algum esclarecimento,
sem maior conseqüência. Ao se apresentar, foi logo colocado
em uma cela, onde já se encontrava o pastor protestante José
Fernandes Machado. No dia seguinte, o capitão Dover levou-o
para o isolamento de outra cela, localizada nos fundos do quartel
e vizinha à sala do capitão Guedes.
Levado a depor na noite do dia l l, foi submetido à tortura
conhecida como 'boite', que consistia em ficar sentado frente a
uma fortíssima lâmpada, distante dos seus olhos apenas
uns vinte centímetros. De cada lado, um soldado encostava-lhe
uma baioneta abaixo de cada braço. Sem poder se mexer, Geraldo
suportou a tortura por, aproximadamente, três horas, rodeado
pelo capitão Dover e pelos tenentes Calado e Castelo Branco,
até a entrada do coronel Mendonça Lina, a quem reconheceu
pela voz. Ao coronel, que antes havia comparecido à cela
e ironizado o preso, afirmando que " quem tomou conta do Brasil
foi o Exército brasileiro, não foi Hitler nem Mussolini",
Geraldo apelou: “coronel o senhor disse que quem tomou conta
do Brasil foi o Exército brasileiro; no entanto, estão
aplicando os métodos de tortura usados pelas SS de Hitler".
O coronel disse apenas: “Desliguem a luz”, e retirou-se.
De volta à cela sem alimento e sem água por quarenta
e oito horas; quando levaram comida não lhe deram água.
O sol penetrava na cela, fazia muito calor e, com a sede, entrou
em desespero. Chamava pelos sentinelas e não lhe atendiam.
Passou a chutar a porta que foi aberta pelo capitão Guedes
que, surpreso, indagou o que estava acontecendo. Informado de que
Geraldo estava sem tomar água há dois dias, retirou-o
da cela, mandou-o sentar e ordenou à sentinela que trouxesse,
do restaurante dos oficias, um litro de água gelada e um
copo. O soldado voltou e comunicou que o oficial de dia havia dito
que não era para fornecer água por dois dias. O capitão
Guedes zangou-se e determinou: “Volte, diga que mande a água
se não vou lá prendê-lo! Não admito este
tipo de tratamento a um preso.”
A Geraldo: “O senhor pode ser o que for. Se é comunista
prendam e processem mas isso não!" Geraldo saciou a
sede.
No dia seguinte, foi retirado do isolamento para uma cela maior,
onde encontrou diversos outros presos.
Geraldo foi interrogado apenas duas vezes uma pelos militares e
outra pelo delegado Veras. Em outra ocasião, foi salvo, mais
uma vez, pelo coronel Mendonça Lima, quando o capitão
Dover mandou buscá-lo algemado e escoltado. No encontro,
o capitão cumprimentou-o, com desdém: - "Bom-dia
"Seu" Geraldo." - "Bom- dia 'Seu' Dover."
O capitão se enfureceu e vociferou: "Seu" Dover?
Eu sou capitão!" Geraldo revidou: “Eu sou Doutor!”
O capitão partiu para agressão física e Geraldo
gritou: "Vai me bater? Não pensei que um oficial do
Exército brasileiro batesse num preso algemado!" Entrou
o coronel, advertiu o capitão e o preso foi levado de volta.
Lembrou, ainda, o sofrimento e a resistência física
do companheiro de cela João Soares, que apanhou oito surras,
voltava sangrando e o próprio Geraldo tirava-lhe as roupas
e lhe aplicava compressas molhadas.
O habeas-corpus de Geraldo chegou em fins de outubro, juntamente
com os de Luiz Gonzaga dos Santos e outros presos, quando se encontrava
no quartel da Polícia Militar, para onde fora transferido.
O major João Pinheiro da Veiga procurou-os à noite,
mandou assinar a ordem de soltura, mas impediu que telefonassem
para a família ou pedissem um táxi. Geraldo percebeu
que militares do Exército encontravam-se em frente ao quartel
e propôs dormir no chão do pátio, alegando que
não gostaria de sair a pé, na escuridão da
noite. O major argumentou que estavam livres e não podiam
pernoitar no quartel. Obrigados a sair, foram presos, novamente,
na calçada, e levados de volta. Geraldo perguntou: "Major,
eu gostaria que me dissesse qual foi a subversão que fiz
daqui para o portão. Pelo que eu teria feito antes, o Supremo
Tribunal Federal já decidiu mandar me soltar..."O major
retrucou: "O senhor tem ainda coisas a explicar..."
Geraldo conseguiu passar um telegrama, em nome da esposa Anita,
para o ministro Ribeiro da Costa, presidente do Supremo Tribunal
Federal, e para o ministro da Guerra, general Costa e Silva. Poucos
dias depois, foram postos em liberdade.
Em liberdade, conviveu com a rejeição e o preconceito
contra os considerados subversivos. Nas rodas de conversas habituais
no Grande Ponto a que sempre freqüentou, passou a ser discriminado,
acintosamente. Resolveu divertir-se, dissolvendo grupos; aproximava-se
e os companheiros de antes afastavam-se e ele ficava só.
Da tortura na "boite", restou a Geraldo Pereira de Paula
séria e irreversível lesão nos olhos.
CARLOS ALBERTO GALVÃO
(Economista, Empresário)
Em 1964, o empresário Carlos Alberto Galvão era funcionário
do então Instituto de Aposentadoria e Pensões dos
Industriários e amigo pessoal do vice-prefeito Luiz Gonzaga
dos Santos, com quem colaborava na secretaria do Partido Trabalhista
Brasileiro, que Luiz dirigia a nível municipal. Carlos tocava
seus negócios comerciais – um bar e a então
Sorveteria Oásis - e sua vivência politica limitava-se
à consciência critica da exploração do
país pelas multinacionais americanas.
Viveu o l° de abril entre os negócios e a preocupação
com o país comum a qualquer cidadão. No dia 4, ao
sair da sua residência, foi abordado por dois militares à
paisana, que se identificaram como sargentos do Exército
e o intimavam a comparecer ao quartel do 16° Regimento de lnfantaria.
No quartel, já ao anoitecer, colocaram-no em uma cela de
isolamento onde ficou sem nenhum contato humano, além da
sentinela que trazia a comida em silêncio. Em uma ocasião
da troca da guarda ouviu uma recomendação: "Cuidado
com este prisioneiro que ele é muito perigoso." lncrédulo
e assustado, questionava se aquele prisioneiro perigoso seria ele.
A tensão do isolamento crescia e foi agravada por um tiro
casual que um sentinela disparou na janela, cuja bala entrou na
cela. Houve um corre-corre e nova recomendação: "O
prisioneiro é muito perigoso..." Um oficial que se dizia
espírita passou e entregou-lhe uma Bíblia.
Fragilizado fisicamente, Carlos atingiu o limite da resistência
e foi acometido por um colapso periférico. Quando despertou,
os que o rodeavam estavam muito assustados; foi atendido pelo capitão
Dourado, médico do quartel. No dia seguinte, levado a depor
com o capitão Lacerda, observou, em cima da mesa que os separava,
uns aparelhos usados para aplicação de choques elétricos.
O capitão avisou que se tratava de um detector de mentiras.
O interrogatório, que iniciou tenso, foi logo interrompido
por ordem do coronel comandante e retomado depois, com a presença
de um médico. Da sala de interrogatórios foi levado
por uma escolta e, na passagem, viu toda a tropa formada e perfilada
Ficou muito assustado, associando ao episódio vivido por
Luiz Maranhão em uma de suas prisões, quando foi humilhado
e apresentado a toda a guarnição como traidor da pátria.
Carlos confessa que era muito sugestionado pelas notícias
das torturas da guerra. No momento em que entrava em outra cela,
começaram a tocar o Hino Nacional. Os soldados perfilaram-se
e ele parou, meio apavorado, olhos arregalados, barba crescida,
assustando os companheiros que ali se encontravam e que o imaginaram
louco.
Meses depois foi transferido para o quartel da Polícia Militar,
onde conseguiu saber que era acusado de contrabandear armas e manter
comunicação, via radioamador, com Cuba, Pequim e Moscou.
Compreendeu, então, porque o consideravam muito perigoso...
Seu envolvimento com armas resumira-se a possuir dois rifles sem
uso e, em algum tempo, haver vendido dois ou três revólveres
que um parente havia trazido dos Estados Unidos. Da acusação
de radioamador sobrou um prejuízo para o seu primo dentista
Clemente Galvão, que lhe entregou para mandar consertar um
receptor de radioamador, que foi apreendido e nunca devolvido. As
acusações foram tão sem fundamento que a Auditoria
Militar do Recife não o denunciou. No dia 23 de outubro,
foi liberado por habeas-corpus e, em companhia de outros presos,
recolhido novamente à prisão. Foi libertado dias depois.
Carlos reassumiu os negócios e verificou que se encontrava
à beira da falência.
MARCOS JOSÉ DE CASTRO GUERRA
(Advogado, Doutor em Direito Internacional do Desenvolvimento,
Consultor Internacional (UNESCO, FAO, OIT, PNUD, UNICEF, CEE), Consultor
das Nações Unidas no Brasil, Secretário de
Educação e Cultura do Rio Grande do Norte)
Em 1964 o universitário Marcos Guerra coordenava a aplicação
do método de alfabetização do professor Paulo
Freire no programa de alfabetização de adultos desenvolvido
pelo governo, iniciado em 1962, na cidade de Angicos, através
do Serviço Cooperativo de Educação do Rio Grande
do Norte (SECERN), autarquia fundada com o objetivo de agilizar
o acordo de cooperação firmado entre o governo americano
e o governador Aluízio Alves através da Aliança
para o Progresso e da SUDENE.
Com a eficácia do método no desenvolvimento do programa
de alfabetização em Angicos, e estando o professor
Paulo Freire na presidência da Comissão Nacional de
Educação Popular, criada pelo Ministério da
Educação do governo João Goulart, o mesmo sistema
de alfabetização estender-se-ia para outros Estados,
a começar por Sergipe, no governo Seixas Dória. Para
lá dirigiu-se Marcos a uma pequena equipe do SECERN, com
a finalidade de formar professores e técnicos.
Em Aracaju, encontrava-se no dia 1° de abril. Consumado o golpe,
decidiram voltar a Natal e o fizeram via cidade de Caruaru, onde
ficaria uma companheira, filha do prefeito do município e
aliado político do governador Miguel Arraes. Na residência
do prefeito, foram cercados por uma companhia do Exército
de que iriam reforçar o movimento de guerrilhas. Liderado
pelo prefeito. Presos e algemados, foram transportados em cima de
um caminhão para o Recife e entregues ao centro de triagem
e interrogatório do coronel Ibiapina, que se destacou pela
repressão e tortura aplicada aos presos. Identificados durante
os interrogatórios, irritaram o coronel que divulgara haver
descoberto um grupo de guerrilheiros e constatava que executavam
um plano de alfabetização que ele, o coronel, considerava
perigosíssimo para o país. Na interpretação
do coronel, o programa de alfabetização popular havia
sido decidido em Moscou, para ser executado em toda a América
Latina, onde o povo, conscientizado de seus direitos, tomaria o
poder.
Segundo o professor Marcos Guerra, o coronel tinha grande lucidez
sobre a força da educação e enorme fantasia
sobre as ordens de Moscou.
No Recife, Marcos foi jogado, com os companheiros de Natal José
Ribamar de Aguiar e Pedro Neves Cavalcanti, em uma cela superlotada,
onde dormiam no chão, colados uns aos outros e de onde só
puderam sair por habeas-corpus, após um tempo que não
lembra - quarenta, cinquenta dias.
Marcos não esqueceu a primeira visita do pai, professor Otto
de Brito Guerra, que lhe declarou: "Houve um grande mal-entendido
sobre o trabalho que vocês faziam. Você vai ter paciência;
é importante saber, que nós conhecemos o que você
estava fazendo. Não baixe a cabeça!" O conselho
foi de extrema importância para o jovem de 23 anos a dignidade
da postura política e responsabilidade social duramente castigada
pela ditadura militar.
Na prisão, conviveu com importantes figuras da política
pernambucana, como o prefeito Pelópidas da Silveira, o secretariado
do governador Miguel Arraes e, também Clodomir Morais, Francisco
Julião e Gregório Bezerra, convívio que lhe
permitiu adquirir uma grande experiência de vida. Os presos
organizavam seminários permanentes, analisavam acontecimentos
políticos e aproveitavam para comentar suas experiências
Entre as celas havia duas para isolamento individual. Na entrevista
Marcos lembrou um momento de beleza humana na solidariedade dos
soldados, que conduziam o líder comunista Gregório
Bezerra, destinado a uma cela do isolamento. Os soldados simularam
um engano e o colocaram na cela superlotada. Gregório, que
resistiu às mais ultrajantes torturas, entrou na cela exausto
e faminto. O soldado comunicou: "Ele vai ser posto aqui, por
engano, durante algumas horas." Gregório recebeu a solidariedade
de todos os presos. Havia um bico de água onde ele conseguiu
banhar-se. Um preso que se encontrava doente e recebia maçãs,
deu-lhe uma. Ele comeu, descansou, e a maçã, como
único alimento em muitas horas, provocou uma crise de suor.
Em poucas horas o soldado voltou e o levou para o isolamento.
Marcos recebeu habeas-corpus requerido por seu pai, foi
libertado, mas voltou a ser preso uma dezena de vezes. Conseguiu
transferir o processo para Natal e esteve preso no 16° Regimento
de Infantaria, por algum tempo. As prisões se repetiram até
o ano de 1965, os habeas-corpus também.
Esclareceu que assumiu, em 1962, a coordenação da
Alfabetização do SECERN com o então Secretário
de Educação Calazans Fernandes, no governo Aluízio
Alves. Agia integrado ao programa da União Nacional de Estudantes
que, sob presidência de Aldo Arantes, convocou os universitários
a se engajarem no trabalho concreto de cada região, dentro
da especialidade de cada um.
Após a formatura no curso de Direito, em 8 de dezembro de
1965 e, no limite do suportável, com tantas entradas e saídas
da prisão, decidiu sair do Brasil para a França, de
onde lhe chegara convite e ajuda financeira para viajar. Seguiu
para São Paulo onde recebeu ajuda do Sindicato dos Jornalistas
e de funcionários da VARIG, que lhe facilitaram o embarque.
Em Paris, participou ativamente da organização internacional
de ajuda a exilados e refugiados políticos.
A experiência de Marcos na ditadura foi muito cruel mas muito
rica de aprendizado de vida. Viveu 25 anos fora do Brasil. Trabalhou
no Instituto de Pesquisas e Formação em Educação
e Desenvolvimento, para onde foi contratado como professor e onde
encontrava-se outro brasileiro, professor Heron Alencar, ex-vice-reitor
da Universidade de Brasília. Com carteira de trabalho assinada,
o que mudava sua condição de exilado político,
assumiu um cargo de direção no mesmo Instituto e pôde
ajudar muitos estudantes da América Latina, Ásia e
África. Pelo mesmo Instituto, orientou a coordenação
dos programas de desenvolvimento de alguns países do terceiro
mundo, entre eles Níger, Costa do Marfim, Moçambique,
Angola, Cabo Verde e Nicarágua, concluindo sua trajetória
internacional em Paris como diretor de uma Agência de Cooperação,
Solidariedade Internacional e Financiamento de Projetos, e Consultor
das Nações Unidas.
Em condições privilegiadas para atuar livremente no
combate à ditadura do seu país, participou ativamente
do movimento de denúncias de torturas a presos políticos
do Brasil e da luta externa em favor da anistia e redemocratização
do país.
JOSÉ RIBAMAR DE AGUIAR
(Advogado, Professor da UFRN)
PEDRO NEVES CAVALCANTI
(Advogado, Funcionário aposentado do Banco do Nordeste)
Universitários da Faculdade de Direito, Ribamar e Pedro foram
aprovados no curso para monitor do curso de alfabetização
de adultos do sistema Paulo Freire a ser implantado na cidade de
Angicos. Selecionados para comporem a equipe de execução
do método no Estado de Sergipe, encontravam-se em Aracaju
no dia l° de abril. Com o golpe militar, voltaram para Natal,
quando foram presos na cidade de Caruaru, algemados e conduzidos
para o quartel da 2a. Companhia de Guardas, em Recife, onde foram
interrogados pelo coronel Ibiapina.
Sem pertencerem a partidos políticos, não participavam
de lutas reivindicatórias nem de organizações
religiosas ou estudantis. Os acontecimentos de suas experiências
foram os mesmos descritos no depoimento de Marcos Guerra.
DANILO BESSA
(Advogado)
Estudante de Direito, aos vinte anos de idade, Danilo foi estimulado
pelo professor Luiz Maranhão Filho a estudar o marxismo.
Convencido de que o regime socialista seria a solução
para as injustiças sociais, filiou-se ao Partido Comunista
Brasileiro e passou a exercer atividades políticas, através
da União Nacional de Estudantes e União Estadual de
Estudantes. Na mesma época, Danilo sonhava fazer um bom curso,
ingressar na magistratura e exercer dignamente a profissão.
Em abril de 1964 mudou o país e seu destino.
Consumado o golpe, procurou o amigo Luiz Maranhão e a orientação
que recebeu foi: "cada um que procure escapar porque o golpe
é patrocinado pelos Estados Unidos e pode significar até
a morte para todos." Com essa advertência, tratou de
sumir. Com a ajuda do deputado estadual José Rocha viajou
para Campina Grande, de onde seguiu para uma fazenda no interior
do Ceará, ali trabalhando como camponês até
dezembro de 1964. De lá, seguiu para o Rio de Janeiro, adotou
o nome de Leo Monteiro, tentou mudar o visual, conseguiu trabalho,
mergulhou no anonimato. Fez contato com militantes do Partido Comunista,
colaborou no jornal "Voz da Unidade", foi novamente perseguido
e obrigado a fugir para o Paraguai, de lá voltando para São
Paulo.
Em São Paulo voltou à militância do Partido
Comunista, foi preso e levado para o DOPS, onde ficou 17 dias, no
mesmo bloco em que esteve Luiz Maranhão. Ali foi interrogado
diversas vezes, levou tapas e choques elétricos, aplicados
através de um chuveiro elétrico. Desesperado pelas
ameaças de morte e acossado por muitos interrogatórios,
solicitou papel para escrever as informações que lhe
exigiam. No escrito, expôs suas idéias e atividades
políticas, concluindo com um apelo dramático pela
vida e liberdade.
Para ser solto, Danilo pode ter contado com a ajuda do amigo Oswaldinho,
filho de general Oswaldo Cordeiro de Farias. Em liberdade, voltou
ao Rio de Janeiro, fez concurso para a Confederação
de Comércio, foi aprovado, conseguiu a nomeação
com a interferência do senador Dinarte de Medeiros Mariz.
Danilo não esqueceu o convívio com militantes na clandestinidade
e o desespero de alguns, quase garotos, quando, emocionados, despediam-se
para cumprirem tarefas do Partido. Uns voltavam, outros desapareciam.
Novamente em Natal, concluiu o curso de Direito, exerce advocacia
na capital e no interior mas perdeu o sonho de ingressar na magistratura
estadual.
EIDER TOSCANO DE MOURA
(Advogado, Geógrafo, Professor da UFRN)
Exercendo as funções de Promotor Público, Eider
foi preso pelo Exército nos primeiros dias de abril e levado
para as celas do quartel do Regimento de Obuses, onde permaneceu
por nove meses, sob as mesmas acusações que justificaram
todas as demais prisões. Foi interrogado por oficiais do
Exército e pelo delegado Veras, sendo libertado por um dos
habeas-corpus requeridos pelo deputado federal Carvalho
Neto, concedido pelo Supremo Tribunal Federal.
Eider faleceu em 27 de agosto de 1990.
JOSÉ
FERNANDES MACHADO
(Advogado, Pastor Evangélico, Juiz de Direito)
Machado, pastor evangélico, funcionário do então
Departamento do Correios e Telégrafos foi, também,
uma das maiores vítimas da perseguição do 1964.
Através de Eunice, sua viúva, registro alguns episódios
daqueles dias.
Preso pelo Exército nos primeiros dias de abril, foi levado
para o quartel do I6° Regimento de Infantaria onde permaneceu
por seis meses. Na Diretoria do então Departamento de Correios
e Telégrafos ocupava o cargo do Inspetor Regional. Em alguns
setores do então DCT havia, em 1964, delatores e caluniadores
assumidos. A vida que Machado levou na prisão é semelhante
à aqui relatada pelos outros presos.
Em um dia determinado para visitas aos presos políticos,
Eunice compareceu acompanhada por um irmão de Machado, residente
no Recife, o que tornou difícil a aproximação
com o marido pelas restrições ao acompanhante. Na
preocupação de vigia-lo esqueceram de revistar a roupa
levada para Machado. Às onze horas da noite ela foi procurada
em casa pelo tenente Calado, acompanhado por dois outros militares
quo a obrigaram a acompanhá-los. No quartel, rodearam-na
em tomo de uma mesa, para confirmar que o cunhado havia sido portador
de uma carta "de outro comunista do Recife” Como não
encontraram vestígios da carta, exigiam dela uma confirmação.
Eunice entrou em desespero, ameaçou gritar, descontrolou-se
e eles mandaram-na de volta com um motorista.
Machado foi solto por habeas-corpus, no mês de outubro.
Na ocasião de uma ação terrorista no aeroporto
do Recife, quando colocaram uma bomba que explodiu no desembarque
de alguns generais e matou um almirante, ele se encontrava naquela
cidade, participando de um congresso de igrejas evangélicas.
Regressou a Natal e foi novamente procurado por militares do Exército
e da Policia. Chegando à Secretaria de Polícia para
atender um chamado do secretário Ernâni Hugo, foi preso,
algemado e, sem nenhuma explicação, transportado de
avião para a Base Aérea do Recife. Ali foi duramente
interrogado para confessar sua participação no atentado.
Machado apresentou testemunhas da sua permanência no congresso
e os pastores assinaram termo de responsabilidade, o que permitiu
a sua liberação.
Demitido do emprego, Machado sobreviveu a muitas dificuldades econômicas,
passando a residir, com a família, em casa de parentes. Conseguiu
ajuda do professor Ulisses de Góes, que o contratou para
ensinar na Escola Técnica de Comércio, e do professor
Woden Madruga, então diretor da Escola Técnica de
Comércio “Visconde de Cairu”, que o admitiu como
professor de português. Woden conviveu alguns anos com Machado,
guarda dele boas lembranças e fala com respeito da sua competência
e responsabilidade pela formação dos alunos.
Nos anos setenta, Machado submeteu-se a concurso para professor
do Departamento de Direito da UFRN, quando obteve o primeiro lugar,
mas foi preterido e nomeado um outro candidato. Não foi o
único a ser perseguido pela direção da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, nos anos da ditadura: diversos professores,
estudantes e funcionários foram vítimas da delação
interna e responderam a processos junto à Comissão
de Investigação constituída por determinação
do reitor Onofre Lopes, através das portarias de números
57, 65 e 70, dos dias 4 e 29 de maio e 3 de junho de 1964, respectivamente.
A comissão era presidida pelo professor Genário Alves
Fonseca, tendo como membros auxiliares os professores Antônio
Pipolo, José ldelfonso Emerenciano e o capitão Hugo
Manso.
Em outro concurso para Juiz de Direito, foi aprovado e nomeado.
No livro "O Cristo do Povo", o escritor Márcio
Moreira Alves escreve sobre Machado o seguinte:
“Professor
da escola dominical, presidente por duas Vezes da Federação
da Mocidade Presbiteriana Independente do Norte, presbítero
e secretário do Conselho da igreja, queria fazer sentir
a presença de seus irmãos no grande debate social
que então se realizava e onde a única influência
cristã marcante era a dos católicos. O prefeito
de Natal, Djalma Maranhão, realizava urna administração
revolucionária, quebrando a anterior tradição
imobilista e burocrática, lançando a campanha
"De Pé no Chão Também se Aprende a
Ler" e trazendo a discussão de temas de cultura
popular para a praça pública. José Fernandes
participava desses debates - sobre arte, cinema, educação
- que semanalmente movimentavam o marasmo intelectual da pequena
capital provinciana. Em sua repartição liderava
os estudos de reivindicações salariais e na UBSPT,
União Brasileira de Servidores Postais Telegráficos,
fora eleito para o cargo de orador oficial, sendo, portanto,
incumbido de saudar as personalidades políticas que visitavam
a entidade.
As múltiplas atividades do jovem presbítero foram
devidamente anotadas pelos organismos de informação
militar que, mesmo no auge do delírio esquerdizante do
governo Goulart, sempre funcionaram na anotação
de possíveis subversivos e comunistas. Com o golpe de
1° de abril, as fichas foram imediatamente promovidas a
libelos de acusação. José Fernandes foi
preso a sete de abril, logo no primeiro bote da repressão,
ficando sete meses na cadeia.”
José
Fernandes Machado faleceu a 11 de setembro de 1982.
VULPIANO CAVALCANTI DE ARAÚJO
(Médico)
O
médico Vulpiano Cavalcanti, considerado um competente profissional,
era militante do Partido Comunista Brasileiro. Preso nos primeiros
dias de abril de 1964 foi conduzido, inicialmente, para o quartel
da Polícia Militar.
Com a experiência de outras prisões onde, inclusive,
sofreu torturas físicas ajudou os demais presos com o exemplo
de sua formidável resistência.
Após maus de oito meses de prisão, foi libertado por
habeas-corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal, requerido,
igualmente, pelo deputado federal Carvalho Neto.
Faleceu em Fortaleza, a 19 de novembro de 1988.
Exposição
de livros
As
prisões se sucediam e, na Prefeitura, vivia-se a euforia
da vitória.
Pretensos intelectuais, contando com o apoio do "Diário
de Natal" que, em 1964, tinha como superintendente o jomalista
Luís Maria Alves, fizeram, mediante critérios próprios,
a seleção dos livros apreendidos nas bibliotecas municipais
e nas residências dos presos e organizaram uma exposição
dos mesmos, na então Galeria de Arte da Praça André
de Albuquerque. O público foi mobilizado e compareceu à
Galeria para conhecer a prova do crime de subversão praticado
através das pequenas bibliotecas populares que serviam às
populações dos bairros carentes da cidade.
Pelo amplo noticiário da imprensa, pelas fotografias de meia
página dos jornais e pela leitura dos seus títulos,
podia-se observar que a maioria dos livros eram os que haviam sido
recebidos por doação da Biblioteca do Exército,
através do General Humberto Peregrino, seu então diretor.
Aqueles livros, aliás, eram raramente procurados pelos leitores
que pouco se interessavam por assuntos estritamente militares; no
entanto, foram o ponto crítico de todos os interrogatórios
a que fui submetida. Eram títulos sugestivos e direcionados
à divulgação de assuntos militares e, por causa
deles, fui acusada de que estariam sendo usados para o ensinamento
de táticas de luta armada.
A notícia que acompanhava a fotografia dos livros, publicada
pelo "O Diário de Natal", é maldosa e irresponsável:
“Alguns dos livros apreendidos na Biblioteca Popular
da Prefeitura na praça André de Albuquerque nesta
capital. As obras editadas pela Biblioteca do Exército,
na foto acima, embora de circulação autorizada
parecem demonstrar a preocupação no preparo militar
para guerrilhas.”
Nenhum outro noticiário referia-se às coleções
de escritores como José de Alencar, Monteiro Lobato, Machado
de Assis, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Castro Alves, Raquel de
Queiroz e outros que compunham as bibliotecas populares. De, aproximadamente,
oito mil livros que compunham as dez bibliotecas da Prefeitura -
três em praças públicas, uma no Centro de Formação
de Professores, um ônibus-biblioteca volante e cinco caixas-bibliotecas
com 150 livros cada, nos acampamentos escolares, mais o acervo de
reserva - selecionaram uns poucos livros que tratavam da realidade
político-social do Brasil e fundamentaram desonestamente
as acusações. Algum tempo depois, a amiga Nadja Amorim
Barreto encontrou, num salão de cabeleireiro, a esposa de
um oficial do Exército lendo, como subsídio para estudos
universitários, um livro carimbado pela Diretoria de Documentação
e Cultura e pertencente às caixas de empréstimos dos
já desativados acampamentos da campanha de alfabetização.
Era impossível acreditar que considerassem os livros como
preparação para guerrilhas apenas por ignorância,
principalmente porque alguns responsáveis pela organização
da exposição eram, na maioria, pessoas de formação
universitária e tidos como intelectuais da cidade. Estavam
todos possuídos pelo delírio do poder, perturbados
pela vibração de um patriotismo falsamente direcionado
e covardemente preocupados em agradar aos militares. Agradaram aos
militares mas destruíram, completamente, um plano cultural
que, se continuado, poderia ter modificado a lamentável e
dramática situação do analfabetismo em Natal.
Governador
regulamenta Ato Institucional n° 1 e nomeia Comissão
de Investigação
No
dia 23 de abril o jornal "A Tribuna do Norte" publicou,
na íntegra, o decreto do governador que regulamentou o Ato
Institucional n° 1, expedido pela Junta Militar que assumiu
a presidência da República, adaptando-o para a aplicação
nas leis estaduais.
Pelo mesmo decreto, o governador nomeou uma comissão de "alto
nível" para investigar atividades subversivas e antinadonais.
A referida comissão era presidida pelo então Secretário
de Justiça do Estado, Sr. Jocelin Vilar, e composta pelos
então Secretários de Estado. coronel Ulisses Cavalcanti,
da Secretaria de Segurança; Abelardo Calafange, da Secretaria
da Saúde; comandante da Polícia Militar. Coronel Sílvio
Ferreira e coronel, também da Polícia Militar, Luciano
Veras Saldanha.
Apesar do alto nível dessa comissão, o governador
do Estado importou, da Secretaria de Segurança de Pernambuco,
dois policiais especializados, um deles pelo FBI dos Estados Unidos.
e constituiu, por decreto de 17 de abril e republicado no dia 29,
mais uma Comissão de Investigações. Esta comissão,
presidida pelo delegado Carlos Moura de Morais Veras e assessorada
pelo policial José Domingos da Silva, foi designada para
“apurar com jurisdição em todo o Estado,
a prática de atos contra a segurança do país
e regime democrático com a probidade da administração
pública ou crime contra o Estado e seu patrimônio,
a ordem política e social ou atos de guerra revolucionária.”
Referendadas pelas leis de exceção, todas as comissões
trabalhavam em perfeita sintonia com os militares responsáveis
pela repressão no Estado. Necessário se faz evidenciar
a superioridade do desempenho profissional do delegado Veras sobre
todos os outros componentes das comissões civis e militares.
O encarregado do inquérito militar do Exército para
o Rio Grande do Norte, o capitão Ênio Lacerda, era
um militar temperamental e limitado intelectualmente. O delegado
Veras tomou-se, portanto, o cérebro dos interrogatórios
e enquadramento dos presos na Lei de Segurança Nacional destacando-se,
também, pelo uso da tortura psicológica.
Na imprensa local, as noticias continuavam amedrontando os perseguidos.
A “Tribuna do Norte”, de 28 de abril, publicava, em
manchete:
"COMEÇA A FUNCIONAR HOJE A COMISSÃO
QUE EXECUTARÁ ATO INSTITUCIONAL.”
Na edição de 29 de abril:
Comissão do Estado quer nomes de funcionários
subversivos: A Comissão nomeada pelo governador Aluízio
Alves para promover a execução do Ato Institucional
no Estado, reunida ontem pela segunda vez deliberou que todos
os secretários de Estado e chefes de serviços
enviarão listas completas dos funcionários para
que através dos arquivos da Secretaria de Segurança
Pública, sejam identificados os que estão comprometidos
com os movimentos subversivos e comunistas que a revolução
de l° de abril cortou. A reunião teve caráter
sigiloso e realizou-se às 17 horas na CASOL. Presente
o Secretário de Interior e Justiça, Jocelin Vilar.
Coronel Luciano Veras, Secretário de Segurança
Ulisses Cavalcanti, Secretário de Saúde Abelardo
Calafange e comandante da Polícia Militar, coronel Sílvio
Ferreira. Outros assuntos debatidos não foram tomados
públicos pelos participantes da reunião.”
A “Tribuna do Norte”, de 12 de maio, noticia:
“COMISSÃO DO ATO INSTITUCIONAL COMEÇA
A OUVIR IMPLICADOS.
A Comissão do Ato Institucional esteve reunida ontem,
mais uma vez, no Palácio da Esperança, prosseguindo
com a apuração das atividades subversivas e a
corrupção funcional dos funcionários do
Estado. Até o momento a Comissão tinha solicitado
às secretarias e departamentos do governo do Estado,
a relação dos funcionários implicados em
atos contra o regime democrático e na malversação
dos dinheiros públicos. Espera-se, na reunião
de hoje à tarde, a Comissão Institucional comece
a ouvir os primeiros implicados.”
Na
“Tribuna do Norte”, de 15 de maio, outra notícia:
“UM ADVOGADO ENXUGA MATERIAL SUBVERSIVO E OUTRO
É ESPERADO HOJE VINDO DO RECIFE.
O
presidente da Comissão de Inquérito, policial
civil advogado Carlos Veras passou o dia de ontem enxugando
material apreendido nas residências dos elementos que
se encontram presos mas esperava durante a noite, concluir o
interrogatório do líder sindical Evlim Medeiros.
Ontem à noite, também estava sendo esperado de
volta do Recife, o advogado José Domingos que também
faz parte da Comissão, que da capital pernambucana trará
elementos para ajudar a conclusão dos processos.”
“VULPIANO
CAVALCANTI. O médico Vulpiano Cavalcanti, preso no início
da semana, encontra-se detido na sala de entrada do Quartel
da Polícia Militar. Ontem recebeu dos familiares três
exemplares da obra de Shakespeare, cujo quarto centenário
de morte, o mundo comemora atualmente. Encontra-se em prisão
diferente dos demais detidos em virtude de ser cardíaco,
sempre é visto numa janela que dá para o portão
de entrada do quartel, fumando e bem disposto. O Advogado Carlos
Veras informou que as celas que se encontravam em péssimo
estado de conservação foram restauradas, inclusive
nas instalações sanitárias, frisando que
estão aparelhadas para receber novos hóspedes.”
Depoimento
na Comissão Municipal
Em
maio recebi uma intimação para depor na Prefeitura,
às vinte horas de um dia determinado. Apresento-me na hora
marcada. A comissão encontrava-se instalada no Salão
Nobre da Prefeitura, o mesmo salão onde se realizavam as
reuniões de trabalho presididas pelo prefeito Djalma Maranhão.
Fiquei muito tensa quando entrei no recinto fortemente iluminado.
Em torno de uma mesa estavam sentados os senhores Rodolfo Pereira,
presidente, e os membros que a compunham, capitão-tenente
da Marinha Humberto Romero, capitão do Exército Gerardo
Parente e o coronel da Policia Militar Severino Bezerra. Fui recebida
com indisfarçável hostilidade e desprezo. Senti-me
naturalmente acuada e desafiada. O oficial da Polícia Militar
permaneceu de cabeça baixa e em silêncio, parecendo-me
constrangido e pouco à vontade. O depoimento foi muito difícil
porque é difícil receber o preconceito jogado na cara,
como uma pedrada. Eu não estava preparada para aquele encontro
de ódio e precisei lutar muito para me defender. Envolveram-me
na agressividade, fui também agressiva quase senti-me forte.
Surpreendia-me a irresponsabilidade de fazê-los compreender
a importância dos programas culturais da Diretoria de Documentação
e Cultura - DDC. lnsistiam na acusação de que através
das bibliotecas populares iríamos preparar guerrilhas. Estavam
de posse das estatísticas de empréstimos de livros
que atingiram uma média mensal de dois mil e quinhentos em
cada Posto e não acreditavam que, sem interesses políticos
e subversivos, a DDC emprestasse livros a uma comunidade popular.
Acusaram-me, também, de haver autorizado a entrega de livros
pela Livraria Universitária, até uma certa importância
em dinheiro, a uma associação de militares da Marinha,
que havia solicitado ao prefeito a doação de alguns
livros para formação de uma pequena biblioteca. Exibiam
o ofício, através do qual eu fizera a autorização,
como se fosse um documento de subversâo política. Um
ano de rotina administrativa era transformado, de repente, em crime
contra a segurança nacional. Foi um enfrentamento desigual
e inútil. Usamos as mesmas palavras, falamos dos mesmos assuntos
mas com sentidos diferentes; não podíamos, portanto,
nos entender.
Saí do interrogatório extremamente cansada. Tentaram
esmagar a minha resistência, confundiram as minhas respostas
e usavam qualquer palavra para implicar outros companheiros. Citavam
nomes de pessoas e insistiam nas suas participações
em atos subversivos, como se dispusessem de documentos e provas.
Excetuado o coronel da Polícia Militar, foram todos muito
cruéis.
Em outras comissões pude conhecer os que não eram
cruéis mas eram despreparados. Na comissão composta
por funcionários do então Departamento de Correios
e Telégrafos, um telegrafista ficou irritado quando lhe respondi
que não me sentia na obrigação de ler todos
os livros que a DDC expunha para emprestar. Considerou-me, então,
responsável por um ato subversivo que não sabia explicar,
mas insistia que não se podia emprestar livros sem antes
havê-los lido. Argumentava sem maldade, apenas por ignorância.
Assim, eram preparados os termos de acusação. Na comissão
dos Correios e Telégrafos, apenas o presidente tinha condições
intelectuais para interrogar, mas todos o faziam e tinham as suas
conclusões equivocadas incluídas nos relatórios
de acusação.
Diretoria
de Documentação e Cultura
Em
1964, a tão questionada e perseguida Diretoria de Documentação
e Cultura da Secretaria Municipal de Educação, Cultura
e Saúde, como então se denominava, ocupava, apenas,
poucas dependências da casa da avenida Duque da Caxias, 190,
na Ribeira, onde estavam também instalados o gabinete do
secretário, as diretorias de Saúde e de Administração.
A DDC mantinha, como linha básica dos seus programas, a democratização
da cultura, até então elitizada. Assim é que,
através das Praças de Cultura, adaptação
das já existentes no Movimento de Cultura Popular do Recife
e criadas pelo professor Paulo Rosas, compostas de bibliotecas populares
com jornais murais, quadras de esporte e parques infantis, promovia
a integração com a comunidade dos bairros onde as
praças eram instaladas, já em número de três.
No centro da cidade, precisamente na praça André de
Albuquerque, a DDC mantinha uma Galeria de Arte onde eram promovidas
as exposições, uma biblioteca para leitura no próprio
local, frequentada especialmente por comerciários, uma concha
acústica para apresentações teatrais, concertos
musicais e cinema ao ar livre.
Praças de cultura com feiras de livros, arte, discos, exposições
culturais, noites de autógrafos, apresentações
musicais e folclóricas eram promovidas, anualmente, no centro
da cidade.
Como atividades permanentes da DDC havia o Teatrinho do Povo (depois
teatro "Sandoval Wanderley", na avenida Presidente Bandeira);
o Museu de Arte Popular, Hemeroteca, Setores de Pesquisa. Divulgação
Cultural e Valorização do Folclore, Promoção
de Festas Tradicionais e Folclóricas eram preparadas, ainda
que precariamente, na sede da Secretaria de Educação,
Cultura e Saúde.
Estabelecido o diálogo cultural com a comunidade, sem assistencialismo
e sem demagogia, construíamos, juntos, o sonho de integrado
com a cultura popular, principalmente nos bairros onde o povo começava
a ler e a participar das praças de cultura e esporte. Não
era por acaso que nos bairros das Rocas e Quintas, os empréstimos
de livros atingiam a média dos dois mil e quinhentos mensais,
e as promoções culturais recebiam um público
talvez nunca repetido.
Os vencedores do golpe entenderam que, através da leitura
nas bibliotecas populares, estimulava-se a preparação
de guerrilhas, apavoraram-se com os livros nas mãos do povo
e não aceitaram explicações nem defesa dos
programas culturais realizados pela DDC.
Dos livros que foram apreendidos nas bibliotecas, o então
assessor da DDC Professor Paulo de Tarso Correia de Melo, recolheu
alguns, que se encontram em seu poder, ainda com os carimbos da
DDC. Pela qualidade dos mesmos pode-se, ainda hoje, avaliar o que
eram as bibliotecas populares: “Lord Jim” (Joseph Conrad),
“Viola de Bolso” (Carlos Drummond de Andrade), “O
Moinho do Rio Floss” (George Eliot), “Judeus sem dinheiro”
(Michael Gold), “A luz da manhã” (Robert Nathan),
“Juízo Universal” (Giovanni Pappini), “Ofício
de Vagabundo”' (Vasco Pratolini), “São Bernardo”
(Graciliano Ramos), “Correio Sul”. (Saint - Exupéry),
“O advogado do diabo” (Morris West), “Maravilhas
do Conto Inglês” e "Obras-Primas do Conto Moderno”.
Governo
do Estado reafirma a sua integração com a obra revolucionária
Em
17 de maio, o jornal “Tribuna do Norte”, publicou novas
informações sobre a integração do Estado
com o regime militar:
“ALUÍZIO ALVES AFIRMA QUE A ADMINISTRAÇÃO
DO ESTADO PROSSEGUE INTEGRADA DENTRO DA OBRA REVOLUCIONÁRIA.
O governador Aluízio Alves ontem convocou o povo
através da cadeia da esperança para a conjuntura
de esforços na obra de reconstrução da
revolução, e que a sua administração
prossegue imperturbável sem ódio ou medo, levantando
o Estado do caos aonde se encontrava. O governador leu o editorial
da Tribuna do Norte de ante ontem intitulado: Reflexão
- dizendo que não perderia tempo na hora em que o país
exige serenidade e trabalho com uma oposição que
faz da palavra governo reflexo condicional associando à
palavra roubo.”
O mesmo jornal divulgou, em 24 de maio, uma entrevista do governador
Aluízio Alves concedida ao canal 6, televisão do Recife:
“REVOLUÇÃO DEVOLVEU TRANQUILIDADE
AO PAÍS E DARÁ AO POVO PAZ PERDIDA;
Entrevistado às 22 horas de ontem pelo canal 6, TV -
Rádio Clube, o governador Aluízio Alves, falando
sobre a revolução de 31 de março, disse
que a revolução devolveu a tranqüilidade
ao país, acabando com as greves, algumas deflagrada apressadamente,
outras injustas. O risco que corremos agora é o de que
a revolução seja confundida com a paz estéril.
A política do Brasil estava muito viciada, era o jogo
dos interesses entre o legislativo, executivo e judiciário,
a revolução veio para resolver tudo isto. Teremos
no governo do presidente Castelo Branco, continuou, o esforço
sério e devorado a resolução dos problemas;
não o jogo político ideológico do passado
que sob o rótulo das reformas mesclava os interesses
subalternos e antidemocráticos. Espero que a revolução
dê ao povo a paz perdida por muitos porque democracia
não é opção com uns tentando superar
os outros, mas uma forma de governo onde todos tenha as mesmas
oportunidades. A revolução ainda está na
fase policial, com o inquérito e as prisões. É
verdade que já esta semana o presidente Castelo Branco
enviará diversos projetos ao Congresso Nacional de alto
interesse para a nação. Mas ainda é cedo
para se avaliar sua importância total na vida brasileira,
afirmou.”
A 14 de julho é ainda a “Tribuna do Norte” que
destaca a atuação da Comissão de Investigação
instituída pelo govemo do Estado:
“O INQUÉRITO DE SUBVERSÃO CONTINUA
NO QUARTEL DA POLÍCIA MILlTAR.
Os inquéritos que investigam a subversão no Estado
do Rio Giande do Noite continuarão funcionando em três
locais distintos: Quartel da Polícia Militar. Quartel
do 16 RI e Quartel do RO. O advogado Carlos Veras, presidente
do chamado Inquérito da subversão, com sede no
Quartel da Polícia Militar, informou à Tribuna
do Norte que: Por enquanto aquele inquérito prosseguirá
na Polícia Militar embora as suas atividades contem com
a colaboração dos outros dois, que são
dirigidos por autoridades militares.”
Continuam
as prisões
MOACYR
DE GÓES
(Advogado, Professor Aposentado da UFRN e UFRJ, Procurador Aposentado
da Prefeitura Municipal de Natal, ex-Secretário Municipal
de Educação de Natal e do Rio de Janeiro, Escritor)
De 2 de abril e por uns dez dias Moacyr esteve na clandestinidade.
Depois, foi a fase da prisão domiciliar. O cárcere
mesmo começou no dia 26 de maio, na Polícia Militar,
e terminou no dia 15 de novembro de 1964, no 16° Regimento de
Infantaria, por força de habeas-corpus do Supremo Tribunal
Federal. lsto está contado no seu livro "Sem Paisagem
- Memórias da Prisão." Não vale a pena
repetir, A sua contribuição para este relato afasta-se
da narrativa e propôs uma reflexão que se segue:
“Aprendi em 1964, que o mundo dos homens se divide
em dois: o Reino da Liberdade e o Reino da Opressão.
E ainda: poucos são os homens que compartilham do Reino
da Liberdade, enquanto o Reino da Opressão é densamente
povoado. E mais: que os homens que vivem subjugados no Reino
da Opressão, quando politizados, organizam-se e lutam
para destruir as cadeias que os deixam submetidos.
Convivi com homens, em 1964, que tinham os olhos postos no Reino
da Liberdade, não somente porque a prisão política
lhes tirara o direito constitucional de ir e vir. Eles sabiam
- e com eles eu aprendi - que a questão da liberdade
é muito mais complexa.
Claro: no cotidiano de um tempo que parece parado, as grades
que nos roubam a paisagem e a convivência dos entes queridos
são intoleráveis. Claro: ali a tortura se conjuga
com o medo porque não podemos saber, antecipadamente,
quais são os próprios limites - afinal somos humanos.
Claro: é inadmissível aceitar a legitimidade do
carcereiro. Assim a prisão política fascista é
o ilógico, o antinatural, as violências física
e mental instaladas, irredutíveis.
Mas, cuidado com as reflexões apressadas e superficiais
ou, como dizia Gide: "não me entendam tão
depressa." Aqueles homens sabem que não basta transpor
aquelas grades para colher o Reino da Liberdade. A conquista
do direito de ir e vir é fundamental e importantíssima.
Todos lutam por ela, mas ela só não significa
a vitória sobre o Reino da Opressão. Por isso
é que dizia, um pouco atrás, que a liberdade é
uma questão complexa.
O que é humano não me é estranho - esta
lição de Marx foi aprendida na carne. As calejadas
mãos dos trabalhadores do cais, os pés gretados
dos operários das salinas, os ombros curvos dos camponeses,
os olhos perscrutadores dos intelectuais, a palavra solta dos
estudantes; e mais: os silêncios, a espera, a solidão,
as noites indormidas, o medo, a saudade, a solidariedade, o
riso como arma de defesa todo esse universo vivido com meus
companheiros no cárcere me ensinou muitas coisas. Inclusive
que a Liberdade, como Javé, "tem muitas moradas.”
Ultrapassadas as grades, restou um longo caminho a percorrer
caminho que tem sido partilhado com outros homens subjugados
pelo Reino da Opressão e jamais solitário. Peregrino
em demanda da Terra da Promissão, do Reino da Liberdade;
sei que a utopia está ao alcance das mãos - desde
que elas coletiva e solidariamente - se juntem.
Na América Latina, a chegada do Reino da Liberdade (inclusive
para os egressos dos cárceres de 1964) passará,
simbolicamente, pela travessia do Mar Vermelho e do Rio Jordão
e pela queda de Jericó, a cidade fundada sobre a injustiça,
isto é, o Reino da Opressão.
Nestes tempos de travessia é preciso abrir as cadeias
que se chamam: fome, miséria, doença endêmica,
analfabetismo, expropriação do trabalho alheio,
alienação, injustiça, ressentimento, desamor,
desespero.
Aí chegaremos ao Reino da Liberdade, também chamado
Reino da Felicidade. Então, construiremos a paz.
LEONARDO BEZERRA
(Jornalista, Geógrafo, ex-Professor da então Faculdade
de Filosofia, ex-Presidente da Associação Norte-Rio-Grandense
de Imprensa)
Jornalista e intelectual de vasta cultura, Leonardo escrevia diariamente
uma coluna política no jornal "O Diário de Natal",
onde comentava com inteligência e fina ironia os acontecimentos
locais e nacionais.
Para fazê-lo calar, aproveitaram a onda das prisões
por “subversão” e não respeitaram sequer
a doença que o atormentava diabetes crônica e grave
que o levou, tempos depois, à morte. Preso pelos delegados
da Comissão Estadual de Investigações, permaneceu
no quartel da Polícia Militar por mais de vinte dias, sendo
liberado em estado de quase coma.
A prisão de Leonardo foi o absurdo dos absurdos, mesmo para
um regime de exceção. Seu nome sequer constou no relatório
dos delegados Veras e Domingos, apesar de haver sido interrogado
pelo Veras. Não houve acusação A única
referência da sua passagem pelo cárcere encontra-se
na nota do jornal “A Tribuna do Norte”, de 15 de maio:
"LEONARDO
O jornalista Leonardo Bezerra, preso ante ontem, teve apreendido
em sua residência material literário que provoca
a atuação como elemento do partido comunista brasileiro.
Apesar de estar incomunicável, recebeu visita de familiares.”
Ah,
Leonardo! que grandeza você teve e que belo exemplo nos legou,
perdoando - como o fez - os algozes, e rezando por eles!
JOSEMÁ AZEVEDO
(Engenheiro Civil e Sanitarista, ex-Presidente da Companhia de Águas
e Esgotos do RN, ex-Secretário de Serviços Urbanos
da Prefeitura de Natal, Empresário)
Em 17 de junho o jornal “A Tribuna do Norte” divulgou
a prisão do universitário Josemá Azevedo, com
a seguinte notícia:
“ESTUDANTE DE ENGENHARIA, LIGADO AO EX-PREFEITO
FOI PRESO ONTEM.
O estudante de engenharia Josemá Azevedo, que fazia parte
do staf do ex-prefeito Djalma Maranhão. na campanha De
Pé no Chão Também se Aprende a Ler, elemento
ligado aos meios sindicais e estudantis, foi detido ontem, pela
comissão que assessora o inquérito da subversão,
ficando preso no quartel da Policia Militar. Josemá Azevedo
é apontado como uma das peças-chave do chamado
movimento subversivo em Natal pelas suas armações
nos setores de alfabetização e conscientização,
que tinha a cobertura do prefeito Djalma Maranhão.”
Na campanha "De Pé no Chão Também se Aprende
a Ler", Josemá era o responsável pelos Círculos
de Cultura, como eram chamadas as classes de alfabetização
que aplicavam o método de alfabetização de
adultos do professor Paulo Freire, em Natal. Ele lembra um episódio
que testemunhou, em um dos Círculos de Cultura, ocasião
em que uma aluna, de idade aproximada de 50 anos, empregada doméstica
do ex-governador Cortez Pereira, com menos de quarenta horas-aula,
entregou-lhe um bilhete para o prefeito, afirmando que, apesar de
ser adversária dele, mandava aquele bilhete de agradecimento
pela oportunidade que lhe era oferecida para, enfim, aprender a
ler. Assessorava, ainda, o programa de interiorização
da campanha "De Pé No Chão Também se Aprende
a Ler", que começava a ser levada a outros municípios,
através de convênios entre as prefeituras de Natal
e do interior do Estado.
Josemá teve destacada atuação na política
estudantil. Como membro do Diretório Estudantil da Faculdade
de Engenharia, participou de congressos e representou o Estado na
assembléia nacional da União Nacional de Estudantes,
quando foi decidida a greve nacional na luta pela representação
de um terço de estudantes nos conselhos universitários,
No dia 3l de março de 1964, encontrava-se em Bem Horizonte
representando o Movimento de Ação Popular do Estado
(AP) em reunião nacional naquele Estado. Voltou a Natal onde
ficou, sem ser molestado, até o dia 17 de junho, quando foi
retirado de uma sala de aula pelos auxiliares do delegado Veras
e colocado em uma cela de segurança máxima, que havia
sido construída, no quartel da Polícia Militar, destinada
a presos de alta periculosidade. A cela possuía um metro
e cinqüenta centímetros de diâmetro e o preso
media um metro e setenta centímetros de estatura. Naquela
cela de castigo substituiu o bancário Campelo, um dos prisioneiros
mais torturados do Estado. Não lembra quantos dias passou
ali. Recorda, apenas, que os demais companheiros preocupavam-se
em conforta-lo. Ele os ouvia mas não conseguia ver ninguém.
Apesar de muito jovem ou até por isso, Josemá reagiu
com irreverência à situação e não
lembra o medo e a solidão por que passou. Do depoimento recorda
apenas que a sua atividade estudantil foi pouco questionada, mas
foi duramente interrogado sobre as suas atividades na campanha “De
Pé no Chão Também se Aprende a Ler”.
Comenta que conseguia reprimir na memória o sofrimento e
a insegurança por que passava, transformando-os numa úlcera
gástrica que tratava no ambulatório do quartel para
onde era levado, algemado e escoltado, quando necessitava de atendimento
médico. Afirma que reprimia tudo para poder viver e, ainda
hoje, passados muitos anos, sente dificuldades para seqüenciar
a sua história. Da prisão prefere o silêncio.
NEI LEANDRO DE CASTRO
(Advogado, Escritor, Poeta, Publicitário)
O poeta e escritor Nei Leandro de Castro foi preso em fins de junho
de 1964. À hora do almoço, dois agentes da repressão
entraram em sua residência e convidaram-no a prestar um depoimento
no quartel da Polícia Militar. Um dos agentes, ele já
conhecia: era lvan Benigno. informante infiltrado nos meios universitários
que dedurou e ajudou a prender dezenas de estudantes.
No quartel colocaram-no numa solitária, onde ficou incomunicável
durante dois dias. Na noite do primeiro dia recebeu do carcereiro
um maço de cigarros fechado; dentro dele, para sua surpresa,
havia uma mensagem de apoio de outros companheiros de prisão.
No terceiro dia foi transferido para um pavilhão do mesmo
quartel, onde conviveu com Vulpiano Cavalcanti. Djalma Maranhão,
Luiz Gonzaga de Souza, Aldo Tinoco, Carlos Alberto Galvão,
Hélio Vasconcelos, Moacyr de Góes, Paulo e Guaracy
de Oliveira. Josemá Azevedo e Geniberto Campos. Entre eles,
encontrava-se um velho camponês, cujo nome não lembra,
porém jamais pôde esquecer as marcas de tortura na
parte interna de suas coxas.
Certa madrugada o delegado Veras e o capitão Domingos mandaram
buscá-lo para uma sessão de interrogatório.
Nei ficou numa sala vazia e escura, sentado num tamborete, uma luz
muito forte contra os olhos. Os dois circulavam em sua volta fazendo
ameaças e encenações. Gritavam, crivavam de
perguntas, exibiam os livros “subversivos” que havia
escrito: “Voz Geral”, poesia e “Revolução
e Contra-Revolução”, peça de teatro.
Quando lhe pediram nomes de comunistas de Natal respondeu o que
haviam antes na prisão “os comunistas são Vulpiano
Cavalcanti e Luiz Maranhão”. O capitão Domingos
baixou-lhe a mão com força nas costas e gritou “Não
queira ser mais imbecil do que você já é, porra!”
Os interrogatórios não tinham subsídios nem
informações que pudessem incriminá-lo. Não
sabiam que ele era candidato a presidente do Diretório Acadêmico
“Amaro Cavalcanti", da então Faculdade de Direito
da UFRN, com o apoio dos comunistas e da esquerda católica.
Não sabiam que ele havia ingressado, às vésperas
do golpe, na Ação Popular, formando a diretoria natalense,
com Moacyr de Góes, Geniberto Campos e Josemá Azevedo.
O livro de poemas e a peça de teatro que permaneceu inédita,
dela não restando uma só cópia, foram insuficientes
para o seu indiciamento, o que não o livrou das três
semanas de prisão e demissão do cargo que exercia
na Secretaria de Estado das Finanças, por ato do governador
Aluízio Alves.
Em uma madrugada, o capitão Domingos fez com Nei os costumeiros
exercícios de tortura psicológica; levou-o do quartel
onde se encontrava e simulou que o estava transferindo para o 16°
Regimento de Infantaria. Chegando ao pátio daquele quartel,
alegou que as celas estavam lotadas e ordenou ao motorista que tomasse
o caminho do aeroporto, dizendo que iria levá-lo para Fernando
de Noronha. Perguntou, então, se Nei tinha algum parente
que residisse perto, de quem pudesse se despedir. Respondeu que
sim e dirigiram-se para a casa do irmão Airton de Castro,
que morava numa rua transversal. Eram 4 horas da manhã quando
bateram à porta da casa de Airton; capitão, na farsa
de seu sadismo, assistiu ao encontro emocionado dos irmãos
e ao forte abraço de despedida. De repente, jogou a valise
de Nei no chão e disse para Airton: "Toma conta de meu
irmão" Retirou-se sem explicações. Nei
ficou em liberdade.
A notícia da prisão de Nei foi publicada um "A
Tribuna do Norte". de 11 de julho:
“INQUÉRITO
DA UNIVERSIDADE CONCLUÍDO COM PRISÃO DE POETA.
Com a prisão do acadêmico e poeta Nei Leandro de
Castro encerrou-se, quarta-feira, o inquérito da Universidade,
instaurado para apurar atividades subversivas entre os professores
e alunos das escolas superiores de Natal. A acusação
feita contra o poeta Nei Leandro de Castro foi a de ter publicado
um livro de poemas “Voz Geral”, onde externa sua
ideologia através do combate aos patrões, e de
um canto de louvor a empregados e ser autor de uma peça
teatral considerada pela Comissão de Inquérito
altamente comunizante.”
Os
que não foram presos
MARIA
CONCEIÇÃO PINTO DE GÓES
(Mestre em História, Professora da UFRJ, ex-Sub-Reitora de
Graduação da UFRJ, Pesquisadora, Escritora)
Convidada a documentar a experiência vivida em 1964, Conceição
declarou textualmente o seguinte:
“O golpe militar de 1964, como dizia um amigo, foi
um incêndio em nossas vidas. Tanto ao nível pessoal
quanto ao nível político. Colocamos os amigos
em uma peneira, muitos não passaram. Mas os que passaram
estão fortalecidos por uma amizade indescritível.
Ainda hoje não sei o que foi mais difícil, se
ver os parentes e amigos serem arrancados de suas casas, ouvir
as ameaças de prisão, ter que responder às
perguntas das crianças, pôr a mão no ventre
e com doce ternura acalmar o filho que se enrijecia como cristal
de pedra em sua fragilidade de suportar um mundo que lhe vinha
ameaçador através do cordão umbilical,
engolir o choro e comparecer diante de uma comissão de
inquérito para ouvir ameaças e idiotices. Mas,
quando me vêm essas lembranças que são dolorosas,
eu sinto mais forte a presença de amigos como Roberto
Furtado, Paulo Rosas, Aécio Aquino, Argentina Rosas,
Terezinha Aquino, Bernadete e Cláudio Ramalho, Leide
Moraes, José Pacheco e Nenen, Sileno Ribeiro de Paiva
e Cristina, a presença solidária da familia, irmãos
e cunhados. Mas devo destacar, entre todos. Leônidas,
mais carinhosamente Leon, meu irmão que, em sua conhecida
generosidade, jogou tudo para o alto e grudou em mim. De manhã,
bem cedinho, ao som do "bigorrilho", lá íamos
nós procurar notícias, pegar atestados das figuras
importantes da cidade, políticos ou intelectuais, que
afirmassem que o trabalho da Prefeitura não era subversivo.
Leon sempre soube que aquilo era inútil mas me deixava
calma e com sensação de estar ajudando aos presos.
Nem sempre fomos bem-sucedidos. Alguns intelectuais que freqüentavam
a casa de Djalma Maranhão e os palanques da Prefeitura
recusavam-se a atestar alegando não conhecerem a fundo
os problemas da Prefeitura. Foi assim com Luís da Câmara
Cascudo, quando pedi-lhe um depoimento sobre o trabalho cultural
da Diretoria de Documentação e Cultura, com o
qual tantas vezes havia colaborado.
Leon acompanhou-me à Prefeitura onde prestei depoimentos
à Comissão de Inquérito que apurava a “subversão”
na área do municipio de Natal. Era noite e eu tinha muito
sono. Na entrada encontrei o coronel Mário Cabral, da
Policia Militar, que era amigo de Djalma. Ele tentava me orientar:
"Diga somente sim ou não. " A acusação,
até hoje, é para mim uma incógnita. Não
sei se me acusavam de participar de discussões em sindicatos,
de ser casada com Moacyr de Góes, de ser vice-diretora
do Ginásio Municipal, de ter assistido as discussões
da Cartilha de Alfabetização de Adultos, da criação
de Comitês Nacionalistas e, finalmente, de ajudar, ultimamente,
as mulheres de outros presos. Enfim, o Dr. Otto de Brito Guerra
escreveu uma brilhante defesa e me deixaram com a recomendação
de ficar quieta. Assim, às pessoas que me procuravam
eu sugeria que procurassem D. Eugênio Sales, arcebispo
de Natal.
Nem sei quantas vezes fui ao Recife, em busca de contatos. Tinha
sempre a sensação de carregar água num
cesto. Mas, Leon e eu nos divertimos algumas vezes. Lembro um
dia em que foi celebrado um Te-Deum, quando encontramos uma
antiga professora, portando uma bandeira nacional e uma fita
de filha de Maria, tiramos um “fino” com o carro,a
mulher com bastante agilidade subiu a calçada sem entender
os nossos gritos de: "Sai da frente, maluca!" Outras
horas em que era impossível não se ter esperanças,
conversara com Dona Jacira Furtado, uma mulher absolutamente
extraordinária, honesta, sincera, que contava as suas
experiências de 1935 com inteligência e bom humor.
E houve um momento de grande felicidade, o nascimento de Leon,
meu filho. Dr. Leide e Leon, meu irmão, carinhosos e
comovidos. A ausência do pai já anunciada ameaçadoramente
pelo Veras e pelo capitão Lacerda, quando diziam: “Prepare-se
para ter o filho sozinha."
O mais difícil estava por vir para mim. Sair de Natal
e deixar meus filhos, um com apenas três meses. Isso foi
demais. Uma saudade nunca mais curada. Ainda vejo os seus rostinhos
contraídos, no momento de despedida e aquela sensação
que podia ser a última vez.
TEREZA BRAGA
(Advogada, Vice-Presidente da Comissão de Defesa do Menor,
ex-advogada da Comissão de Justiça e Paz da Paraíba)
BERENICE FREITAS
(Advogada, escritora)
Em
1964, a advogada Tereza Braga era ainda universitária. Conforme
relata, ficou impressionada com o processo cultural deflagrado em
Natal, pelo então prefeito Djalma Maranhão. Como universitária,
engajou-se na luta estudantil, conheceu o professor Luiz Maranhão,
de quem se tornou amiga, filiou-se à União Nacional
de Estudantes e ingressou no Partido Comunista Brasileiro, exercendo
a militância junto à classe operária e ferroviária.
Na semana anterior ao golpe militar, Luiz Maranhão fez-lhe
a seguinte advertência: “Tereza, você se prepare.
Você é tão criança e está acontecendo
uma coisa gravíssima: o produto interno bruto zerou. Há
uma cumplicidade entre as forças de extrema esquerda e extrema
direita. Nenhum país resiste com o PIB a zero e as greves
que se fazem estão empurrando o Brasil para um golpe de extrema
direita.” Tereza não se preparou, não se tocou
nem mesmo com o susto que tomou quando, na noite escura de 31 de
março, descendo do carro de Paulo Oliveira, na Praia do Meio,
em frente à residência do médico Vulpiano Cavalcanti,
pisou num corpo estendido sobre a calçada, verificando que
se tratava de um militar em exercício de treinamento, Pelo
menos, foi o que supôs, pois muitos outros militares encontravam-se
estendidos sobre as calçadas que, àquela época,
eram quase desertas.
Na manhã de 1° de abril, ouviu, através de um
rádio, a leitura da nota oficial do prefeito Djalma Maranhão,
em defesa da democracia e denominando a prefeitura "QG da Legalidade".
Colocou na bolsa uma escova de dentes e dirigiu-se à prefeitura,
onde se encontrava, à noite, quando sofreu o impacto da invasão
pelas tropas militares. Tereza lembrou aquela noite com certo nervosismo,
relatou que estava sentada na ante-sala do gabinete do prefeito,
conversando com Berenice Freitas. quando ouviu os passos fortes
e cadenciados da patrulha do Exército, subindo os degraus
da escada. Os militares entraram gritando: “Pra fora, cambada
de comunistas filhos da puta!” Com o susto, Tereza levantou-se.
Um militar obrigou-a a sentar e proibiu que saísse do lugar.
Ficou sentada com Berenice ouvindo os gritos dos militares na invasão
do gabinete. Viu um oficial sair, levando pela gola do paletó
o sindicalista Evlim Medeiros. Como todos os demais, as duas jovens
universitárias foram expulsas da prefeitura, sob a mira das
metralhadoras, em seguida levadas pelo amigo Yaponi Galvão
para uma residência, onde passaram a noite sem, no entanto,
conseguirem dormir, pois a dona da casa sofria de delírios
por trauma da intentona comunista de 1935 e gritava: "Os comunistas
estão chegando! Os comunistas tomaram Natal!" Não
estivessem com tanto medo, poderiam ter se divertido com a coincidência
de humor negro.
No dia seguinte, Tereza e Berenice tentaram articular-se com os
companheiros da Rede Ferroviária mas foram informadas de
que estavam sendo procuradas por uma patrulha do Exército,
orientada pelo engenheiro daquela repartição Marco
Aurélio Cavalcanti de Albuquerque. Escaparam com a ajuda
de uma senhora humilde, auxiliar do Patronato das Rocas e do amigo
Querubino Procópio de Moura, que as levou para a granja de
outro amigo.
Do esconderijo na granja, seguiram para a cidade paraibana de Sapé,
à procura dos camponeses do partido comunista que, supunham,
estariam resistindo ao golpe militar. Desamparadas e desinformadas,
encontraram o partido desarticulado, os companheiros presos ou desaparecidos.
Desesperançadas e sem ajuda, deixaram Sapé e seguiram
para Campina Grande, onde Tereza oxigenou os cabelos, passou a chamar-se
Raquel e viajaram, ela e Berenice, para refugiarem-se em Fortaleza.
Tereza comenta, graciosamente, que foi o "Sancho Pança
natalense de 1964." Em Fortaleza foi descoberta por um companheiro
de partido, que a reconheceu na saída de um cinema e gritou
o seu nome verdadeiro. Enfrentando todas as dificuldades previsíveis
àquela época, fugiram para o Rio de Janeiro, onde
conseguiram trabalhar no comércio. Lá, Berenice asilou-se
na Embaixada do Panamá. Tereza voltou para Campina Grande,
onde permaneceu até conseguir habeas-corpus, para responder
o processo em liberdade, em Natal. No 16° Regimento de Infantaria,
quando foi interrogada pelo capitão Ênio Lacerda, sofreu
ameaças assustadoras; o capitão determinou que os
auxiliares dele se retirassem, pois o que iria acontecer com ela
não precisava de testemunha. Os auxiliares retiraram-se,
mas ele apenas continuou, aos gritos, o interrogatório, sentado
à sua frente, joelho com joelho, batendo com um cassetete
em uma das mãos. A sessão foi longa exaustiva.
Novo habeas-corpus foi requerido pelo advogado Carlos Varela
Barca, concedido pela unanimidade do Superior Tribunal Militar.
Assim, livrou-se, definitivamente, do processo. Tereza concluiu
a entrevista referindo-se aos companheiros mortos e ao medo que
aos poucos, foi possuindo as pessoas que fugiam, perseguidas pela
ditadura. Falou, pausadamente: "Já não éramos
seres humanos, éramos ratos escondidos"
Os episódios mais dramáticos que viveu são
narrados por ela com incrível reserva de resistência
e a mesma saudável alegria que sempre a caracterizou. Lembrou,
por fim, uma noite em que estava escondida no Rio de Janeiro, juntamente
com Berenice, debaixo de um grande temporal, quando tocaram a cigarra
do quarto onde moravam. Observou, pelo visor, que era um militar.
Apavoradas, combinaram abrir a porta e gritar mas, ao fazê-lo,
o medo foi tamanho que emudeceram. O militar queria, apenas, retira-las
do prédio, ameaçado de desabamento...
Tereza concluiu a entrevista falando do poeta Sanderson Negreiros
e da solidariedade por ele prestada a companheiros que se encontravam
no Rio de Janeiro, quando o poeta, em 1965, trabalhava na revista
"Manchete". Sanderson, em Natal, respondeu a inquérito
na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a acusação
de haver criticado o regime militar.
GILENO GUANABARA
(Advogado, Conselheiro da Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil
no RN, Procurador Municipal, ex-Secretário Municipal de Cultura)
O advogado Gileno Guanabara, em 1964, presidia o diretório
estudantil "Celestino Pimentel" do Atheneu Norte-Rio-Grandense.
Convidado a participar das manifestações de repúdio
pela visita do embaixador americano Lincoln Gordon ao Estado, que
era, também, representante do programa de distribuição
de dólares na América Latina, denominado "Aliança
Para O Progresso", assinou um manifesto em nome dos estudantes
e despertou para a luta em defesa da soberania nacional.
Engajando-se
na política, convivendo e admirando o professor Luiz Maranhão
Filho, filiou-se ao Partido Comunista. Como assessor do gabinete
do então secretário municipal de educação
e cultura, professor Moacyr de Góes, conheceu a campanha
"De Pé no Chão Também se Aprende a Ler"
e assistiu às reuniões de trabalho, com a presença
do prefeito Djalma Maranhão e responsáveis pela campanha.
Sua militância política era, no entanto, exercida no
meio estudantil secundarista.
Na manhã de primeiro de abril, já deflagrado o golpe
militar, promoveu, com os estudantes do Atheneu, um ato público,
talvez o único que aconteceu naquele dia em Natal, e levou
os estudantes em passeata até a prefeitura municipal, já
denominada pelo prefeito, "QG da Legalidade". Na prefeitura,
os estudantes dispersaram-se, sem incidentes.
Encontrava-se no gabinete do prefeito, quando aconteceu a invasão
pelo Exército. Ficou muito assustado e espantado por ver
um oficial do Exército gritar "filhos da puta"
para todos os presentes, inclusive senhoras.
Com a prisão de Djalma logo no dia seguinte, Gileno tratou
de se proteger e foi levado pela família para a cidade do
Recife, onde ficou por seis meses vivendo, ainda adolescente, o
sobressalto de ficar escondido para escapar da prisão militar
em uma crise política que não podia, ainda, entender.
Voltando a Natal, matriculou-se novamente no Atheneu. No início
de 1965, foi levado de sua residência por oficiais do Exército,
para o 16° Regimento de Infantaria, onde foi interrogado durante
oito horas seguidas e liberado.
Denunciado pela Auditoria Militar do Recife no mesma processo em
que estavam outros estudantes, entre eles Marcos Guerra, Danilo
Bessa, Geniberto Campos, lvan Sérgio e Esdras Alves, foi
excluído do mesmo, por um habeas-corpus, requerido pelo professor
Otto de Brito Guerra, em benefício de Marcos, seu filho,
e que, por extensão, beneficiou os demais, por inépcia
da denúncia.
Como todos os indiciados, Gileno foi também marcado pela
perseguição e pela discriminação profissional
e social nos vinte anos da ditadura militar.
NATANIAS
VON SHOSTEN
(Advogado, Procurador autárquica federal aposentado, ex-Secretário
Estadual de Planejamento, segundo suplente de Senador pelo PMDB)
O advogado Natanias von Shosten, líder estudantil nos anos
sessenta e secretário da União Nacional de Estudantes
por um ano, exerceu, com vinte e dois anos de idade, o cargo de
chefe de gabinete do prefeito Djalma Maranhão, no período
de 1962 a janeiro de 1963, afastando-se da SUDENE passando a residir
no Recife, onde se encontrava quando aconteceu o golpe militar.
Noivo de Sacha, filha do líder comunista Hiram Pereira, político
natalense com militância no Estado do Pernambuco, sofreu o
drama da família por sessenta dias quartéis do Recife,
pressionando para descobrir onde se encontrava o sogro. Hiram era
o responsável pelo setor gráfico do Partido Comunista
Brasileiro e conseguiu viver na clandestinidade até o ano
de 1965, quando for preso no Estado de São Paulo, onde desapareceu.
Saindo da prisão, Natanias enfrentou a perseguição
política na SUDENE, de onde foi demitido. Com outros companheiros,
foi processado e denunciado por haver participado de uma articulação
de líderes do PCB, por cujo processo esteve preso por mais
sete dias. Solto para responder o processo em liberdade, transferiu-se
para o Estado de São Paulo. Falando dos sete dias de prisão
por haver participado de uma reunião comunista, lembrou o
absurdo das prisões dos companheiros de Natal que, sem nenhuma
acusação formal e sem atos condenatórios apresentados
nos processos, ficaram meses e meses nas celas dos quartéis.
Apesar de toda a competência técnica. Natanias teve
a vida profissional desarticulada por muitos anos, durante a ditadura
militar.
No mês de setembro, quando ainda se encontrava no Recife,
foi informado por uma estratégia de medicina que Djalma Maranhão
encontrava-se doente, no Hospital Geral do Exército. Através
de uma irmã, iniciou contato com o ex-prefeito. a quem deu
a possível assistência.
Em novembro Djalma conseguiu habeas-corpus e mandou chamá-lo.
Com a esposa Sacha foi em busca do amigo, cujo encontro ele comenta
que foi muito afetivo e alegre. Djalma pediu que ele procurasse
o advogado Roberto Furtado e tentasse ajudar os demais presos de
Natal. Em São Paulo, recebia notícias de Djalma através
de brasileiros que passavam por Montevideo. A última notícia
chegou através de um cartão, que ele diz ter sido
comovente, onde Djalma, cheio de saudade, considerava-o “irmão
mais velho do filho, Marcos.” Em São Paulo, Natanias
mantinha-se informado sobre a tragédia da tortura e o desaparecimento
nos quartéis dos diversos presos políticos. Consciente
da dignidade dos perseguidos de 1964, fala da experiência
humana dolorosa de “alguns momentos em que se pensa que se
vai partir, romper, despedaçar.” E, também,
da muita beleza humana e solidariedade que compensava a degradação
de tantas outras pessoas fracas e acovardadas.
Últimas
prisões
MARIA
LALY CARNEIRO (MEIGNANT)
(Médica do Hospital Saint-Anne em Paris, Chefe do Serviço
de Anestesia e Reanimação do mesmo Hospital, Membro
da Academia Mundial de Saúde, Comendadora da Cruz de Malta
por trabalhos científicos)
MARGARIDA DE JESUS CORTÊS
(Mestre em Pedagogia, Professora da UFRN, ex-Diretora do Centro
de Formação de Professores da Campanha "De Pé
no Chão Também se Aprende a Ler")
MARIA DIVA DA SALETE LUCENA
(Licenciada em História. ex-Professora do Atheneu e do Ginásio
Municipal de Natal, Consultora de Empresas, Escritora)
MAILDE FERREIRA PINTO (GALVÃO)
(Ex-Diretora da Diretoria de Documentação e Cultura
da Prefeitura Municipal de Natal, ex-Funcionária do Departamento
de Correios e Telégrafos, ex-Chefe de Gabinete da Secretaria
Estadual de Saúde, Chefe de Gabinete da Secretaria de Trabalho
e Ação Social)
Em um dia de junho, um recado do jornalista Leonardo Bezerra, que
acabava de ser libertado da prisão do quartel da Militar,
acometido que fora por uma grave crise de diabetes. O recado dizia
que precisava encontrar-me com urgência, em lugar discreto
e seguro para os dois. Meu irmão Brígido, responsável
pelo contato, levou-me, à noite, ao encontro que aconteceu
dentro de um automóvel.
Leonardo chegou ao local determinado trazido por um médico,
seu amigo. Para diminuir a seriedade do encontro começou
dizendo que eu estava ótima e era uma das figuras mais queridas
pelos "homens dos interrogatórios...” Não
entendi, de início, a insinuação ou não
quis entender que o comentário disfarçava um aviso.
Aos poucos, foi revelando que alguns dos presos haviam informado
que, nos interrogatórios feitos pela comissão do delegado
Veras, indagavam insistentemente sobre as minhas atividades como
Diretora de Cultura e e que, seguramente, estavam me vigiando.
Fácil era concluir que se fechava o cerco em tomo de mim
e que era iminente a minha prisão. É impossível
explicar o que senti. Apesar da delicadeza com que Leonardo me preparava
para o momento da prisão eu me sentia flutuar entre o medo
e o espanto, como nos pesadelos. Lembro que a noite era de inverno,
estava fria e úmida; acho que tremi. Sentia muito medo; medo
do desconhecido, da prisão militar, medo de perder a liberdade,
da noite, medo de perder a mim mesma. Leonardo continuava explicando
sobre os cuidados que deveria tomar quando me levassem para os interrogatórios.
Teria que manter a calma. Cada palavra ou cada gesto poderiam me
livrar ou condenar. Sugeriu cuidado especial com o delegado Veras,
um policial treinado pelo FBI, famoso pela tortura psicológica
que costumava usar nos interrogatórios. Apenas Leonardo falava.
Naquele momento tudo o que eu queria era poder fugir daquela noite
e sumir na escuridão. Ali no carro eu ainda me pertencia
mas não podia saber por quanto tempo. Desejei o anonimato,
que não me odiassem, não me procurassem, não
me perseguissem. Era o desejo infantil da minha fragilidade.
Despedi-me de Leonardo com emoção e tristeza. Ele
saiu em outro carro e nunca pude lhe dizer o quanto as suas recomendações
foram importantes nos meus dias de prisioneira.
Nada comentei com a família sobre o ocorrido, nem mesmo com
a minha filha. Não tive coragem de antecipar-lhes o sofrimento.
Tomei algumas providências domésticas, coloquei na
bolsa alguns pertences, comprimidos de tranqüilizantes e aguardei.
Não foi preciso aguardar muito. Poucos dias depois, 19 de
junho, mais ou menos às 12 horas, a kombi do delegado Veras
subiu a calçada da nossa casa, parando junto à porta
principal. Dela desceu o motorista e funcionário do Estado,
agente do Departamento de Ordem Pública e Social, Sr. Pedro
Vilela Cid. Entrou sem licença. informando que fora me apanhar
para depor com o delegado Veras porta sem olhar para as pessoas
que se encontravam na sala.
Sem despedida e sem palavras dirigi-me à kombi e saímos.
Eu tinha consciência de que a despedida ou o toque de um abraço
me enfraqueceria. Lembro que na sala deixei os meus pais e uma irmã.
Ainda ouvi o meu pai indagando para onde me levaram mas o motorista
não se dignou sequer a olhar.
Ao meio-dia, passando pelas ruas da cidade quase deserta, eu me
indagava quando voltaria a caminhar livremente por elas. O carro
rodava sem pressa e nenhum pensamento especial me chegava, nenhuma
lembrança. De repente, o vazio mental. Depois, a minha filha
doendo em mim.
Chegamos à residência de Maria Diva da Salete Lucena
que foi, igualmente, convocada para prestar depoimento e recolhida
da mesma forma. Diva não percebeu logo que estava prisioneira.
Avisei- lhe que aquela convocação significava a nossa
prisão; ficou muito pálida e não respondeu.
O motorista, no entanto, insistia que não estava nos prendendo:
estava nos levando para prestar depoimento.
Conduzindo Diva que se refazia do choque, passamos pela avenida
Alexandrino de Alencar onde, em rua paralela, residia Leonardo Bezerra.
Pedi ao motorista que entrasse naquela rua e ele, inexplicavelmente,
atendeu. Passando em frente à casa de Leonardo pedi ao motorista
que parasse e ele, mais inexplicavelmente ainda, atendeu. Gritei
pelo nome de Leonardo e avisei que estava sendo levada para a prisão.
Com a surpresa, o motorista reagiu, irritado e saiu, em alta velocidade,
para a residência da professora Margarida de Jesus Cortez.
O Sr. Pedro Vilela representou a mesma farsa e Margarida entrou
no carro, novamente convencida de que iria apenas depor. Tentei
oonscientizá-la da nossa prisão mas não aceitou;
não conseguia entender que houvesse dúvidas sobre
a honestidade e integridade de seus atos como profissional e como
cidadã. Guardou muito silêncio e muito espanto. Com
os cabelos enrolados e cobertos por um lenço, preparava-se
para mais uma tarde comum na sua vida de professora.
O motorista recusava-se a informar para onde seguíamos até
que nos encontramos na avenida Hermes da Fonseca, perto do quartel
do 16° RI, onde já se encontrava aprisionada a universitária
Maria Laly Carneiro.
Do portão do quartel saía, no exato momento de nossa
chegada, o então recruta Haroldo Pacheco. Ao reconhecê-lo
gritei o seu nome, pedindo que avisasse ao meu irmão Leon
para onde estavam nos levando. O motorista ficou, novamente, muito
irritado e nervoso. Finalmente, estacionou junto ao Corpo da Guarda.
Descemos da kombi bem ao lado das janelas das prisões. Sem
nenhum comentário, aguardamos. Sabiamos que muitos companheiros,
entre eles Djalma Maranhão, Carlos Lima, Aldo Tinoco, Ubirajara
Macedo e outros encontravam-se ali, atrás daquelas grades,
mas nenhum rosto apareceu.
O oficial de dia veio nos receber, com a indiferença de quem
cumpria uma rotina. Levou nos através de uma porta de aço
que me pareceu enorme. Por ela entramos num quarto todo fechado
onde, há oito dias, encontrava-se Laly. Ela fora presa pelo
Exército em face de denúncias sobre atividades estudantis.
Retirada de uma sala de aula da Faculdade de Medicina e levada num
jipe por militares fortemente armados para o Quartel do 16°
RI foi, imediatamente, submetida a um longo interrogatório
que durou até a noite, quando a colocaram na cela onde estivera,
incomunicável, o Prefeito Djalma Maranhão. Pela madrugada,
vieram buscá-la e a levaram até os fundos do quartel
onde a rodearam em silêncio e assim permaneceram por um tempo
que lhe pareceu infinito, em plena escuridão.
Rodeada pelos militares, Laly viveu os momentos mais dramáticos
de sua experiência de prisioneira política. Saciados
em seu sadismo. conduziram-na, depois, para a cela onde se encontrava
quando chegamos.
Laly nos recebeu com um sorriso triste, abraçou-nos fortemente
e muito trêmula. Procurava acolher quem não queria
ser acolhida; eu queria sumir e não existir. Fiquei algum
tempo de pé, no meio do quarto, atenta ao barulho dos carros
que chegavam ao quartel. Desejava que meu irmão Leon chegasse,
a qualquer momento. Uma chegada inútil, pois nada poderia
fazer.
Tenho na memória que a tarde escureceu muito de repente.
Dispúnhamos de um pequeno quarto com camas, um banheiro e
uma pequena passagem para a porta de metal, onde receberíamos,
depois, as visitas. Acomodamo-nos nas camas. Ansiosa por notícias,
Laly fazia perguntas e informava sobre a rotina da prisão.
Eu permanecia em silêncio, resistindo àquele mundo
militar até então completamente desconhecido. O silêncio
era cortado por alguns tiros ao longe. Sentia-me meio idiota, sentada
na cama, mente esvaziada, ouvindo Laly falando baixo, com medo de
microfones que imaginava instalados escondidos, como nos filmes
de guerra.
Não sei por quanto tempo me perdi mas lembro a imensidão
da dor quando a imagem de minha filha se impôs. Então,
chorei. Laly tentava confortar-me, surpresa com a minha aparente
fraqueza. Já escurecendo, por uma janela vizinha à
porta de metal, o jantar foi entregue, sem palavras. Não
consegui comer mas não esqueci a brancura do arroz que acompanhava
o bife.
Margarida despertou de seu espanto e desabafou a revolta. Sentia-se
violentada mas não chorava, explodia de sofrimento e raiva.
Arredia à polícia entender a sua condição
de prisioneira, o que se chocava profundamente com a sua vida religiosa
de protestante convicta. Eu, porém, continuava chorando,
tomei um tranqüilizante que levava na bolsa e chorei até
adormecer.
Acordei assustada pelo toque de corneta e me propus a dominar o
sofrimento e as lágrimas; desde então e até
hoje ficou difícil chorar. Paralisada na cama, procurei assumir
a realidade de minha nova condição e fiquei ouvindo
aqueles sons que passaram a fazer parte dos sons de minha vida.
Levantávamos cedo, revezávamo-nos no banheiro, cuidávamos
da imagem, tomávamos café e ficávamos prontas
para o dia. Às sete horas ouvíamos a música
dos dobrados tocados para o ritual de hasteamento da bandeira nacional.
Assim os militares cumpriam o ardor de seu patriotismo. Marchas,
exercícios fisicos, treinamento de tiro com fuzis e metralhadoras
completavam a disciplina rígida do quartel. Ouvíamos
todos os dias, no mesmo horário, o tá-tá tá
daqueles tiros ressoando nas dunas. Era monótono e deprimente.
O quarto da prisão permaneceu, alguns dias, com as janelas
fechadas até que Laly passou a sentir dores do cabeça
e solicitou ao sentinela a presença do oficial de dia, a
quem apelou para que pemitissem abrir a janela para a renovação
do ar. Fomos, assim, autorizadas a abrir uma janela, o que nos permitia
ver o pátio que se estendia até a avenida Hermes da
Fonseca. Começamos, então, a receber ar puro e ganhamos
um pouco de céu, algumas árvores e a visão
do portão da saída. De repente, ficou muito importante
aquela paisagem restrita a um pouco de azul, de verde e de um portão
distante.
Analisando a nossa situação de presas políticas,
combinamos que, em qualquer circunstância, teríamos
que permanecer fortes e demonstrar segurança. A tudo deveriamos
tentar enfrentar com naturalidade. Adquirimos a consciência
de que todos os gestos e palavras eram importantes no julgamento
que aqueles homens fariam, vivendo, como estavam, certamente pela
primeira vez, uma experiência com prisioneiras do sexo feminino.
Os militares nos olhavam discretamente e sabe-se lá que conclusões
tiravam sobre as nossas vidas e os crimes que nos levaram até
a prisão.
Certa noite, já estávamos recolhidas e a luz apagada
quando ouvimos uma voz, bem junto à janela, dizer: "Eu
quero a loura!" Laly usava cabelos louros. Continuamos em silêncio
mas muito preocupadas. No dia seguinte, evitamos comentar o assunto.
Outra noite, despertamos pelos gritos de alguém que estava
sendo espancado, bem perto da janela interna de nossa prisão.
O torturador que batia exigia do preso a confirmação
de que Laly e eu nos encontrávamos em determinada reunião.
Aos gritos, indagava: "Laly estava lá ?" - "Mailde
estava lá?" O preso só gemia. As lembranças
desse episódio foram avivadas por Laly. Na minha memória
elas chegam pesadas e escuras. É possível que tenhamos
sido vítimas de uma farsa para aterrorizar. Se foi, conseguiram.
Até hoje não consigo pensar no episódio sem
me perturbar.
Sentíamos necessidade de alguma distração além
da leitura de uns poucos livros que nos permitiram receber. Contávamos
histórias das nossas lembranças, recordávamos
filmes, episódios vividos e fatos pitorescos, mas as horas
passavam lentas. À noite, Margarida, que era protestante,
lia a Bíblia para nós; meditávamos e aliviávamos
a tensão.
Nas tardes de sábado, quando o quartel não se achava
de prontidão, recebíamos visitas da família
e amigos. Não sei definir o efeito emocional das visitas.
A espera era alegre mas assistíamos à humilhação
das nossas pessoas queridas serem pressionadas pelos militares que,
no momento dos encontros, metiam-se entre todos, impedindo a espontaneidade
dos gestos e das conversas. Olhávamo-nos com aflição
e ternura sem, no entanto, conseguir nos tranquilizar. Nunca procurei
saber daquelas pessoas que sentimento levavam quando nos deixavam
no quartel, já anoitecendo. Envergonhava-me daquilo. Respeito
e pudor impediram-me de falar-lhes sobre aquele sofrimento que nós
causávamos. Quando as visitas saíam tentávamos
prolongar as lembranças, recompor os diálogos mas
as imagens que guardávamos eram de pessoas impotentes e derrotadas
diante daqueles homens armados, estranhos ao nosso mundo.
A nossa pobre vingança era nos divertir, observando os desfiles
que os militares faziam, em frente à janela da prisão,
e a tentativa para exibirem elegância e boa postura. Conseguíamos
rir, algumas vezes, de alguns dos componentes daquelas marchas diárias,
em que se despendia tanto tempo, sem o menor sentido para nós.
Nas
noites de insônia - e eram muitas - procurava escapar da tristeza
refugiando-me em outras lembranças. Buscava as manhãs
de inverno de minha infância e o verde que cercava. O açude
da fazenda, cheiro de terra molhada pela chuva e as brincadeiras
com minhas irmãs. Impossível suportar a prisão
sem voltar às raizes e à fantasia, nelas buscava alguma
beleza e defendia a minha ternura. Assim, protegia-me e recompunha
a minha história.
Numa manhã de domingo, levaram-nos para tomar banho sol no
pátio do quartel. Caminhamos um pouco e fomos recolhidas,
sem explicações. Em outro domingo fomos levadas para
a varanda do magnum dos oficiais, também para tomar sol,
de onde podíamos ver as dunas. Por trás das dunas
estava o mar. Desejei ardentemmte aquele mar. Ficamos um pouco.
Voltei à prisão com a paisagem das dunas e o desejo
do mar.
Certo dia a nossa rotina foi alterada por uma agradável surpresa:
aconteceu a visita do padre Francisco de Assis Pereira. Entrou no
quarto com o oficial de dia e convidou-nos à confissão
para receber a comunhão. Laly e eu aceitamos imediatamente.
Margarida, como protestante, não aceitou. Diva estava arredia
com a religião. Padre Assis estava tenso com a presença
ostensiva do militar no recinto, mas conseguiu confortar-nos. Esperamos,
nas semanas seguintes, o retorno do padre, que nunca mais voltou.
Assim, perdemos um apoio que nos poderia deixar mais tranqüilas.
A noite de São João foi festejada pelos militares
com fogos, bebidas e muita alegria. Por trás das grades vimos
militares humanizados, com mulheres e crianças divertindo-se,
no pátio do quartel, bem em frente às nossas prisões.
Em uma manhã de julho, logo cedo, o oficial de dia nos avisou,
discretamente, que viriam revistar o quarto e nossos pertences,
o que de fato fizeram. Naquele dia o quartel entrou em regime de
prontidão, o que acontecia sempre que a cúpula do
poder endurecia o regime. A revista não nos parecia ter sentido,
pois todos os objetos, roupas e livros já haviam sido vistoriados
na entrada do quartel.
Laly aniversariou na prisão; comemoramos com abraços
e beijos, sem maior tristeza mas sem alegria. À tarde, através
das grades, Laly reconheceu sua família chegando. Trouxeram
presentes e bolos. O oficial não permitiu que se aproximassem;
deixaram os pacotes e voltaram, sem nenhuma palavra com a aniversariante.
Passei o dia 7 de julho, aniversário de minha filha, na expectativa
que pudesse diminuir a nossa distância. À tarde, observei
pela janela que ela estava chegando. Trazia uma procuração
para ser assinada por mim como um pretexto para provocar um encontro
naquele dia. Falou com o oficial de dia, que não permitiu
entregar-me pessoalmente o documento. Por trás das grades
observei a sua volta solitária. A minha tristeza não
tinha limites.
Certa noite estavámos nos recolhendo quando ouvimos o som
do motor do carro do capitão Lacerda, já identificado
por nós. Ficamos na expectativa de outros sons, pois nunca
o víamos chegar à noite e sabíamos que torturava
fisicamente os presos políticos. Assustamo-nos quando ele
apareceu na janela, pronunciou o nome de Diva e retirou-se em seguida
Permanecemos em silêncio; minha lembrança é
a dos olhares aflitos e amedrontados. Passados alguns minutos, começaram
a bater na porta de metal, parecendo uma tentativa de a arrombarem.
Eram pancadas fortes e devem ter assustado, também, os demais
presos do mesmo bloco. Nossa aflição era enorme e
só aumentava; a porta de metal era a nossa única via
de acesso para fora da prisão. Não conseguindo abrir
a porta com pancadas, o capitão ordenou que entrássemos
no banheiro. Dispararam tiros, possivelmente na fechadura ou em
um cadeado e, afinal, a porta abriu. O capitão Lacerda chamou
Diva pelo nome completo e a levou. Quase imediatamente ouvimos os
seus gritos e choro convulso; gritava desesperadamente pela mãe
e por Deus, com quem dizia estar rompida. O seu choro foi aos pouco
sumindo com o barulho do motor do carro do capitão. Permanecemos
de pé, em silêncio, a porta arrombada e soldados armados
com fuzis, montando guarda. Tudo muito solene e assustador.
Não sei quanto tempo passou até que o oficial de dia,
que levara a chave da porta, voltasse do seu passeio noturno, fora
do quartel. Com a sua chegada fomos informadas que a mãe
de Diva fora hospitalizada, em estado do coma, acometida de um derrame
cerebral e encontrava-se na UTI do Hospital das Clínicas.
O estado de saúde da mãe de Diva era grave, mas como
temíamos coisas terríveis naquela noite, esperamos
a sua volta com menos preocupação. O oficial de dia
e alguns soldados consertaram a porta e, logo depois, Diva retornou,
chorando. O capitão Lacerda retirou-se e o tenente sentiu-se
mais à vontade para confortar Diva e comprometeu-se em trazer,
diariamente, notícias de Dona Teca. Diva passou a viver,
então, mais deprimida e silenciosa. O tenente cumpriu o prometido;
todas as noites, conseguia uma forma de se aproximar da janela e,
discretamente, informá-la do estado de saúde de sua
mãe.
Algumas vezes vimos passar os presos com problemas de saúde;
eram levados para o ambulatório médico algemados e
escoltados por soldados armados com fuzis e baionetas. Certa vez,
Geniberto Campos, então noivo de Laly e preso no alojamento
vizinho, conseguiu mandar avisar-lhe que passaria, para o dentista,
em frente à janela interna de nossa cela. Outras vezes vi
passar Carlos Lima e Josemá Azevedo, também algemados
e escoltados.
Nos dias de visita aos presos, podíamos observar, através
da janela interna de nossa prisão, a chegada das famílias
ao pátio do quartel, os abraços tímidos e emocionados
nos maridos, filhos e noivos. Entre eles ficavam os oficiais e soldados
armados e atentos. Não há como esquecer as expressões
aflitas, dignas e altivas daquelas mulheres.
Lá fora, elas lutavam incansavelmente pela nossa liberdade
mas chegavam aos quartéis de mãos vazias e poucas
esperanças. Dária Maranhão, Odete Roseli Maranhão,
Conceição Góes, Marta Tinoco, Anita Pereira
de Paula, Geni Brandão, Juraci de Vasconcelos, Albaniza Pimenta,
Conceição e Salete Carneiro, Salete Lima, Joana d'Arc
Cabral, Ângela e Sônia Cavalcanti, Doralice Macedo,
Iraci Oliveira, Sotera Fialho, Marli Moura, Eunice Machado e tantas
outras que viveram com dignidade e coragem os acontecimentos de
1964 em Natal.
Depoimento
com Veras
O
mês de julho foi de muita chuva e frio. Numa manhã
de neblina o tenente que nos ajudou com Diva aproximou-se da janela
e conseguiu avisar que, às 9 horas, viriam buscar-me para
prestar depoimento com o delegado Veras. Certamente senti medo de
enfrenta-lo; final aquele era o momento de maior risco para os presos
políticos. Na hora prevista dois soldados armados levaram-me
para uma dependência distante do local de nossa prisão.
Conduziram-me a uma pequena sala onde encontrei, de cabeça
baixa, um datilógrafo junto a uma máquina de escrever.
No centro da sala estava uma cadeira vazia. Sentei-me e esperei.
Minutos depois o delegado Veras chegou, vestindo terno escuro, exibindo
a elegância que lhe conferia o poder da força e da
prepotência. Olhou-me fixamente, como para assustar; lembrei-me
de Leonardo e senti que poderia enfrentar o inquisidor maior.
De pé, junto a mim, o delegado deu início a sua missão
fascista. Afirmou que conhecia tudo sobre minha vida e sobre os
atos subversivos que eu havia praticado como Diretora de Cultura.
Aconselhou a não mentir nem omitir o que já estava
documentado. Tentava aterrorizar-me como se galanteasse. Caminhava
em tomo da sala e eu me sentia muito pequena, sentada naquela cadeira.
Nem ele nem eu prevíamos a dimensão da minha resistência.
As perguntas surpreendiam pela rapidez com que eram formuladas,
interrompidas e repetidas. O interrogatório durou todo o
dia, com um pequeno intervalo para que o delegado pudesse almoçar
e se fizesse a mudança da guarda. Durante aquele intervalo,
entregaram-me meio copo de leite, nada mais.
Quando o delegado voltou, afirmou que estava convencido da minha
responsabilidade na preparação de guerrilhas e que
eu seria transferida para um cárcere no Estado de Pernambuco.
Não acreditei na ameaça mas fiquei irritada pelo riso
cínico que esboçou.
A segunda fase do interrogatório girou em tomo de uma reunião
de professores com o prefeito, quando foi estudada a possibilidade
de ser editada uma cartilha para alfabetização de
adultos. A reunião acontecera no bar "Briza del Mar",
à beira do rio Potengi.
A cartilha fora redigida por Diva e adaptada de uma outra preparada
pelo Movimento de Cultura Popular de Pernambuco (MCP). Era utilizada
pela campanha "De Pé no Chão Também se
Aprende a Ler", na alfabetização de adultos.
Interrogou, ainda, sobre a conscientização política
nos programas da Diretoria de Cultura. Não consegui fazê-lo
entender que a palavra conscientização, usada nos
nossos programas, destinava-se a preparar o homem para os seus direitos
à cidadania, integração e promoção
social. Insistia que a nossa conscientização visava
à preparação de uma revolução
comunista. No interrogatório pude sentir o valor e significado
de cada palavra e cada gesto. Quando me parecia que havia esgotado
o assunto, o delegado repetia a mesma pergunta, com outra formulação,
como se fosse a primeira vez. Minha resposta teria que ser a mesma,
sem me confundir.
O outro policial, José Domingos, companheiro de Veras, entrou
na sala; olhou-me fixamente e perguntou se eu gostava de empunhar
metralhadora. Senti-me insultada, sustentei seu olhar e nada respondi.
Findava o dia quando o delegado encerrou o interrogatório,
voltando a ameaçar com a minha transferência para o
Recife. "O datilógrafo entregou-me o depoimento e assinei,
sem ler.”
Seis anos depois, tentando conseguir autorização policial
para obter um passaporte e viajar à Europa, reencontrei o
datilógrafo que me reconheceu e confessou ao meu marido haver
sofrido uma depressão nervosa durante o assessoramento ao
delegado Veras e ainda ser vítima de pesadelos com cenas
daquela época. É difícil saber de quantas maneiras
tantos sofreram naqueles tempos cruéis da ditadura.
Voltei à prisão escoltada pelos soldados. Chovia e
fazia frio, mas, novamente, o oficial de dia se afastara, levando
a chave da porta de metal. Tive que esperar no Corpo da Guarda,
de onde pude ver alguns rostos por trás das grades mas a
escuridão não permitia identificá-los. Já
não suportava mais, passado todo um dia, a necessidade de
urinar. Afinal, o oficial chegou, abriu a porta e voltei à
prisão. As companheiras estavam aflitas e curiosas mas não
consegui falar por muito tempo; o corpo estava dormente e a cabeça
esvaziada. Estendi-me na cama e tentei relaxar. Quando pude falar,
transmiti todos os detalhes do interrogatório para tentar
ajudar às minhas companheiras nos seus futuros depoimentos.
Aconteceu, no entanto, que o delegado usou técnicas diferentes
para cada uma.
Demoraram alguns dias para levarem Diva. Levaram, depois, Laly e,
por último Margarida. Todas voltaram muito deprimidas, aflitas
e cansadas. Diva chorou muito, Laly mal conseguia controla o nervosismo
e Margarida voltou zangada e revoltada. Todas calaram, com pudor,
os dramas vividos com o delegado.
Os dias continuaram insuportavelmente lentos. O silêncio só
era interrompido pelas cornetas, pelas marchas militares ao amanhecer
e pelos disparos das armas nos treinamentos. A falta de espaço
físico reforçava o calor humano e a mútua solidariedade
de nosso convívio, mas sofríamos terrivelmente, sem
liberdade e sem as nossas pessoas queridas. Com nenhuma palavra
poderei descrever a tensão emocional daqueles dias.
Certa noite, um soldado aproximou-se da janela interna chamando-me,
em voz baixa, e se dizendo meu primo. Acrescentou que servia no
restaurante dos oficiais; informou, também, que o responsável
pelo restaurante era um coronel recém-chegado do Rio Grande
do Sul, que havia pertencido à assessoria do comandante daquela
região; tentara resistir e fora punido com transferência
para Natal e reclusão naquele mesmo quartel. O coronel oferecia
solidariedade às presas políticas. Fiquei muito assustada
por não conhecer aquele parente e por admitir que tentassem
nos envolver em alguma trama para comprometimento político.
Nosso grau de insegurança justificava o medo e a desconfiança.
Agradeci ao soldado e informei que não precisávamos
de nada e que as comunicações deveriam chegar através
do capitão Lacerda. Desde então, observávamos
um militar de meia idade, caminhando lentamente, nos fins de dia,
pelo pátio do quartel.
Carlos Lima testemunhou as tentativas de aproximação
do mesmo coronel com outros presos. Certo dia, o coronel chegou
a dialogar Djalma maranhão e pediu desculpas pelas prisões
e os demais acontecimentos, tentando justificar que “aquele
que não era o verdadeiro Exército, o Exército
de Caxias". Outras vezes ele passava perto da janela e dizia;
"Meus filhos, tenham paciência isto vai passar."
Em uma dessas ocasiões foi surpreendido pelo capitão
Lacerda, que o repreendeu, o que resultou numa calorosa discussão.
Depoimento
com o Capitão Lacerda
O
fim de julho chegou sem novidades até uma manhã em
que fui avisada pelo oficial de dia que me levariam, às 9
horas, para depor, na comissão presidida pelo capitão
Lacerda. Pela quinta vez eu iria responder a um interrogatório
sobre os mesmos assuntos. Torturavam-nos demais com tantas inquisições.
Do capitão Ênio Lacerda, conhecíamos a fama
de torturador, violento, e de quem dependia a sorte de todos os
presos políticos à disposição dos militares.
Presidindo a Comissão Geral de Investigações,
designado pelo alto comando do Exército, exercia um poder
diabólico e impiedoso. Naquele momento, não lembro
se senti medo ou cansaço. Lembro, porém, que às
9 horas encontrava-me na sala do interrogatório que era bem
diferente da sala onde depus com o delegado Veras.
Sentado
por trás de uma mesa, auxiliado por um tenente e um sargento,
o capitão indicou-me uma cadeira. Não me olhava e
folheava papéis. Assim, deu início às perguntas
sobre as minhas supostas atividades comunistas, sobre o prefeito
e sua equipe. Atemorizada com imprevisibilidade do capitão,
respondia com cautela, escolhendo palavras e controlando as emoções.
Passamos toda a manhã falando sobre as atividades culturais
da Diretoria de Documentação de Cultura. Quando o
capitão se referia ao prefeito, enfurecia-se e mal controlava
os gestos. Às 12 horas, suspendeu o interrogatório,
autorizou-me a voltar para o almoço, recomeçando às
14 horas. O capitão, então apresentou-me diversos
poemas que haviam apreendido na minha mesa de trabalho. Os poemas
compunham o repertório de um grupo jogral da DDC e haviam
sido apresentados, no início do ano, encerrando um seminário
de cultura. Entre eles encontravam-se "Morte e Vida Severina",
de João Cabral de Melo Neto, "Pátria Minha"
e "O Operário em Construção", de
Vinícius de Moraes. O capitão irritou-se por se usar
aqueles poemas como cultura para o povo, "Pátria Minha",
então, chocava-o enormemente; considerava-o ofensivo ao seu
sentido particular de pátria. Apesar da impossibilidade de
entendimento, manteve o interrogatório com respeito e sem
agressividade.
Quando percebi que estava encerrando, perguntei, com muito cuidado,
qual era a dificuldade que os militares sentiam para compreender
o nosso trabalho na Prefeitura. Respondeu, irritado, que eram os
civis os denunciantes da subversão e do comunismo na Prefeitura,
que aos militares cabia a defesa da pátria e que ele iria
até o fim na apuração dos fatos e na punição
dos culpados. Não pude falar mais nada. Um soldado entrou
com um recado de algum repórter do "Diário de
Natal", através do telefone, pedindo informações
sobre o inquérito e perguntando se haveriam novas prisões.
O capitão irritou-se e criticou rudemente a interferência
da imprensa; não foi atender ao telefone nem deu explicações.
Às 18 horas, encerrou o interrogatório e, sem me olhar,
informou que, a partir daquele momento, poderia aguardar o resultado
do processo em liberdade. Embora não acreditasse completamente
nas ameaças do delegado Veras de me mandar para Recife, não
esperava sair da prisão naquela noite. A liberdade era concedida
para responder a um processo que correria na Justiça Militar,
sob a vigência de leis de exceção, impostas
pelos próprios militares. Aquela liberdade significava, no
momento, apenas o sair da prisão. As ameaças continuavam;
bastava lembrar a expressão contorcida do general Muricy
pela televisão para sofrer arrepios pela minha liberdade.
Despejando ódio contra os supostos subversivos, o general
transferia para eles a revolta pelo episódio do acerto de
contas do então deputado federal Leonel Brizola que, num
inflamado e inconsequente discurso no Fórum de Debates “Djalma
Maranhão”, em Natal, chama-o de “gorila”.
Mas, afinal, voltava para a minha filha, minha família, meus
amigos e para meu quarto. Era quase banal lembrar o meu quarto de
dormir, mas, naquele momento, ele fazia parte da minha privacidade.
O estado emocional e luta para ser forte na prisão já
me cansavam enormemente. O sofrimento de prisioneira, acrescido
do sofrimento pela família e pelos companheiros, já
me esgotava e fragilizava. Estávamos, todos os perseguidos,
unidos pelo mesmo drama: na dor de meus pais estava a dor de todas
as outras famílias.
Diante de uma liberdade condicionada ao resultado de um processo,
senti-me comprometida a comunicar ao capitão Lacerda que
gostaria de voltar ao quartel para visitar o meu cunhado Moacyr
de Góes, que fora transferido do quartel da Polícia
Militar para as celas do 16° R1. Comuniquei, ainda, que no dia
da libertação de Diva, teria que recebê-la em
minha residência, pois a dela não mais existia; a mãe
continuava hospitalizada e ela sem emprego, demitida que fora pelo
governador e prefeito dos cargos de professora do Atheneu e do Ginásio
Municipal, tendo a casa onde morava devolvida ao proprietário
por falta de pagamento do aluguel. O capitão respondeu que
Diva sairia no dia seguinte. Ficou claro que as nossas prisões
Diva, Margarida e eu (Laly havia sido presa pelo Exército)
– haviam sido decididas unicamente pelo delegado Veras, presidente
da Comissão Estadual e de sua inteira responsabilidade. Os
depoimentos que decidiam nosso destino eram prestados àquele
delegado. O capitão Lacerda nos interrogava para cumprir
um ritual da Comissão Geral do Investigações
mas não decidia sobre a nossa libertação. Falou
da liberdade de Diva antes mesmo de ouvi-la e de ter elementos para
julga-la; sua liberdade fora decidida, então, pelo delegado
Veras, a quem Diva prestara depoimento anteriormente. O capitão,
com aquela informação, confirmou minhas suspeitas
sobre a responsabilidade de minha prisão e esclareceu algumas
dúvidas de ordem política local. O capitão
encerrou a conversa autorizando visitar Moacyr e receber Diva. Pedi-lhe,
então, que mandasse vir um táxi para voltar a casa.
O então sargento Elmar Guerreiro, datilógrafo da comissão,
ofereceu carona no seu automóvel. Voltei à prisão,
pela última vez, para as despedidas e apanhar meus objetos
pessoais. Abracei demoradamarte as companheiras e, por recomendação
do capitão, nada comentei sobre a saída de Diva. Retirei-me
sem pressa daquele quarto de prisão, onde a minha vida assumiu
dimensões quase infinitas. Cristo e eu sabemos quanta dor
e quanto apelo nos nossos diálogos.
Já era noite quando deixei o quartel em companhia do sargento
Elmar Guerreiro.
Sai para a liberdade, mas a liberdade na ditadura era apenas um
sonho e um desejo. Nossa realidade era a vida um sobressalto e nos
movíamos em círculos muito estreitos.
A vida da cidade aos poucos me era devolvida, com ruas escuras e
eu querendo claridade. Desejava sentir a alegria de estar livre,
mas estava cheia de sombras. Em casa ninguém me esperava.
As lembranças do reencontro com a família são
vagas distantes. Lembro os amigos chegando com flores e emoção.
Quase imediatamente apresentaram-se à porta da casa um repórter
e um fotógrafo da “Tribuna do Norte”. procurando
entrevistar-me. O mesmo jornal do dia 20 de junho havia publicado
a minha prisão com a seguinte notícia:
“TRÊS AUXILIARES DE DJALMA MARANHÃO
DETIDAS NO 16° RI.
Por determinação dos senhores José Domingos
e Carlos Veras, que presidem o chamado inquérito da subversão,
foram detidas, na manhã de ontem, as senhoritas Mailde
Pinto, Maria Diva e Margarida Cortês, responsáveis
pelos setores de “educação e conscientização”
da Campanha de Pé no Chão Também se Aprende
a Ler.”
No domingo, 21, a mesma "Tribuna do Norte" publicou:
“MULHERES.
Ainda repercute a prisão efetuada sexta-feira última
das três professoras da Campanha de Pé no Chão
Também se Aprende a Ler, a senhora Mailde Pinto e senhoritas
Margarida Cortês e Maria Diva, e interrogações
quanto aos papéis que elas tinham na trama subversiva abortada
a 31 de março. Fala-se em método de politização
com base na linha Havana-Pequim."
Os meios de comunicação cumpriam o seu papel na divulgação
dos fatos e não se davam conta do quanto expunham as nossas
dores e o quanto violavam a nossa intimidade. Unidos no processo
de massificação popular e no anticomunismo indiscriminado,
usavam os perseguidos com sensacionalismo para aumentarem suas vendas.
Recusei-me a conceder entrevista e prestar qualquer informação,
mas, no dia seguinte, lá estava eu sendo notícia no
jornal “A Tribuna do Norte”:
“MAILDE E DIVA FORAM LIBERTADAS.
A ex-diretora da DDC; senhorita Mailde Pinto e a coordenadora
da Campanha de Pé no Chão Também se Aprende
a Ler, que se encontravam detidas no Quartel do 16° RI há
mais de um mês, foram liberadas pelos homens do chamado
inquérito da subversão na noite de segunda-feira.
Procurada pela reportagem em sua residência, a professora
Mailde Pinto, aparentemente calma, negou-se a prestar qualquer
declaração.”
Não foi possível defender a minha privacidade e, naquela
noite, toda a minha sensibilidade estava exposta. Tive, também,
a surpresa de ver chegarem à porta de minha casa dois oficiais
que, quando nas funções de oficiais de dia, haviam
sido meus carcereiros. Recebi-os na calçada, sem entender
o que buscavam. Bastante encabulados e em trajes civis, queriam
cumprimentar-me pela liberdade. Confessaram que haviam conseguido
ouvir a gravação de meu depoimento com o capitão
Lacerda, torcendo por mim a cada pergunta e resposta. Agradeci,
surpresa e emocionada, àqueles homens a quem temíamos
tantas vezes, que tinham as chaves de nossa prisão e que,
agora, demonstravam esconder uma solidariedade que só podiam
confessar fora do quartel. Entreguei-lhes uma rosa das que havia
recebido e pedi-lhes que a entregassem às companheiras. Despediram-
se e voltaram às suas obrigações de carcereiros.
Dias depois, indo ao quartel visitar Moacyr, emocionei-me ao ver
a rosa, já murcha, dentro de um copo, por trás das
grades.
Diva chegou no dia seguinte, como estava previsto; abatida e triste,
sem lar, sem emprego e sem referencial de vida. Laly e Margarida
só foram libertadas dez dias depois, após a revogação
da prisão preventiva de Laly, que fora decretada pela Auditoria
Militar de Recife. Diva levou ainda alguns meses para conseguir
condições de deixar Natal e partir para o Rio de Janeiro.
Não consegui das companheiras de prisão os depoimentos
sobre as suas experiências; razões pessoais impediram-nas
de voltar às lembranças daqueles dias. Diva falou
apenas do espanto de ver serem queimados os livros das bibliotecas
que existiam nos Acampamentos Escolares e as Cartilhas de Alfabetização
de Adultos da Campanha "De Pé no Chão Também
se Aprende a Ler". Militares do Exército fizeram uma
fogueira com os livros em frente ao então Centro de Formação
de Professores, no Baldo, onde funcionava o Ginásio Municipal
de Escola de Comércio do Município. Ela confessa que
chorou.
Laly, que reside em Paris, de passagem por Natal leu este relato
e apenas comentou detalhes sobre o que já estava escrito.
De Margarida ouvi apenas um desabafo: “Foi tudo muito dolorido,
muita destruição na minha vida, tudo muito difícil,
não quero falar mais.”
Dias depois de minha libertação, recebi de Djalma
Maranhão um recado pedindo para ir vê-lo no quartel
da Polícia Militar. Relutei bastante em atender, mas acabei
cedendo; havia tanta insegurança em todos nós e Djalma
era tão odiado que temi pela minha liberdade. Ele recebeu
a mim e Dora Furtado com o mesmo sorriso, tentando demonstrar otimismo
e crendo, ainda, numa esperada volta do país à normalidade.
Não sei se por desinformação dos reais acontecimentos
políticos ou porque desejava tanto a liberdade, ele acreditava,
para breve, a volta da democracia ao país. Era difícil
encarar a realidade de ver Djalma naquela prisão, politicamente
destruído. tentando sustentar uma esperança, enquanto
lá fora os militares endureciam cada vez mais o regime. Dora
Furtado e eu quase não falamos. Ele queria detalhes da minha
prisão e das outras companheiras; preocupava-se pela nossa
segurança e, principalmente, pelas consequências que
ainda poderiam vir, em decorrência dos depoimentos. Queria
saber, também, se guardávamos dele alguma mágoa
pois considerava-se o responsável pelo nosso envolvimento.
Sentia-se causador do sofrimento da equipe que fora massacrada,
como consequência da perseguição política
para destruição de sua liderança. Preso e impotente,
Djalma comportando-se como um pai que não pôde proteger
os filhos. Despedimo-nos com tristeza e admirando a resistência
daquele homem que lutava sempre e não se sentia vencido.
Em nenhum instante daquele encontro comentou o sofrimento da prisão
nem as violências físicas a que foi submetido e reveladas,
apenas, à sua esposa Dilma Ferreira Siqueira, que acompanhou
Dária, na ocasião de uma visita.
Naquela tarde, uma das primeiras após o golpe, elas foram
ao quartel visita-lo. Levadas pelo tenente Calado a uma cela onde
Djalma se encontrava, sozinho, tão logo entraram receberam
dele o apelo de que procurassem o coronel Mendonça Lima para
denunciar que havia recebido pancadas na cabeça. Estava nervoso
e abatido. O tenente Calado, que era conhecido pela crueldade para
com os presos, ficou muito zangado, desmentiu a afirmação
e encerrou a visita.
Dário e Dilma dirigiram-se à residência do coronel
Mendonça Lima, fizeram o relato e o apelo. O coronel demonstrou
espanto e despediu-as, deixando a impressão de que tomaria
providências e seguiria, naquele instante, para o quartel
do 16° RI.
Confinamento
dos presos
O
dia 15 de agosto foi mais um daqueles tantos da insegurança
da ditadura quando, à noite, nasceu Leonzinho, uma criança
linda e saudável, filho de Conceição e Moacyr
de Góes, que chegou em plena ditadura e já marcado
por ela desde antes de nascer. A alegria pelo parto normal de Conceição
chocava-se com a tristeza pela prisão e ausência do
pai, encarcerado no 16° RI. Conceição, emocionada
e silenciosa, sem lágrimas e sem sorrisos, abraçava
o filho, recebia os amigos e se fechava no mistério da sua
solidão. Não sendo dia de visita, procurei ajuda do
oficial de dia para avisar a Moacyr. Fui atendida ao telefone pelo
capitão Aroldo Galvão que, imediatamente, transmitiu
a notícia.
Poucos dias após o nascimento da criança, a imprensa
divulgou que o capitão Lacerda havia retirado alguns presos
dos quartéis e levado para o confinamento da ilha de Fernando
de Noronha. Os quartéis entraram em prontidão e as
visitas aos presos estavam suspensas, fato que acontecia sempre
que surgia algo de novo ou eram editados novos atos de exceção.
A notícia deixou-nos em grande aflição principalmente
diante da possibilidade de terem levado Moacyr.
O meu irmão Leon e eu dividíamos a preocupação
por Conceição que já programava, para a próxima
visita, levar a criança ao quartel. Para protegê-la
e evitar que lhe informassem sobre a transferência dos presos,
os médicos que a assistiam proibiram as visitas. Decidi,
então, ir ao quartel e procurar falar com o capitão
Lacerda mas não o encontrei. O oficial de dia, tenente Jurema,
atendeu-me e empenhou a palavra que Moacyr continuava na mesma prisão.
Convidou-me a andar pelo pátio interno do quartel, onde estive
na expectativa de ver Moacyr através das grades.
Naquele dia as janelas estavam vazias, nenhum rosto apareceu. Demorei
o tempo possível, mas tudo era silêncio e solidão.
Imaginei que os presos estariam nas camas, temendo pelos companheiros
e por si mesmos. Pela minha experiência podia saber que, naquele
dia, estariam acuados e recolhidos sobre os seus destinos. Agradeci
ao oficial e me retirei.
Informada da minha visita ao quartel, a médica Aliete Roselli,
cunhada do preso Luís Maranhão, procurou-me, chorando,
pedindo ajuda para voltar ao quartel e conseguir notícias
dele, através do mesmo capitão Lacerda. O nome de
Luís já constava das notícias da transferência
para a ilha mas ela não conseguia aceitar. Foi muito difícil
para mim negar aquela ajuda mas não consegui atendê-la;
havia esgotado minha reserva de coragem na busca por Moacyr. Os
quatro presos, Djalma Maranhão, Luís Maranhão
Filho, Floriano Bezerra e Aldo Tinoco, foram levados pelo capitão
Lacerda, para a ilha de Fernando de Noronha na madrugada de uma
sexta-feira. A transferência era motivada pela concessão
de um habeas-corpus, requerido ao Superior Tribunal Militar,
em favor do preso Aldo Tinoco, então suplente de deputado
federal, conforme informação do capitão Lacerda
a "O Poti", de 23 de agosto, divulgada na seguinte notícia:
“DESTINO DOS QUATRO PRESOS POLÍTICOS
FOI FERNANDO DE NORONHA.
Nenhuma
revelação foi feita à imprensa pelas autoridades
militares em torno do ponto do território brasileiro
para onde foram levados, na madrugada de anteontem, os quatro
presos políticos transferidos de nossa capital.
Ontem à noite, em contato com o capitão Ênio
Lacerda, presidente do IPM que apura a subversão em nosso
Estado, soubemos que chegara à tarde a resposta do comando
do 4º Exército à consulta formulada pelo
comando da guarnição, indagando sobre o informe
aos jornalistas ou não do destino dos presos. A resposta
foi negativa.
Adiantou, ainda, que a ordem partiu do general Antônio
Carlos da Silva Muricy, que responde pelo comando do 4º
Exército. Em resposta a uma pergunta, admitiu que, apesar
de ser esperada a transferência, a concessão de
habeas-corpus pelo Supremo Tribunal Militar pode ter tido influência
para a decisão do assunto.
A TRANSFERÊNCIA
Os quatro presos políticos, ex-prefeito Djalma Maranhão,
ex-deputados Luís Maranhão Filho e Floriano Bezerra
e o suplente de deputado federal Aldo Tinoco saíram de
nossa capital na madrugada de sexta-feira.
Foram conduzidos em avião militar da FAB, pelo próprio
capitão Lacerda e pelo tenente Roosevelt, do 16°
RI. O local para onde foram conduzidos estava em segredo. É
certo, porém, que continuam em território do 4º
Exército.
O
capitão Lacerda e o tenente Roosevelt retornaram da missão
na noite do mesmo dia, adiantando que os presos políticos
não demonstraram, durante a viagem, constrangimento com
a viagem.
Quanto ao habeas-corpus concedido pelo Superior Tribunal Militar
em favor do Dr. Aldo Tinoco, afirmou o capitão Ênio
Lacerda que, até o momento, nenhuma confirmação
oficial recebeu em torno do assunto. – Tomou conhecimento
da decisão apenas por noticiário de jornal. No
entanto, respondendo a uma pergunta, afirmou que não
duvida que o bacharel Aldo Tinoco será libertado se chegar
o habeas-corpus.
CONFIRMADO FERNANDO DE NORONHA
No entanto, já à noite, tivemos informações
que o Sr. Venâncio Zacarias, pai do ex-deputado Floriano
Bezerra, vindo hoje à nossa capital, como faz todos os
sábados, para visitar o seu filho e não o encontrando,
procurei o coronel Mendonça Lima, que responde pelo Comando
da Guarnição. Daquela autoridade militar era recebido
a informação de que o seu filho, como também
os outros três presos políticos, foram transferidos
para a ilha de Fernando de Noronha."
O ódio do general Muricy era tanto que se sentiu com poderes
para desafiar uma decisão do Superior Tribunal Militar, retirando
os presos de Natal para Fernando de Noronha e impedindo ou retardando
o cumprimento dos habeas-corpus.
Passamos, ainda, uma semana até a próxima visita aos
presos quando ficamos convencidos de que Moacyr, realmente, se encontrava
no quartel. Acompanhei Conceição quando levou o filho
para ser visto pelo pai, no dia seguinte ao que deixou a Maternidade
Januário Cicco, onde recebeu inteira solidariedade da equipe
médica e paramédica que a manteve ali por quase quinze
dias, até que ficassem tranqüilos quanto ao seu estado
emocional. A equipe era composta pelos professores Leide Morais,
Araken Pinto, Heriberto Bezerra, Adelmaro Cunha, Edmilson Queiroz,
Lavoisier Maia, Socorro Santos, Edísio Pereira e Aluízio
Leite.
As visitas aos presos aconteciam ao ar livre, no pátio ao
lado das celas. Formavam-se grupinhos em torno de cada preso. Os
oficiais e soldados vigiavam, circulando em torno, inibindo gestos
e conversas. Moacyr estava visivelmente emocionado; beijou a esposa
e o filho mas não permitiu que a excepcional visita fosse
dramatizada por maior tristeza.
Os dias que se seguiram à transferência dos presos
para Fernando de Noronha foram tensos e repletos de boatos. Falaram
que outros presos somam levados e voltávamos das visitas
sem certeza da próxima.
Ainda no mês do agosto, os jornais divulgaram que poderia
haver trovas prisões mas não esclareciam que, em cinco
meses de investigações não haviam conseguido
uma única prova que confirmasse a preparação
do atos terroristas ou subversivos a serem praticados pela equipe
do prefeito Djalma Maranhão ou do qualquer outro setor da
cidade. Continuávamos, no entanto, a viver sob tensão
e vigiados por civis delatores e militares.
Fernando
de Noronha
ALDO
DA FONSECA TINOCO
(Odontólogo, ex-suplente de Deputado Federal, ex-Professor
da UFRN. Professor da USP)
Para conseguir informações sobre o confinamento dos
quatro presos políticos na ilha de Fernando de Noronha, procurei
ouvir o professor e ex-suplente de deputado federal Aldo da Fonseca
Tinoco, que iniciou a entrevista justificando a dificuldade de recompor
as lembranças de 1964 e citando o escritor André Maulraux:
“A memória é uma grande artista; só guarda
as passagens belas da vida.”
Aldo Tinoco encontrava-se preso há quatro meses e estava
numa cela do quartel do 16° Regimento de Infantaria quando foi
despertado, em uma madrugada de agosto, juntamente com o prisioneiro
Floriano Bezerra; avisaram-lhes que preparassem seus pertences pois
iriam viajar. Em seguida, foram levados até um caminhão
que os aguardava no pátio. No caminhão encontravam-se
o ex-prefeito Djalma Maranhão e o professor Luís Maranhão
Filho.
Na quase escuridão daquele amanhecer, desconfortavelmente
acomodados nos bancos de um caminhão militar, os presos conjecturavam
sobre seus destinos. Levados ao aeroporto pelo capitão Lacerda.
Certificaram-se de que seriam transferidos para prisões em
outros Estados ou para a ilha de Fernando de Noronha. Admitiam,
também, com muita preocupação, que poderiam
ser jogados do avião para a morte no mar, como se comentava
que já havia acontecido com alguns prisioneiros políticos.
No avião encontraram um general, cuja presença tranquilizou
Djalma, que comentou para os companheiros: “Acho que não
vão nos jogar no mar porque o general deve nos garantiu um
destino mais humano.” Quando o avião sobrevoava o oceano,
certificaram-se de que o destino era mesmo a ilha de Fernando de
Noronha.
Chegando à ilha, foram recolhidos ao quartel do exército
que possuía diversas celas nas quais foram distribuídos
e onde encontraram outros prisioneiros, muitos deles originários
da Bahia. No mesmo avião foi embarcado, de volta, o ex-governador
de Sergipe, Dr. Seixas Dória. Em cela isolada encontrava-se
o prisioneiro Miguel Arraes de Alencar, ex-governador de Pernambuco.
O professor Aldo, embora estivesse beneficiado por um habeas-corpus
requerido pelo desembargador Túlio Bezerra de Melo, seu cunhado,
continuou preso na ilha por mais de trinta dias.
No dia-a-dia do quartel os presos se encontravam nas horas das refeições,
tomavam banhos de sol e, após o jantar, conversavam por meia
hora até se recolherem para dormir. Sob a liderança
de Djalma trocavam ideias e fortificavam-se para suportar o isolamento
do mundo, naquela ilha de beleza e solidão. Possuidor de
habeas-corpus, Aldo tinha autorização para dirigir-se
a uma pequena mercearia onde, algumas vezes, burlando a vigilância,
comprava cachaça e fazia uma meladinha que todos tomavam.
O comandante do quartel, um major espírita, sociólogo
e maçom, tratava-os com respeito, o que contribuía
para conservarem um estado de espírito razoável.
Aldo tinha permissão, também, para pescar e o fazia
em companhia de um sargento, que se tornou seu amigo. Ao sargento
confidenciou o desejo de fugir da ilha utilizando um caiaque como
meio de transporte. O sargento contou-lhe histórias de pessoas
que tentaram fugir e morreram. Assim, morreu também aquele
frágil projeto de fuga para a liberdade. Aldo comenta que
sofria do que chamou “psicose reativa do preso que pensa sempre
em fugir e reagir”.
Trinta e tantos dias após a chegada à ilha, lá
desembarcou, a bordo do avião presidencial, o general Ernesto
Geisel, então chefe da Casa Civil do Presidente da República,
general Humberto de Alencar Castelo Branco, com o objetivo de apurar
denúncias de maus tratos aos presos que, segundo Aldo, não
ocorriam e verificar o descumprimento dos habeas-corpus.
Terminada a visita, o general Geisel trouxe, no seu avião,
para uma prisão no Recife, o Dr. Miguel Arraes e, para a
liberdade, o professor Aldo Tinoco. Na ilha ficaram os demais presos,
entre eles Djalma, Luís Maranhão e Floriano Bezerra.
Desembarcando no Recife, o general entregou Aldo a um coronel, determinando,
de dedo em riste: “O Tinoco está em liberdade! É
para ser posto em liberdade!” Apesar da recomendação,
Aldo foi levado, juntamente com o governador Miguel Arraes, para
a mesma cela de um quartel, onde se encontrava o líder das
ligas camponesas, Francisco Julião. Minutos depois chegou
o coronel a quem havia sido recomendado pelo general e, bastante
nervoso, disse, rapidamente e em voz alta: “O Senhor está
posto em liberdade. Pode ir embora.”
Livre da prisão e consciente de que retornando a Natal seria
novamente preso, Aldo embarcou anonimamente para o Rio de Janeiro
onde viveu, clandestinamente, até conseguir novo habeas-corpus,
requerido pelo advogado Roque de Brito Alves, o qual o livrou do
processo que corria na Auditoria Militar. No mês de setembro,
o ex-prefeito Djalma Maranhão foi transferido da ilha para
um hospital militar do Recife, onde foi submetido a tratamento de
saúde, para curar doenças adquiridas na prisão.
Conclusão
das investigações
No
dia 3 de setembro “A Tribuna do Norte” divulgou o encerramento
do inquérito que apurava a subversão no Estado informando
que outro inquérito viria, com novas prisões. O terrorismo
contra os perseguidos e suas famílias continuava, com a seguinte
notícia:
“CONCLUINDO O PRESENTE INQUÉRITO, OUTRO
VIRÁ COM NOVAS PRISÕES DILIGÊNCIAS.
Novo inquérito para prender novos implicados de subversão
no Rio Grande do Norte para apurar novas denúncias surgidas
e diligências que não têm cessado desde o
início da revolução, será instaurado
tão logo se encerre o presentemente em fase final sob
coordenação do Veras e Domingos. Esse outro inquérito
será aberto tão logo o primeiro seja entregue
ao governador Aluízio Alves, afirmando José Domingos
que não precisa de outra requisição para
o reinício dos trabalhos porque “de bom grado continuarei
em Natal pata fazer a limpeza total dos elementos comprometidos
com o movimento subversivo brasileiro.”
No dia 15 de setembro, o mesmo jornal noticiou, depois de criar
longa expectativa através de sucessivos anúncios,
a entrega dos autos do processo ao governador do Estado.
HOMENS E AUTOS.
O senhor Carlos Veras e José Domingos, juntamente com
os autos do inquérito, fizeram a entrega ao governador
Aluízio Alves de um relatório de mais de vinte
folhas datilografadas e ofício em duas laudas, sob o
número W40. Ao chegar para o encontro com o governador
potiguar, Carlos Veras estava de roupa de linho branco, gravata
vermelha, sapato marrom, enquanto José Domingos trazia
roupa azul, gravata preta e sapato marrom, uma maleta na mão
se saberia trazer no seu interior os autos da subversão."
O provincianismo da notícia descrevendo a vestimenta dos
galãs do inquérito estadual evidenciava a atenção
especial que os delegados recebiam de alguns órgãos
da imprensa.
Os relatórios elaborados por Carlos Veras e Rodolfo Pereira,
presidentes das duas comissões do Estado e Município,
são extensos, repetitivos e direcionam as acusações
contra o programa cultural da Prefeitura, indicando os principais
responsáveis.
Apresentam como crimes praticados pelos estudantes o fato de haverem
pertencido à União Nacional dos Estudantes, presidirem
diretórios estudantis, organizaram-se nas reivindicações
da classe e proferirem palestras a convite dos sindicatos sobre
assuntos de saúde, educação e reformas de base.
Acusava, também, de haverem se reunido no dia l° de abril.
As provas materiais dos crimes eram os livros apreendidos nas bibliotecas
de cada um.
O crime cometido pelo jornalista Leonardo Bezerra foi o de possuir
livros marxistas em sua vasta biblioteca. O do poeta Nei Leandro
de Castro o de abordar, com poesia, os problemas sociais.
Os líderes sindicais foram enquadrados pelos crimes da organização
sindical por reivindicarem as reformas de bases, promoveram greves
e pertenceram ao Partido Comunista Brasileiro. Somente uns poucos
confirmaram a filiação partidária.
RELATÓRIO DA COMISSÃO MUNICIPAL.
“DJALMA MARANHÃO - Quando no exercício de
Prefeito, organizou na Prefeitura – setor da educação
- um trabalho de politização e conscientização
de caráter puramente extremista, isso através
da Diretoria de Documentação e Cultura, Centro
de Formação de Professores, por meio de visitas
ao setor de educação de pessoas extremistas, como
podemos citar: Francisco Julião, Padre Alípio
de Freitas, deputado Almino Afonso, estudantes e jornalistas
cubanos e outros.
Mantinha, também, o ex-prefeito, o Fórum de Debates
que tem seu nome, onde recebia todos os elementos extremistas
que visitavam esta capital, fazendo ali palestras, comícios
e conferências.
Sobre sua responsabilidade circulava, também, o jornal
“Folha da Tarde”, que fazia a linha puramente extremista.
No dia primeiro de abril de 1964, Djalma Maranhão instalou
na Prefeitura o QG da Legalidade, isto em represália
a revolução de 31 de março último.”
”MOACYR DE GÓES - Quando exercia o cargo em comissão
de secretário de Educação, Cultura e Saúde
do município, foi o autor intelectual de todo o movimento
subversivo que se processou naquela secretaria, através
da Diretoria de Documentação e Cultura e do Centro
de Formação de Professores”.
O relatório continua com as mesmas acusações
e encerra dizendo o seguinte sobre Moacyr de Góes:
“Finalmente, acobertado no manto da religião
que diz praticar, pela sua inteligência e com dotes oratórios,
pode ser considerado o cérebro do movimento subversivo
que se processou no setor de educação da Prefeitura.”
“MAILDE PINTO - Foi a responsável pela aquisição
dos livros subversivos destinados às bibliotecas que
serviam ao Centro de Formação de Professores,
Concha Acústica, Postos de Empréstimo das Rocas
e Quintas e às Bibliotecas Ambulantes, que eram distribuídas
por meio de caixas aos acampamentos.
Grande parte desses livros foram apreendidos pelo Exército
e o restante retirado das bibliotecas pelo atual diretor da
Diretoria de Documentação e Cultura.”
O
diretor referido no relatório, advogado Diógenes da
Cunha Lima, substituiu-me no cargo de Diretor da Documentação
e Cultura da Prefeitura de Natal.
Do relatório apresentado pela Comissão Estadual retirei
o seguinte:
O presente inquérito policial é de natureza
e investigação singular foi instaurado por força
do decreto de 17 de abril do corrente ano, publicado no Diário
Oficial do dia 18 e republicado no mesmo órgão
oficial dia 29 do mesmo mês, através do qual O
Exmo. Senhor Doutor Governador do Estado nomeou esta autoridade
para como delegado de polícia, especial, apurar, com
jurisdição em o Estado, a prática de atos
contra a segurança do país e regime democrático,
probidade da administração pública ou crime
contra o Estado e seu patrimônio, a Ordem Política
e Social ou atos de guerra revolucionária. (Ato Institucional,
art. 7, parágrafo 1° e art. 8)
O histórico do relatório discorria sobre a atuação
do partido comunista no mundo, citava Lenin em linguagem panfletária
e, em alguns trechos, dizia:
“Apesar de se encontrar na ilegalidade; o Partido Comunista
do Brasil, de forma aparentemente legal, vinha liderando toda
a propaganda que visava a arregimentação das massas
através de campanha de fundo nacionalista, tais como:
"Campanha Anti-imperialista", "Campanha para
Aumento de Salário", "Campanha Contra a Carestia"
e, através de órgãos existentes, como U.B.E.S.
- União Brasileira dc Estudantes - e U.N.E. - União
Nacional de Estudantes - e, ultimamente, através das
chamadas “Frentes", como Frente de Libertação
Nacional, Frente Parlamentar Nacionalista, Pacto de Unidade
e Ação - P.U.A.- C,G.T.- Comando Geral dos Trabalhadores
e F.M.P. - Frente de Mobilização Popular - , as
quais se uniam, em determinadas ocasiões para seguir
o fim que lhes fora determinado pelo partido.”
O
relatório continua, cheio de chavões e sem um único
fato concreto para fundamentar juridicamente as prisões.
Sobre a responsabilidade da Prefeitura foi dito o seguinte:
“Foi para o setor de alfabetização que
o ex- prefeito Djalma Maranhão do seu staff de funcionários
escolheu cuidadosamente um grupo dela encarregado. Formou este
grupo tirando-o de forças esquerdistas em quase sua totalidade...
"A subversão educacional que sob o nome e slogan
de Campanha de Pé no Chão Também se Aprende
a Ler, era dirigida e supervisionada pela Secretaria de Educação,
Cultura e Saúde da Prefeitura de Natal, contou com a
participação direta dos seguintes elementos, todos
indiciados no presente inquérito: Djalma Maranhão,
ex-prefeito de Natal, Moacyr de Góes, (ex-secretário
de Educação, Cultura e Saúde, Margarida
de Jesus Cortez, ex-diretora do Centro de Formação
de Professores da “Campanha” Maria Diva da Salete
Lucena, ex-vice-diretora do Centro de Formação
de Professores, Omar Fernandes Pimenta, ex-assessor técnico
de ensino da Prefeitura de Natal, Mailde Ferreira Pinto, ex-diretora
da Diretoria de Documentação e Cultura, Luiz Gonzaga
dos Santos, ex-vice-prefeito do município de Natal bem
como outros que deram o seu apoio, colaboração
e esforço a esta que tornou-se a maior obra de subversão
no ensino do Rio Grande do Norte.”
O relatório final, com acusações feitas pelas
três comissões de investigação e o indiciamento
de oitenta e três pessoas, foi remetido à 7a. Auditoria
Militar do Recife pelo governador Aluízio Alves e pelo Comandante
da Guarnição no Rio Grande do Norte. No final do exercício
de 1965, começamos a receber as intimações
para identificação e posterior julgamento naquela
corte.
O relatório da Comissão Estadual foi, em seguida,
publicado com fotografias dos indiciados retiradas dos arquivos
do DOPS, impresso em plaquetas nas oficinas da Editora O Diário
Associados e distribuídas às autoridades civis, militares
e pessoas de prestígio social.
“A Tribuna do Norte” de 10 de outubro publica o ato
do governador com as demissões dos empregos dos considerados
subversivos e concessão de pensão às famílias.
Com esse ato o governador Aluízio Alves completou a execução
civil da ditadura militar no Rio Grande do Norte.
A pensão concedida pelo percentual do tempo de serviço
correspondia a 10% em média sobre os salários dos
demitidos que cantavam, em sua maioria, com pouco tempo de exercício
no quadro de funcionalismo. Um exemplo da humilhante e insignificante
pensão era a importância que recebia a esposa do professor
Omar Pimenta: do salário de seiscentos mil cruzeiros, passou
a receber sessenta mil cruzeiros para a manutenção
de cinco filhos. Baseado no mesmo Ato Institucional, o governador
demitiu, também, funcionários nomeados pelo senador
Dinarte Mariz, sem acusações de subversão,
entre os quais Descartes de Medeiros Mariz, jornalista Joanilo de
Paula Rego e engenheiro Roberto Freire.
ATO DE DEMISSÃO - Despacho do Governador.
Em processos diferentes que mandei anexar, a Comissão
de Aplicação do Ato Institucional indica os responsáveis
sobre processo de subversão que se desenvolvia no Estado,
de par com atos de improbidades apuradas em longas e penosas
investigações que abrangeram, também, o
período do governo anterior.
Constituída de pessoas da maior probidade e da maior
isenção de ânimo para esse árduo
e delicado trabalho, a Comissão se esmerou nas investigações
a que procedeu para evitar injustiças ou omissões
e aponta os indiciados afinal encontrados como incursos nas
sanções do Art. 7, parágrafo primeiro do
Ato Institucional.
Nessa conjuntura, tenho que considerar de um lado o dever que
a lei me impõe para proferir a decisão final.
Por outro lado, se devo cumprir este dever, devo igualmente
considerar a situação das famílias dos
indiciados, muitos deles presos e entregues a incertezas e as
dificuldades a que foram súbita e inesperadamente largados.
Devo também considerar como elementar princípio
de justiça o grau ou a intensidade das atividades desenvolvidas
por cada um dos indiciados para que não resulte aplicação
uniforme e penalidade a atividades desiguais ou menos intensas.
Assim considerando, determino que aos demitidos, ocupantes de
cargos efetivos, o ente público respectivo (Estado ou
Município) providencie pelos meios legais adequados a
concessão de uma pensão na base de 50% sobre o
vencimento padrão, contado proporcionalmente o tempo
de serviço a ser apurado pelo órgão competente.
Em conseqüência resolvo, na forma do Art.7, parágrafo
primeiro do Ato Institucional, demitir:”
Segue-se
a relação dos demitidos com os respectivos cargos.
A lista é encabeçada pelo ex-prefeito Djalma Maranhão,
que ocupava o cargo efetivo de Diretor da Diretoria de Documentação
e Cultura e o de Professor do Atheneu.
Alguns companheiros, demitidos dos empregos, sem meios de sobrevivência
e acossados pela delação e perseguição
local, ao saírem da prisão procuraram refúgios
em outros Estados e até fora do país: Laly Carneiro
e Marcos Guerra conseguiram fixar residência em Paris; Djalma
Maranhão exilou-se no Uruguai: Moacyr de Góes, Hélio
Vasconcelos, Diva Lucena, Berenice Freitas, Tereza Braga, Luiz Gonzaga
dos Santos, Luiz Maranhão Filho, Aldo da Fonseca Tinoco,
Margarida de Jesus Cortez, Ubirajara de Macedo, Geniberto Campos,
Francisco Ginani seguiram para o Rio de Janeiro, São Paulo
e Brasília.
Poucos dos que saíram retornaram para morar em Natal e a
cidade perdeu alguns de seus melhores valores intelectuais e políticos.
Recém-saídos das prisões, enfrentávamos
preconceitos e o afastamento de muitas pessoas com as quais convivíamos.
O medo, a insegurança e a covardia explicavam essas atitudes.
Acostumei-me aos olhares de curiosidade e rejeição
e nem sei explicar por que me sentia tão forte. Da experiência
de enfrentar cinco comissões e ser questionada na revisão
dos atos como diretora da Diretoria de Documentação
e Cultura e da luta contra a invasão de minha vida privada,
adquiri uma forte segurança de cidadania.
Entre as dezenas de pessoas indiciadas por terrorismo, encontravam-se
seis mulheres: Maria Laly Carneiro, Maria Diva da Salete Lucena,
Margarida de Jesus Cortês, Tereza Braga, Berenice Freitas
e eu.
Como os demais subversivos, fui intimada a comparecer ao Departamento
de Ordem Política e Social (DOPS) para ser fichada como indiciada
por crimes cometidos contra a segurança nacional. Submeteram-me
ao mesmo ritual empregado para fichar criminosos comuns. O fotógrafo
trabalhava automatizado pelo atendimento a tantos e não se
alterou com um rato, enorme, que saiu de um móvel de onde
tirava alguns objetos. O rato corria entre ele e a porta e eu fiquei
parada, num canto da sala. Estava assustada mas não pude
deixar de rir de minha própria situação, acuada
por um rato numa dependência da polícia.
Viver sob a tensão daqueles tempos e conservar o bom humor
já era um exercício de autodefesa e até de
proteção à saúde. Muitas vezes consegui
rir de situações que considerava ridículas
mas que me envolviam nos males da ditadura. Assustava-me e muito
quando via uma viatura militar e ria de mim mesma quando as encontrava.
As associações de lembranças de alguns acontecimentos
de 1964 surgem inesperadamente, às vezes emocionam sem tristeza,
mas sempre incomodam. Chegam, outras vezes, carregadas de ternura
como no fim de uma visita à prisão na qual Iaponi
Araújo despediu-se com lágrimas nos olhos e tanta
tristeza que precisei sorrir afirmando que “apesar de tudo,
a vida é boa e eu gosto de viver”. Foi o comentário
que me ocorreu naquele instante e valeu para os dois.
Fomos todos muito magoados e ofendidos em 1964. Perdemos mais do
que dizemos ter perdido. Vivemos uma incrível experiência
do conhecimento humano; vimos o bem e o mal sem limites e conhecemos,
também, a solidariedade humana em gestos da maior grandeza.
Houve gestos como o do Dr. Alvamar Furtado, chegando à nossa
casa, numa hora do almoço, meio encabulado, oferecendo-se
para fazer uma coleta entre os amigos e conseguir passagens aéreas
para devolvermos a Conceição e Moacyr, àquela
altura refugiados no Rio de Janeiro, os cinco filhos que haviam
ficado conosco. Conseguiu as passagens com a ajuda dos empresários
Walter Pereira e Geraldo Santos e as crianças puderam partir
ao encontro dos pais.
O médico Pedro Coelho teve uma atitude de corajosa solidariedade
naqueles tempos de medo; informado da minha prisão, dirigiu-se
ao Quartel-General, solicitou e conseguiu audiência com o
comandante, apresentou o seu depoimento sobre a minha vida, que
conhecia como médico e amigo, demonstrando estranheza pela
minha prisão. Repetiu o mesmo gesto quando da prisão
de um estudante, igualmente, seu conhecido. Sua atitude não
mudou os acontecimentos das nossas vidas mas, sem dúvida,
foi um testemunho importante num momento em que muitos outros se
afastavam dos perseguidos.
Em 1964 havia muito ódio mas havia muito amor. Na noite em
que saí da prisão a minha casa encheu-se de ternura,
a ternura da família e dos amigos. Paulo de Tarso Correia
de Melo chegou com rosas vermelhas e exuberante de alegria; Cléa
e Nísia Bezerra, Nadja Amorim, Moacy Cime, Iaponi Araújo,
Dailor Varela e outros abraçaram-me com um calor humano impossível
de descrever.Entregaram-me um livreto com provérbios chineses
preparado por eles e um dragão, símbolo da resistência,
desenhado na capa por Newton Navarro.
Até mesmo os oficiais que trouxeram, naquela noite, os seus
cumprimentos, demonstraram que a solidariedade humana pode existir,
também, dentro dos quartéis.
Um destaque especial deve ser dado à família do Dr.
João Maria Furtado que, desde os primeiros dias da ditadura,
assumiu a paternidade de todos os presos, a quem deu assistência
jurídica e moral. Roberto Furtado, que escapou da prisão
por interferência do coronel Ulisses Cavalcanti, conforme
afirmação do mesmo, advogou gratuitamente todos os
perseguidos; Dora Furtado dedicava-se especialmente aos que não
tinham família em Natal. Dona Jacira era considerada a mãe
de todos.
Os gestos de solidariedade, hoje lembrados, ainda sensibilizam e
emocionam; em 1964 eles atenuavam o sofrimento e a solidão.
O Dr. Otto de Brito Guerra, apesar de ter a sua residência
cercada por militares nas diversas ocasiões em que prendiam
seu filho Marcos, assumiu, com destemor e gratuitamente, a defesa
de diversos presos políticos. Em uma única noite,
na residência do Dr. João Maria Furtado, datilografou,
ele mesmo, assessorado por Roberto Furtado e Odete Roselli, esposa
de Luiz Maranhão Filho, dezenas de requerimentos para solicitação
de habeas-corpus dirigidos ao Superior Tribunal Militar.
Na madrugada daquela noite, Dora Furtado e Odete Roselli começaram
a recolher assinatura das famílias dos presos.
Por todo o dia, enquanto procurava assinaturas, Dora foi seguida
por um jipe do Exército. Na residência de Omar Pimenta
e Albaniza, sua esposa, assinou o requerimento, vendo um jipe parado
a uns dez metros de distância de Dora. Todos sentiam medo
mas não estavam vencidos.
Luta
nos tribunais
Os
requerimentos preparados naquela noite, com tanta urgência,
foram entregues ao então deputado federal Joaquim Inácio
de Carvalho Neto que, atendendo a um pedido da esposa de Djalma
Maranhão, assumiu a responsabilidade de apresenta-los e defendê-los
no Superior Tribunal Militar.
Em entrevista concedida sobre o episódio dos habeas-corpus
o ex-deputado Carvalho Neto esclareceu detalhes de sua participação
na libertação de quarenta e dois presos políticos
do Rio Grande do Norte.
JOAQUIM INÁCIO DE CARVALHO NETO
(Advogado, ex-Prefeito do município de Antônio Martins,
ex-Deputado Estadual, ex Deputado Federal, Empresário)
Procurado em sua residência pela Sra. Dária Maranhão,
esposa do ex-prefeito, e sensibilizado pelo drama dos presos políticos,
indefesos há vários meses nas celas dos quartéis,
o deputado advogado, que até então estava afastado
do sofrimento pessoal das famílias atingidas pelo golpe militar,
assumiu a responsabilidade de lutar nos tribunais militares pela
liberdade dos presos políticos de Natal.
Após inteirar-se do conteúdo das acusações
com o desembargador João Maria Furtado, Carvalho Neto recebeu
os requerimentos e viajou ao Rio de Janeiro.
O primeiro requerimento a dar entrada foi o do ex-prefeito Djalma
Maranhão, que apresentava o maior peso de acusações,
embora não houvesse provas materiais de crimes. Julgado,
foi negado por unanimidade, no Superior Tribunal Militar, apesar
da defesa apresentada na sessão de julgamento.
Carvalho Neto recorreu imediatamente ao Supremo Tribunal Federal
em Brasília, teve o seu recurso acolhido por unanimidade,
sendo concedido o habeas-corpus. Na ocasião, aquele
tribunal era presidido pelo ministro Ribeiro da Costa e, como relator
do processo atuou o ministro Emer Guimarães.
De posse do documento de habeas-corpus, Carvalho Neto viajou
ao Recife, apresentou-se ao 14° RI, onde foi atendido pelo coronel
João Dutra de Castilho que o tratou grosseiramente. Disse
o coronel:
- “O sr. tão moço e prestando um desserviço
à nossa revolução! O sr. fique sabendo que
a nossa revolução é como um trator que não
tem marcha a ré!”
Carvalho Neto tentou dialogar e perguntou onde se encontrava Djalma
Maranhão. O coronel respondeu, em tom de ameaça:
- “Ele está aqui mas eu não cumpro a ordem.”
O deputado, sem condições de argumentar com o coronel,
voltou a Brasília e solicitou audiência com o presidente
do Supremo Tribunal Federal.
Recebido pelo ministro Ribeiro da Costa, Carvalho Neto informou:
- “Sr. ministro, lamentavelmente a ordem de habeas-corpus
concedida pela unanimidade do Supremo não foi cumprida; o
comandante do 14° RI, coronel João Dutra de Castilho,
onde se encontra o preso, disse que não cumpre a ordem.”
O ministro aconselhou, paternalmente:
- “Meu filho, você se resguarde o máximo que
vou me reunir com os outros membros e vamos ao presidente da república.”
A reunião aconteceu, os ministros fecharam o Supremo e foram
ao presidente Castelo Branco entregar-lhe as chaves do edifício.
O presidente da república, conforme afirma o deputado, ouviu
os ministros e respondeu que voltassem que lhes daria todas as garantias.
Nova ordem de habeas-corpus foi expedida pelo Supremo para Djalma
Maranhão e entregue ao mesmo Carvalho Neto, que voltou imediatamente
ao Recife. Mais uma vez foi recebido grosseiramente pelo coronel
Castilho, que não teve alternativa senão cumprir a
determinação de soltura do preso.
Assim, foi concedida a liberdade a Djalma Maranhão em novembro
de 1964, oito meses após a prisão.
Carvalho Neto acompanhou Djalma na viagem ao Rio de Janeiro e, atendendo
a seu pedido, levou-o do aeroporto para a residência do senador
Dinarte de Medeiros Mariz.
O deputado ainda se emociona com as lembranças de Djalma
ao sair da; estava inseguro, traumatizado e triste.
Quando tentaram embarcar do Recife para o Rio, encontraram o aeroporto
repleto de militares que aguardavam a chegada do general Costa e
Silva. Somente no dia seguinte é que puderam viajar.
O encontro com o senador Dinarte Mariz foi espontâneo e afetuoso.
O senador, que era considerado um dos líderes civis do golpe
militar, abraçou Djalma e disse:
- “Eu não disse, Djalma, que isso não ia dar
certo! Você se envolve com essas coisas... Eu sei que você
não é comunista mas você estava muito afoitão...”
Perguntou, então, em que poderia ajudar. Djalma respondeu
que queria asilar-se na embaixada da Argélia, mas, antes,
gostaria de divulgar um manifesto através de algum jornal.
O manifesto, transcrito em seguida, foi publicado pelo jornal "O
Correio da Manhã", do Rio de Janeiro; nele declarava,
entre outras coisas, que não acreditava na validade do habeas-corpus
naquele momento da vida nacional.
“PALAVRAS AO POVO
Depois de oito longos meses de cárcere, nos presídios
de Natal, Fernando de Noronha e Recife, fui libertado por habeas-corpus,
concedido pelo Supremo Tribunal Federal. Resolvi, no entanto,
procurar asilo político na embaixada do Uruguai e, deste
gesto, sinto-me na obrigação de prestar aos brasileiros,
particularmente aos nordestinos e aos meus conterrâneos
do Rio Grande do Norte, os seguintes esclarecimentos:
I - Não creio na validade de um habeas-corpus neste momento
da vida brasileira em que a ordem jurídica é vilipendiada
e destruída diariamente; os casos Seixas Dória
e Astrogildo Pereira, para citar apenas os mais recentes, comprovam,
sobejamente, essa interpretação.
II - Meu estado de saúde exige tratamento imediato, sendo
impossível fazê-lo no clima de apreensão
em que vive o país. Duas vezes, dado o clima de terror
em que estamos mergulhados, minha morte foi anunciada pela imprensa.
Perdi vinte e cinco quilos de peso. Em Natal, fui internado
no Hospital da Polícia Militar e, antes de concluir o
tratamento, levado para Fernando de Noronha, de onde, posteriormente,
fui mandado para o Hospital do Exército no Recife, visto
que receavam o escândalo do meu falecimento na ilha. Ultimamente,
estava detido no Regimento Guararapes, na capital pernambucana.
Vou para o exterior, também, na tentativa de recuperar
a saúde.
III - Além do mais, com os direitos cassados, demitido
do emprego e sem condições de trabalho, são
mínimas as possibilidades de tentar; aqui; o tratamento
de que necessito. Confio em que minha ausência será
de pouco tempo.
IV - O governo está totalmente submetido ao imperialismo;
agrava-se, dia a dia, a crise econômico- financeira; a
inflação toma proporções imprevisíveis
e já nos encontramos às vésperas daquilo
que Jânio Quadros classificam como a "revolução
do orçamento doméstico". O general fome está
nas ruas, nos campos, nas fábricas, nas escolas, nas
repartições públicas e, muito em breve,
nos quartéis, absorvendo o aumento de Vencimentos dado
aos militares. Este governo ilegal, arbitrária e inimigo
do povo, não terá meios para travar a batalha
decisiva.
Garanto, porém, que ante o espectro da fome, nenhum povo
permanece de braços cruzados. A história demonstra.
Até breve, meus irmãos.
Djalma Maranhão
Rio de Janeiro, novembro de 1964"
Djalma permaneceu ainda três dias no apartamento do senador
Dinarte Mariz, até conseguir entrar na embaixada da Argélia,
que não lhe concedeu exílio, o que lhe foi concedido
pelo governo do Uruguai, após uma curta permanência
na embaixada do mesmo país, para onde transferiu-se.
O lançamento do manifesto irritou mais ainda os militares
contra Djalma Maranhão e, por extensão, o deputado
Carvalho Neto, que continuava apresentando requerimentos ao Superior
Tribunal Militar, onde os habeas-corpus eram negados e
recorridos ao Supremo Tribunal Federal, no qual eram concedidos.
Já os quarenta e seis presos encontravam-se em liberdade
quando Carvalho Neto foi preso, em sua residência, por militares
do Exército. Sua casa amanheceu cercada por tropas militares,
comandadas pelo coronel João José Pinheiro da Veiga,
que apresentou uma intimação para o deputado comparecer
ao 16° RI. A prisão efetuada com a apresentação
de um documento de intimação pode ter sido uma exceção,
em face da imunidade parlamentar.
O deputado espantou-se com o aparato militar, casa cercada e cinco
jipes com soldados armados e disse:
- “Coronel, sou um homem civilizado. O sr. não está
prendendo nenhum Al Capone."
O coronel respondeu:
-"Estou apenas cumprindo ordens."
O deputado obteve permissão para tomar café, conversou
com a esposa e recomendou que procurasse o advogado Joanilo de Paula
Rego para comunicar ao senador Dinarte de Medeiros Mariz que estava
sendo levado pelos militares para o 16° RI.
Chegando ao quartel às oito horas, Carvalho Neto foi obrigado
a esperar na sala dos interrogatórios até o meio dia,
quando chegou o capitão Ênio Lacerda, acompanhado pelos
capitães Aroldo e Airton. Lacerda iniciou o interrogatório
insultando e ameaçando, exigindo saber os motivos pelos quais
o deputado estava requerendo habeas-corpus, que "atrapalhavam
a revolução e a vida da nação."
Os argumentos do deputado irritaram o capitão que se preparou
para mais um ato de violência, exclamando:
- “Ah, é sabidinho? É inteligentezinho? Pois
então vai apanhar!"
E partiu para consumar a agressão. O capitão Aroldo
Galvão interferiu com determinação e disse:
- “Neste aqui você não bate. Você tem batido
em muita gente, mas neste aqui não!”
Com
a discussão entre os dois militares o interrogatório
foi encerrado. Carvalho Noto ficou detido até às vinte
e duas horas, sendo libertado por interferência do Senador
Dinarte Mariz.
Considerado um dos líderes civis do golpe militar, o senador
Dinarte de Medeiros Mariz comportou-se de forma diferenciada dos
demais implantadores da ditadura. Enquanto a cúpula do poder
institucionalizava os atos de exceção para perseguirem
e punirem os considerados subversivos, ele assumia a defesa das
vítimas e tentava reparar as injustiças.
O advogado e atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil no
Rio Grande do Norte, professor Hélio Xavier de Vasconcelos,
relatou detalhes da interferência de Dinarte Mariz em dois
momentos decisivos para os perseguidos do Estado. Quando eram negados
aos presos do Rio Grande do Norte os habeas-corpus requeridos
ao Superior Tribunal Militar, o senador procurou o ministro Alcides
Carneiro, do mesmo Tribunal e fez-lhe a seguinte afirmação:
"Esses meninos do Rio Grande do Norte não são
comunistas; lá só tem dois comunistas, Luís
Maranhão e Vulpiano Cavalcanti e são dois homens de
bem."
Para impedir a demissão de Hélio de um emprego na
Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, no Rio de
Janeiro, o senador levou-o à presença do Ministro
da Justiça, Alfredo Buzaid. Este, informado de que Hélio
havia sido punido pelo Ato Institucional, observou: "Os atos
institucionais são os dogmas da revolução."
Dinarte respondeu:
-"Mas, quem aplicou os dogmas da revolução na
sua terra, São Paulo, foi o governador Ademar de Barros e,
na minha terra, o Rio' Grande do Norte, foi Aluízio Alves,
ambos depois cassados por corrupção, pela própria
revolução."
Hélio não foi demitido e, a partir daquele encontro,
não voltou a ser molestado.
Dois
anos depois
Em
abril de 1966, recebi telegrama da Auditoria Militar do IV Exército,
no Recife, comunicando que estava enquadrada nos crimes previstos
nos artigos 9, 10 e 12, da Lei 1802/53 - a Lei de Segurança
Nacional. Recebi o comunicado sem surpresa mas fiquei mais uma vez
muito assustada.
Somente em fins de agosto fui intimada, com data marcada, para comparecer
perante aquela Auditoria. Não consigo lembrar se a convocação
informava se eu seria interrogada ou apenas identificada. Para apresentar-me
à Auditoria, necessitava da companhia de um advogado, o que
não conseguia em Natal. Por aqueles dias a tensão
nacional atingia os limites do terror; todos os quartéis
encontravam- se em prontidão, em consequência da explosão
de uma bomba, justamente no aeroporto do Recife, por ocasião
do desembarque de alguns generais, quando morreu o almirante Nelson
Fernandes. Os militares tinham estavam agitados e procuravam em
todos os lugares possíveis os autores do atentado que, até
hoje, não foram, de fato, identificados. Na época
suspeitava-se que a bomba havia sido colocada pela “linha
dura” dos próprios militares, numa tentativa de justificarem
um maior endurecimento do regime.
Viajar ao Recife, por aqueles dias e na condição de
subversiva, era um risco muito grande. Depois de alguns entendimentos,
decidi, através dos amigos Paulo Rosas e José Eufrânio
Alves, residentes naquela cidade, contratar, para minha defesa,
o conceituado profissional Dr. Roque de Brito Alves. O advogado
aceitou a causa mas os seus honorários eram altos demais
para os meus parcos recursos. Com um empréstimo da família
e de amigos viajei ao Recife.
Apresentei-me ao Dr. Roque na sua residência com certa timidez
mas ele me recebeu com tranqüilidade e inspirou confiança.
Leu a intimação, não fez comentários,
indagou sobre o meu cargo na Prefeitura e convidou-me a visitar
a sua coleção de porcelanas antigas. A coleção
era linda e bem cuidada mas concentrei-me em uma reprodução
de Salvador Dali, com um Cristo na cruz, flutuando entre um céu
infinitamente azul e um lago sereno. A comunicação
com o Cristo ajudou-me a vencer o medo, a angústia e a solidão.
Deixei a sala quase tranqüila. Senti gratidão e carinho
por Dr. Roque, que proporcionou aquele encontro antes de me levar
até a Auditoria.
A Auditoria era uma casa antiga e bem recuada. Caminhamos até
uma sala onde já se encontravam diversos denunciados, com
expressões aflitas e assustadas. O ambiente era solene e
tenso. Sentamo-nos à frente de um estrado onde se encontravam
os militares, separados de nós por uma divisória de
madeira. Ao lado ficavam os advogados, pouquíssimos para
tantos indiciados. O Dr. Roque ocupou um lugar e passou a ler uma
revista, como se nada lhe interessasse naquele ambiente. Era eu
a única mulher naquela sala. Senti tristeza por mim e por
aqueles homens desamparados, alguns mal vestidos, saídos
das prisões que todos nós conhecíamos. Felizmente,
a imagem do Cristo me acudiu e em meio às minhas aflições
ouvi um oficial pronunciar meu nome e ordenar que me apresentasse.
Enquanto caminhava até a frente dos militares, Dr. Roque
ficou de pé, acompanhando-me com o olhar. Entregaram-me,
então, um documento que me encaminhava a outro setor do Exército,
onde seria identificada e fichada.
À saída, despedi-me do Dr. Roque de Brito Alves que
assumiu a responsabilidade de conseguir-me um habeas-corpus que
me livrasse do processo que corria naquela Auditoria.
Às 14 horas dirigi-me, sempre acompanhada por Leon e Socorro,
sua esposa, a um quartel ido Exército, onde encontramos os
estudantes Geniberto Campos, Francisco Ginani, João Faustino
Ferreira Neto e diversos outros "subversivos" de Natal.
Após o ritual de identificação fomos liberados.
Deixamos a cidade quando já ia anoitecendo. Conosco voltaram
Geniberto e Ginani. Era agosto e uma lua imensa clareava a noite.
Liguei o rádio do carro e o cantor Jair Rodrigues começou
a cantar: "Tristeza, por favor vá embora." Chegamos
a Natal aliviados e quase felizes. Soube, depois, que na pressa
de sair do Recife, Leon esquecem de abastecer o carro e corrêramos
o risco de ficar pelo caminho...
Meu habeas-corpus, de número 29.135, foi concedido
somente em 4 de outubro de 1967, quando fui excluída da denúncia
oferecida pela Auditoria da 7 Região Militar. O relator foi
o ministro Dr. Orlando Moutinho Ribeiro da Costa.
A denúncia apresentada era a seguinte:
“Dedicou-se à organização de
postos bibliotecas. sendo que participou da reunião em
se tratou da necessidade da adaptação da “Campanha
de Pé no Chão Também se Aprende a Ler”.
Como diretora que foi da Diretoria de Documentação
e Cultura de Secretaria de Educação do Município,
imprimiu cunho subversivo a seu serviço.” fls.
14.
Caracterizando a denúncia assim se expressou o ministro relator:
“Assim, dita denúncia não devia ter
sido recebida, na conformidade do disposto no art. 189, do CJM,
porque não fixa dia, hora, lugar em que teria cometido
crime e, mais, ainda, não descreve nenhum ato delituoso
por ventura praticado pela paciente, de forma que torna-se um
verdadeiro constrangimento ilegal a obrigação
da paciente abandonar o seu serviço e o seu lar, em Natal,
R. G. do Norte, para comparecer e responder ao processo em Recife,
Pernambuco.”
Os consideranda que antecederam à exclusão
do processo e respectiva sentença foram:
“Considerando que a denúncia na narração
dos fatos não descreve nenhum delito que possa ser atribuído
a paciente;
Considerando que a dita denúncia, além de não
descrever crime nenhum quanto à paciente, não
fixa dia, hora e lugar em que teriam ocorridos os fatos ali
descritos;
Considerando que a paciente comprova que é funcionária
pública federal, servindo no Departamento de Correios
e Telégrafos há mais de vinte anos. sem nota desabonadora,
nunca tendo sofrido qualquer penalidade;
Considerando que a denúncia oferecida não tipifica
crime de espécie alguma contra a paciente;
Considerando o mais que dos autos consta;
ACORDAM, em Tribunal, por unanimidade de votos, conceder a presente
ordem impetrada em favor da funcionária Mailde Ferreira
Pinto, para excluí-la da denúncia oferecida na
auditoria da 7° R.M., como incursa nas penas dos arts. 9,10
e 12 da Lei n 1802/53 por falta de justa causa.
Superior Tribunal Militar, 4 de outubro de 1967."
Seguem-se
as assinaturas de quinze ministros do Superior Tribunal Militar,
entre eles o general Olympio Mourão Filho, um dos cabeças
do golpe militar, e do general Ernesto Geisel, um dos presidentes
da República durante a ditadura.
O habeas-corpus anulou as denúncias que me fizeram
na ditadura militar; ficaram, porém, e definitivamente, as
marcas do sofrimento.
Os outros companheiros foram, igualmente, excluídos dos processos
por habeas-corpus concedidos, também, pela unanimidade do
Superior Tribunal Militar e assistimos então, todos nós,
em silêncio, através dos votos dos próprios
militares, a desmistificação das acusações
que nos fizeram.
Os
que não sobreviveram
Aos
que não sobreviveram ao sofrimento e crueldade da ditadura
militar de 1964, particularmente aos companheiros do Rio Grande
do Norte, apresento aqui a minha comovida homenagem e o respeito
o mais profundo.
LUIZ IGNÁCIO MARANHÃO FILHO, advogado,
professor, deputado estadual e militante do Partido Comunista.
Integrante da cúpula nacional do Partido Comunista Brasileiro,
foi preso em Natal, logo nos primeiros dias de abril e encarcerado
no quartel do Ro, de onde foi levado, no mês de agosto, para
a prisão da ilha de Fernando de Noronha. Libertado por habeas-corpus,
voltou a Natal seguindo, depois, para o Rio de Janeiro, onde passou
a viver na clandestinidade e continuou a militância política.
Luiz não reapareceu, depois de divulgado o decreto de anistia
aos punidos e condenados políticos. A única informação
sobre o seu destino foi publicada na revista "Veja", edição
de 18 de novembro de 1992, em uma entrevista concedida ao editor
Expedito Filho, pelo ex-sargento e ex-agente do Destacamento de
Operações Internas ( DOI - CODI ) de São Paulo
e do Centro de lnformações em Brasília, Marival
Dias Chaves.
Na entrevista, o ex-agente declara a morte de "Luiz Ignácio
Maranhão Filho, preso em São Paulo, em 1974: Levado
para Itapevi, Maranhão Filho morreu com a injeção
para matar cavalo". Em Itapevi, situada na região da
grande São Paulo, existia uma casa que, segundo o ex-agente,
havia sido transformada “em centro de torturas e execuções.”
LUIZ GONZAGA DOS SANTOS, esportista, funcionário
público, vice-prefeito de Natal, eleito com Djalma Maranhão,
morreu de infarto em uma prisão do Recife, quando cumpria
pena de um ano de reclusão, por condenação
da IV Auditoria Militar.
DJALMA MARANHÃO, esportista, funcionário
municipal, professor do Atheneu Norte-Rio-Grandense e primeiro prefeito
eleito de Natal, morreu no exílio em Montevidéu, no
dia 30 de julho de 1971. É comum, nas três mortes,
o isolamento da família, dos amigos e a solidão. Suportou
com dignidade e coragem todo o sofrimento e humilhação
que lhe impuseram nas prisões da ditadura mas sucumbiu ao
isolamento e solidão do exílio. Entre os companheiros
das prisões por onde esteve, deixou a marca da sua liderança,
coerência política e resistência moral. De acordo
com o testemunho deles, entre os quais o jornalista Raimundo Ubirajara
de Macedo e o empresário Carlos Lima, causava admiração
o equilíbrio de humor com que ele administrava a tensão
emocional da pressão que sofria. Em alguns momentos, brincava
com os companheiros e levantava a força moral dos demais
prisioneiros.
Omar Pimenta, que se encontrava preso no quartel do Regimento de
Obuses, foi surpreendido, um dia, pela chegada do ex-prefeito que
para lá fora levado para prestar mais um depoimento. Entrou
no alojamento sorrindo, cumprimentando a todos e repetindo: Vai
passar...vai passar..." Os oficiais retiraram-no, rapidamente.
Ubirajara lembra apenas um momento em que Djalma entristeceu: aconteceu
quando o próprio Ubirajara, que fora libertado dias antes
pelo capitão Lacerda, foi novamente preso pelo simples fato
de haver passado no Grande Ponto, para comprar jornais. Denunciaram-no
como se estivesse participando de conversas políticas. Sua
liberdade havia levantado o ânimo dos demais presos; a nova
prisão trouxe o desânimo e a confirmação
do endurecimento do regime. No reencontro, a decepção
dos presos foi geral e Djalma, com ansiedade, cobriu-lhe de perguntas
sobre a situação do país. Informado de que
continuavam as prisões em todo o território nacional,
não escondeu a tristeza e depressão.
Outras lembranças de Djalma Maranhão são relatadas
pelo seu filho Marcos, que não o acompanhou ao exílio
mas visitou-o quatro vezes, com passagens oferecidas pelo então
senador Dinarte Mariz. Marcos recorda a enorme saudade que ele sentia
e a ansiedade com que aguardava o fim da ditadura. Cada ano esperava
que fosse o último; o tempo passava e a ditadura continuava.
Para ele, nunca acabou.
O empresário José Pacheco e sua esposa Nenen guardam
recordações desde quando o conheceram como professor
de Educação Física no Atheneu, ainda jovem
e esportista, e já entusiasmado pelo nacionalismo puro, com
o qual defendia soluções brasileiras para os problemas
brasileiros. À fidelidade e a amizade resistiram a toda a
perseguição, calúnias e perseguição
vividas em 1964. Pacheco e Nenen visitaram Djalma em todas as prisões
por onde esteve, inclusive na embaixada do Uruguai, no Rio de Janeiro,
exceção para Fernando de Noronha.
No quartel do 16° RI receberam de Djalma um pedido para que
divulgassem que ele estava sofrendo ameaça de tortura física.
Não explicou quem ameaçava nem as condições
em que o fizeram. Pacheco tentou, então, fazer um “abaixo-assinado”,
pedindo transferência do clero, para que os comandantes militares
concedessem-lhe um tratamento mais humanitário. Entre os
supostos amigos, pessoas de prestígio social a quem procurou,
conseguiu apenas uma assinatura: a do escritor Veríssimo
de Melo.
Não conseguindo assinaturas para o “abaixo-assinado”,
Pacheco recorreu à Assembleia Legislativa e encontrou receptividade
no deputado Erivan França, filho de um amigo do ex-prefeito.
O deputado apresentou denúncia em plenário e, talvez,
evitou a consumação da tortura.
A última lembrança do casal Pacheco vem do último
encontro no exílio de Montevidéu, em 1967. Encontraram-se
no local onde Djalma cumpria a obrigação de se apresentar
diariamente, na condição de exilado. Abatido e emocionado,
Djalma os abraçou e chorou; não conseguiu conter a
explosão dos sentimentos.
Passaram juntos quinze dias, até se acabarem os recursos
e serem obrigados a voltar. No momento da despedida, o ex-prefeito
propõe voltar com eles e entrar, clandestinamente, no Brasil.
Pacheco fez-lhe várias advertências sobre o risco de
voltar e ser novamente preso; mas ele estava cheio de vontade e
desespero. Finalmente, despediram-se; e despediram-se pela última
vez.
Outro casal que visitou Djalma Maranhão no exílio
de Montevidéu foi seu ex-auxiliar e companheiro de prisão
Josemá Azevedo com a esposa Joana d’Arc. Eles falam
da saudade imensa que Djalma sentia. Nos três dias que passaram
juntos, Djalma procurava disfarçar a emoção
mas se traía nas indagações sobre os amigos,
os conhecidos e sobre a cidade que amava muito. Josemá é
enfático e incisivo em afirmar: “Djalma Maranhão
morreu de saudades.”
O mais longo convívio no exílio, com amigos de Natal,
Djalma teve com o médico Leônidas Ferreira e esposa,
quando o mesmo fazia especialização no Hospital Pereira
Roussel, de Montevidéu. Leônidas, que era amigo pessoal
do prefeito, com ele dividiu todos os momentos disponíveis
daqueles oito meses. Em alguns dias em que era obrigado a permanecer
no hospital, Djalma o procurava, quase sempre angustiado e tenso.
Leônidas, dispondo de carro próprio, levava-o sempre
a passeios para ver o mar. Ele falava do sonho de voltar ao Brasil
e residir na praia de Ponta Negra.
Como ocupação, Djalma mantinha uma pequena representação
de revistas e turismo, instalada na casa comercial de um judeu,
com quem fez amizade. O comércio com revistas não
apresentava lucro real mas lhe impunha uma obrigação
diária.
Permanentemente ávido por notícias do Brasil e de
Natal, inquietava-se quando não as recebia nos dias previstos.
Mantinha bom relacionamento e constante convívio com os outros
exilados políticos e com alguns comemorava, em seu pequeno
apartamento, as datas cívicas brasileiras.
Na distância do tempo, Leônidas analisa a luta intensa
que Djalma desenvolvia para adaptar-se ao exílio sem, portanto,
conseguir vencer a angústia, solidão e saudade.
Algumas pessoas podem surpreender-se com a sensibilidade de Djalma
Maranhão, mas, quem o conheceu de fato, quem assistiu a seus
transbordamentos emocionais nos momentos de luta, de agressividade,
generosidade e afeto para com os amigos, sabe bem que escondia uma
sensibilidade profunda.
Quase sempre só no exílio, porque a esposa não
se adaptava ao clima de Montevideo, a saudade que sentiu foi devastadora.
A ditadura durou vinte anos; ele resistiu a apenas seis.
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