Tribuna
do Direito — Como resolver as demandas sociais?
Eduardo Carlos Bianca Bittar — Quanto mais
complexa a sociedade, menor a capacidade de resposta
do Estado. Daí a emergência de novas
forças, de novos conflitos, que estão
para além do que, por exemplo, o Poder
Judiciário consegue resolver. Hans Kelsen,
grande teórico da modernidade, diz que
a grande questão do Direito é a
validade. Na pós-modernidade a grande questão
do Direito é a eficácia. É
funcionar, é atender. Não basta
ter direitos, é preciso que eles sejam
efetivamente atendidos. As pessoas preferem ter
menos direitos, mas ter garantias reais de acesso
a determinados benefícios sociais, como
saneamento básico. Preferem ter uma ONG
local que gerencie a distribuição
de alimentos, a esperar o atendimento de um direito
universal, que nunca chega.
TD
— Isso tem a ver com o desmonte que o Estado
vem sofrendo?
Bittar — Um desmonte duplo. Um desmonte
que, de um lado, vem pela força da violência,
do crime organizado, da corrupção,
do nepotismo; e, de outro, um desmonte positivo
do Estado, que é a sensação
de que a sociedade civil está retomando
as rédeas da regência de si. No Brasil,
por exemplo, as ONGs no início dos anos
90 eram cinco mil ; hoje, são 250 mil.
As pessoas perceberam que não podem mais
esperar do Estado a tutela para o acesso a direitos
fundamentais e, por meio do terceiro setor, passaram
a dedicar-se a atividades que têm finalidade
pública, interesse coletivo, desenvolvidas
com o próprio esforço. Não
ficam mais aguardando proteção do
Estado.
TD
— Mas a maior fonte financiadora desses
projetos não é o próprio
Estado?
Bittar — É, porque ele acaba continuando,
dentro da lógica da modernidade, a concentrar
todo o esforço financeiro da sociedade,
cobrando os impostos.
TD
— Se o dinheiro para a execução
desses projetos continua vindo da mesma fonte,
porque o Estado não consegue, ele mesmo,
usar esses recursos como e onde deveria? Nas ONGs
também há desvios de finalidade.
Bittar — O Estado continua funcionando na
lógica da modernidade. Só ele cobra
impostos, só ele arrecada, gerencia e devolve
à sociedade. A questão é
que se percebeu que existem mecanismos mais eficazes
de atender às demandas sociais: as ONGs
honestas, não as “pilantrópicas”.
É um forte desafio saber distinguir umas
das outras. Mas, de qualquer forma, este movimento
é a resposta que a sociedade está
dando. Assim como também são respostas
o crime organizado, a violência, a desordem
social, a rebeldia. Cada vez mais as pessoas percebem
que pagam uma quantia enorme de tributos e recebem
muito pouco em troca. A questão da pós-modernidade
é mundial. E a grande marca da pós-modernidade
pode ser resumida em uma palavra: insegurança.
TD
— O aumento da exclusão social é
uma das conseqüências disso tudo?
Bittar — Exatamente. Algo em torno de 2
bilhões de pessoas no mundo estão
abaixo da linha da pobreza, ou seja, na miséria
total. Isso significa que um terço da população
mundial vive em condições subumanas.
Então, as políticas sociais da modernidade
— o estilo burguês de produzir direitos,
o modo estatal de conduzir a distribuição,
as práticas da Justiça e os mecanismos
que ela tem para atender essas demandas —
têm sido insuficientes. O que se percebe
neste momento é que o individualismo tipicamente
criado pela civilização ocidental,
fundado na idéia de lucro, do capital,
da regência de cada um por si, com o Estado
tentando complementar o que falta, tem tido reações.
A reação de uns é o crime,
a violência; a de outros, tem sido um movimento
de solidariedade social, que nunca foi tão
forte.
TD
— E a questão da igualdade e, conseqüentemente,
da organização das ditas “minorias”?
Bittar — É outro movimento típico
da pós-modernidade, das pressões
que a sociedade passa a demonstrar. Se a modernidade
cria uma igualdade abstrata, indiferente, o que
as pessoas passam a exigir é uma mudança
que vá atingir as necessidades específicas
de cada grupo. Não basta mais pensar em
direitos universais, queremos direitos de grupos.
Cada vez mais se define a tendência a uma
particularização de direitos universais,
e todos eles são desdobramentos naturais
da idéia de direitos humanos. O que é,
afinal, igualdade? Igualdade é tratar os
iguais igualmente e os desiguais desigualmente.
As ações afirmativas que começam
a invadir o cenário das universidades são
um reflexo desse tenso debate sobre a idéia
da igualdade.
TD
— As cotas para negros são uma ação
afirmativa, ou uma ação discriminatória,
uma forma de acentuar as desigualdades?
Bittar — Não discuto aqui propriamente
a questão das cotas, mas o raciocínio
é bem esse: a igualdade liberal, burguesa,
moderna, construída nos séculos
XVIII e XIX, é basicamente uma igualdade
que leva à indiferença. O Estado
trata tão igualmente a todos, que não
vai olhar como as pessoas se desigualam na prática.
E aí é que surge o problema.
TD
— Mas qual é a avaliação
sobre a política de cotas na universidade?
Bittar — Os mecanismos que estão
sendo criados para a afirmação de
violação de direitos no passado
são uma clara resposta da pressão
das minorias sobre a indiferença da igualdade
liberal. Dessa forma, sou a favor. Como isso se
processará dentro do ambiente de cada universidade,
é que é preciso pensar. Não
existe uma lei federal que obrigue as instituições
a adotar tal política. Continua sendo algo
que pertence ao domínio da autonomia universitária.
Que deve haver cotas para o maior acesso daqueles
que tiveram déficits de formação
no próprio ensino público, não
há dúvida. Se essas cotas devem
ser majoritárias em relação
aos demais, que disputam em condições
de paridade, já não concordo. Deve
haver uma cota mínima, baixa, que não
exclua o nível de concorrência geral.
TD
— E a cota para negros?
Bittar — Também é importante,
em função da exclusão que
a escravidão produziu. Com a abolição
da escravidão não houve, ao mesmo
tempo, um projeto de inclusão social. Esse
negro, que era escravo e não tinha nenhuma
formação, continuou tendo estigma
social. Agora, qual a definição
de negro? Qualquer pessoa poderá alegar
que é negra? Precisamos triangular a construção
de critérios científicos que garantam
que este acesso seja criteriosamente vigiado pelas
universidades, para não permitir o uso
arbitrário, a manipulação
insidiosa desse instituto, que é afirmativo
do direito à educação, embora
não garanta emprego ao negro que sair da
universidade.
TD
— Quais seriam outras conseqüências
dessa igualdade formal que leva à indiferença
do Estado.
Bittar — No modelo liberal, os atores do
mercado agem livremente. Neste agir livremente,
uns dominam os outros, uns têm mais do que
os outros e o Estado não é capaz
de compensar as diferenças. Daí
a necessidade de se criar mecanismos, agora institucionalizados,
para compensar a diferença que surge a
partir da própria ação dos
indivíduos. Nesse contexto, a reflexão
não nos leva a pensar na abolição
do Estado, porque isto devolve à lei da
natureza, que é a lei do mais forte. Muito
menos leva a querer o Estado total, que suprime
as liberdades individuais, que suprime a capacidade
que temos de agir livremente, para se substituir
a nós, como a maior parte dos ditadores
pensa em tempo de crise. Mas, sim, leva-nos a
pensar numa atuação complementar
da sociedade civil, do terceiro setor, com fiscalização,
responsabilidade social e ética, de modo
a que essas necessidades fundamentais e esses
valores que têm guarida jurídica
na Constituição possam ser implementados
na prática.
TD
— E como articular tudo isso?
Bittar — Essa articulação
ainda não foi descoberta, não foi
montada e não está institucionalizada.
As ONGs, hoje, fundamentalmente são setores
de pressão externos ao Estado.
TD
— Pode-se dizer que o modelo da democracia
representativa está em crise?
Bittar — Existe, sem dúvida, uma
crise da representatividade democrática.
Não satisfaz mais às pessoas votar
a cada quatro anos e aguardar passivamente o governo
agir. Tornamo-nos espectadores do poder, quando
na verdade o poder é nosso. O avanço
estaria em criar mecanismos de democracia participativa.
Isso significa orçamento participativo,
assembléia popular, conselho de fábrica
onde o trabalhador participa das decisões
da empresa, maior transparência do poder,
a capacidade do cidadão participar mais
ativamente das próprias decisões
de governo, a ampliação da representação
de ONGs de reconhecida reputação
e ilibada atuação dentro das instituições
democráticas. Outras alternativas seriam
mecanismos mais severos de cobrança das
instituições democráticas
e seu funcionamento, começando pela questão
do pluripartidarismo, que deve ter um limite.
A reforma política precisa definir qual
é esse limite. E também mecanismos
que permitam ampliar a participação
da sociedade nas grandes decisões nacionais.
Por exemplo, o Supremo discute o aborto de feto
anencéfalo sem ouvir os grandes setores
representativos da sociedade.
TD
— Seria o caso de fazer um plebiscito?
Bittar — Não necessariamente, mas
instrumentalizar o próprio processo no
Supremo, para que esse processo seja mais plural.
TD
— Aceitando manifestações
de eventuais partes interessadas?
Bittar — Aceitando manifestações,
dentro do prazo de 15 dias, das entidades e associações,
por meio de tais e tais mecanismos. O Supremo
passaria a ter, dentro do litígio que opõe
dois pólos individuais de interesse, ou
duas posições divergentes ideologicamente,
uma pluralidade de atores, que poderá,
não só exprimir sua vontade, mas
ver representada a capacidade de pensar e produzir
justiça, já que a justiça
não é um monopólio do juiz.
Ela pertence à sociedade. Por que é
que o cidadão, que é o destinatário
último de todo o processo, tem de ficar
alijado disso? Impera a forma, o que significa
que somos modernos demais, kelsenianos demais.
Isso não nos basta, queremos mais. Esse
movimento tende, de um lado, a criar uma apatia
com relação aos temas política,
poder, Estado e Direito.
TD
— E para onde caminha a humanidade?
Bittar — É o cenário que o
professor Boaventura de Souza Santos, da Universidade
de Coimbra (Portugal), chama de transição
paradigmática. Uma vivência plasmódica.
Está-se vivendo um choque de eras e a grande
marca da transição paradigmática
é a indefinição do sentido:
para onde? Sabe-se que tem uma crise; sabe-se
que a diversidade está instalada, não
se tem nenhum instrumental que permita criticar
a posição do outro, porque tudo
é igualmente válido, a ponto de
se tornar amorfo, mas não existe projeto
de consecução.
TD
— A pergunta clássica: civilização
ou barbárie?
Bittar — A falência da modernidade
jurídica, política, gera uma revisão.
A crítica filosófica, sociológica,
a reflexão que leva a repensar os modelos
de atuação do poder. Mas de outro
lado, gera um patinar das instituições,
e neste patinar aparecem os interesses privados,
os empresários com poder, os políticos
oportunistas. O Brasil, muito especificamente,
quando começa a chegar perto da democracia,
quando começa a visitar um pouco a construção
de um Estado de Direito a partir da Constituição
de 1988, é colhido por um processo de globalização.
E a globalização tem como marca
não só a intensificação
das trocas entre os países, mas a transferência
do poder decisório para a esfera internacional,
esta que não é regulamentada e para
a qual não há experiência,
não há controle, não há
Direito, não há mecanismos democráticos
de construção das decisões.
TD
— As decisões de poder passam a ser
tomadas em fóruns privados.
Bittar — Exatamente. São tomadas
nos encontros dos G7, dos G8, da Opep, nas reuniões
de diretoria das multinacionais. O poder está
na esfera internacional não-regulamentada.
E a política continua sendo mantida dentro
de um discurso de Estado nacional, que já
dá claras demonstrações de
ser, por si só, ineficiente para lidar
com as pressões externas: FMI, Banco Mundial,
empresas multinacionais. Poder, fora. Política,
e seus instrumentos deficitários, dentro.
Choque. Choque polar entre nacionalismo e cosmopolitismo.
A globalização é um fato
inegável, não é um discurso
de moda.
TD
— Embora seja inegável, a globalização
é irreversível?
Bittar — Considero-a irreversível.
Os mercados já estão absolutamente
dependentes uns dos outros. Ela tende a intensificar-se.
A questão é: na globalização,
mantem-se a estrutura do Estado-Nação,
protege-se as fronteiras, tem-se uma política
nacionalista, para dentro — a resposta francesa,
uma resposta conservadora—, ou dá-se
um passo adiante, um voto de confiança,
com todas as inseguranças, e caminha-se
para um modelo de um cosmopolitismo jurídico
e político? A pós-modernidade é
um momento de profunda revisão das experiências
históricas que tivemos, com vistas a decidir
um estrangulamento: ou vamos deixar o que está
desmontar, a ponto de ruir, ao nível da
barbárie, ou vamos dar a volta por cima
e decidimos por tomar conta do espaço.
Isto não se faz negando: negar o mercado,
o neo-liberalismo, a globalização.
Passa, sim, por uma reconstrução
da lógica de atuação.
“A idéia é que a tripartição
dos poderes é estanque... Isso não
basta mais ”
Eduardo Carlos Bianca Bittar é um jovem
filósofo do Direito que se debruça
sobre os problemas da pós-modernidade e
estuda saídas para as incertezas do começo
do século. Sempre gostou de estudar e pesquisar,
mas teve o amor pelo Direito e a curiosidade científica
aguçados por vários mestres, como
Celso Lafer, Goffredo da Silva Telles Junior,
Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Sérgio
Adorno e, sobretudo, pelo pai, Carlos Alberto
Bittar. “Fui influenciado pelo entusiasmo
deles. Encanta-me a produção e a
difusão do conhecimento”, declara.
Aos 31 anos, é autor de 11 livros, entre
eles O Direito na Pós-Modernidade, publicado
pela Editora Forense Universitária, Curso
de Ética Jurídica, pela Saraiva,
e Curso de Filosofia Aristotélica, pela
Manole. Também responde pela revisão
e atualização dos 42 livros do pai
entre os quais se destacam Os Direitos da Personalidade,
Direito de Autor e Reparação Civil
por Danos Morais.
Eduardo vê no terceiro setor alternativas
complementares à atuação
do Estado para incrementar a vida social. Diz
que a grande marca da pós-modernidade é
a insegurança, em todos os níveis:
violência, axiológica, econômica,
religiosa, em relação ao futuro,
à moral.
No balanço jus-filosófico que elaborou
sobre a experiência jurídica brasileira
concluiu que os instrumentos da modernidade jurídica
estão em franca decadência e sofrem
uma crise de eficácia, o que prejudica
a aplicação do próprio Direito,
criando déficits de justiça para
a sociedade. “A idéia geral é
que só o Estado é o gerenciador
último de todas as necessidades e utilidades
sociais. A idéia é que a tripartição
dos poderes é estanque, que é de
Montesquieu. Isso não basta mais. Assim
como a representatividade da democracia não
serve mais e como o Estado do bem-estar social
— um Estado que tudo provê, tudo observa,
que adivinha mesmo as necessidades da população
— não consegue sequer dar conta de
suas próprias estruturas”, avalia.