Introdução
Nos
últimos anos, e em alguns casos a partir de articulações que remontam
à segunda metade da década de 80, a integração – por meio de acordos
bilaterais ou multilaterais, sub-regionais ou regionais – tem ressurgido
ou se consolidado como alta prioridade na agenda dos países
latino-americanos, em consequência de progressiva globalização e
interdependência dos assuntos econômicos, da redemocratização em
vários pontos da região e decorrente convergência maior entre os seus
países, bem como de políticas econômicas que enfatizam os mercados
livres e reformas internas necessárias ao novo perfil das relações e da
dinâmica econômico-financeira internacionais.
Efetivamente,
um dos aspectos mais visíveis e relevantes da conjuntura internacional do
findar do século XX, marcado pelo fenômeno da mais recente
globalização econômica, vem a ser a formação de blocos sub-regionais
de comércio, na qual se insere a criação do Mercado Comum do Sul – o
MERCOSUL – como resposta emergente do Cone Sul americano às incertezas
do futuro das relações internacionais. Diferindo das experiências
latino-americanas anteriores, então assentadas na lógica do modelo de
substituição de importações e vinculadas a um caráter amplamente
protecionista, os atuais espaços de integração econômica se colocam
sob a égide de um regionalismo aberto, a partir de uma articulada
interação econômica intrazona, que não é exclusiva nem excludente de
outras alianças, e um coletivo empenho com vistas a uma destacada
inserção internacional dos países consorciados.
Criado em 1991, e
alçado à união aduaneira (em construção) desde janeiro de 1995, como
fase intermediária de um projeto mais ambicioso, o MERCOSUL pode ser
apontado como a iniciativa integracionista mais – e rapidamente – bem
sucedida no contexto latinoamericano e caribenho, não apenas pelo
significativo aumento do intercâmbio comercial mas também pelo
fortalecimento da capacidade de negociação internacional de seus
países-membros. E nem mesmo a crise conjuntural que afetou recentemente o
MERCOSUL, mais como área de livre comércio do que enquanto união
aduaneira, por conta de desacertos comerciais entre o Brasil e a
Argentina, parece ameaçar a continuidade do processo, quando se verifica
que ainda assim o intercâmbio mercantil entre esses parceiros
ultrapassou os II bilhões de dólares em 1999 e que seus negociadores
articulam a superação de tais atritos já para o segundo semestre deste
ano 2000, o que parece viável após a assinatura do acordo automotivo
para a sub-região. Se o pior da crise já passou, como quer enfatizar a
diplomacia argentino-brasileira, em face da Declaração de Buenos Aires,
a ponto de se falar em “relançamento” do MERCOSUL, não há que se
descurar da aproximação e coordenação macroeconômica entre os
Estados-Partes, tampouco da harmonização de suas legislações, além da
necessária revisão do seu quadro institucional, para que o atual
estágio se complete nos prazos preestabelecidos.
Além
disso, consoante ao que dispõe o Tratado de Assunção, sobre o qual se
edifica o MERCOSUL, a Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai,
founding fathers desse empreendimento que já envolve o Chile e a Bolívia
enquanto associados, deverão concretizar, quando do término do
processo de convergência da tarifa externa comum – e apesar dos
percalços, inabilidades, desajustes e temores ao longo desse percurso
–, a etapa que se espera para o avanço do modelo, que vem a ser o
“mercado comum”. Essa é uma meta mais ousada, até agora só
alcançada pela União Européia, e que subentende, muito mais que o
aperfeiçoamento da integração econômica, fortes ingredientes
políticos e sociais no âmbito do processo, com a adoção das liberdades
elementares ao seu funcionamento, dentre as quais a circulação e o
estabelecimento de pessoas (físicas ou jurídicas). Do que se depreende
que a dimensão comunitária do bloco mercosulista ainda está para ser
feita, o que vem inclusive exigindo dos estudiosos do Direito a
definição dos remédios mais eficazes nessa direção.
Diante
dessas circunstâncias, as grandes preocupações atuais acerca do
MERCOSUL cingem-se a descobrir qual seria a estrutura institucional mais
adequada para a sua continuidade e quais os obstáculos à sua
implementação, o que envolve o debate em torno de sua composição
orgânica, dos instrumentos e princípios jurídicos a serem empregados e
do sistema decisório sobre conflitos a ser adotado, contrapondo-se aqui
a estratégia cautelosa do institucionalismo governamental (a passos
lentos e controles excessivos) diante da proposta do institucionalismo
supranacional, com ênfase no papel de instâncias e agentes independentes
da burocracia estatal e seus interesses localizados. Nesse contexto,
cabe indagar: 1. A opção por um processo integracionista sem
partilhamento de soberanias, com instituições de caráter
intergovernamental e uma sistemática de solução de controvérsias de
cunho extrajudicial e sem autonomia, por si só será capaz de gestar uma
ordem comunitária no interior do bloco?; 2. A implementação de um
mercado comum, instância derradeira preconizada pelo Tratado de
Assunção para o MERCOSUL, poderá ser alcançada sem compreender
instituições decisórias e tampouco órgão jurisdicional dotados do
requisito da supranacionalidade, e mesmo sem garantir-se a primazia de um
Direito Comunitário sobre as respectivas ordens nacionais, situações
estas encontráveis no espaço comunitário europeu?; 3. Os ordenamentos
jurídicos dos países-membros, particularmente do Brasil, representam um
fator impeditivo da modelagem de uma integração comunitária no Cone Sul
americano?
Buscar
responder a tais questões é o escopo deste ensaio, cujo tratamento, por
certo, não escapa de certas características polêmicas que permeiam a
matéria. Metodologicamente, procurou-se, tanto quanto possível, a
análise das fontes primárias, em meio a uma bibliografia que (pela
novidade do tema) chega a ser extensa, conquanto difusa, em muitos
aspectos apenas tangenciando os desideratos elencados. E mais, em face da
abrangência do tema referido, necessário foi traçar um panorama
comparativo com experiências integracionistas encontráveis nas
Américas e na Europa, bem como enveredar, minimamente que fosse, pela
seara conceitual de disciplinas correlatas a respeito, desde a ciência
política até a economia, sem perder de vista o predomínio da
contextualização jurídica sobre o objeto da pesquisa.
Assim,
esta obra foi estruturada em quatro unidades, acrescida de quatro
anexos. Na primeira Parte, enquadrado o MERCOSUL na tipologia da
integração econômica e observada a relação de seus países-membros
com a conjuntura internacional vigente, o trabalho passa em revista os
principais modelos integracionistas do continente americano que
antecederam ou são contemporâneos ao bloco platino, possibilitando
deduzir-se em que medida se diferenciam ou se assemelham ao agrupamento
assunceno. Por outro lado, nela há todo um capítulo especificamente
sobre o MERCOSUL, abordando a sua fase de transição (1991 -1994), a sua
fase de união aduaneira ainda em curso, a sua estrutura institucional e
seu ordenamento jurídico.
Em
seguida, embora sem pretensões de transformar o MERCOSUL em mera cópia
desse que é o principal e mais bem acabado exemplo de integração
comunitária, mas que inegavelmente serve de fonte inspiradora aos
projetos que pretendem transpor os limites tradicionais do
cooperativismo, dedicamo-nos a discorrer sobre os pilares da experiência
vigente na Europa Ocidental, apresentar a estrutura orgânica da União
Européia, analisar o instituto da supranacionalidade como marca
registrada desse processo. Além do que, procurou-se dar a conhecer o
Direito Comunitário emerso e imperante naquele espaço unificado, os
princípios fundamentais emanados das instituições comunitárias e a
atuação do Tribunal de Justiça da Comunidade Européia, avaliando-se,
por derradeiro, se as lições daí decorrentes foram ou estão sendo
hauridas pelos condutores do processo assunceno.
A
terceira Parte foi reservada ao estudo de um item que tem estado
constantemente na pauta das discussões entre os especialistas da área,
que é a questão do sistema de solução de controvérsias no âmbito do
MERCOSUL. Nessa unidade, verificado o alcance e o funcionamento do
sistema nos termos do Tratado de Assunção, do Protocolo de Brasília e
do Protocolo de Ouro Preto, registram-se valiosas considerações
jurídicas relativas à manutenção de um método que se estriba no
critério da intergovemabilidade, cotejadas com o papel do órgão
jurisdicional que responde pelo controle dos conflitos tanto na Comunidade
Européia quanto na Comunidade Andina, e terminando por evidenciar as
vantagens e a importância da aceitação de um Tribunal de Justiça no
quadro orgânico definitivo da integração que se tece a partir da
Região do Prata.
Por
derradeiro, procura-se focalizar a possibilidade e a oportunidade da
introdução do instituto da supranacionalidade no bojo da organização
mercosulista, examinando-se inicialmente o conceito de soberania assumido
pelas ordens jurídicas dos Estados-Partes, notadamente com relação à
internalização das normas comuns produzidas pelos órgãos decisórios
do modelo. E, uma vez explicitada a opção dos países da União
Européia – a partir do conteúdo de suas Cartas Magnas – pela
cessão de poderes soberanos a órgãos supranacionais, debruçamo-nos
sobre as abordagens constitucional e jurisdicional que os parceiros do
MERCOSUL conferem à temática tão relevante, especialmente do ponto de
vista brasileiro, confrontadas com a questão da viabilidade ou não de
chegar-se a um ordenamento comunitário no modelo de integração
mercosulista.
Enfim,
diante das inúmeras dúvidas e descompassos reinantes na área
jurídica quanto a temática ao mesmo tempo tão fascinante e complexa,
este livro é fruto de um sério e compromissado esforço em levantar as
bases jurídicas que conformam a estrutura do MERCOSUL e avaliar se –
e em que medida – elas bastam ou não para sustentar uma integração
efetivamente comunitária, posto que o bloco foi concebido para ser um
mercado comum. Calcado na experiência decorrente de intensa atuação
advocatícia e acadêmica na área do Direito Internacional, move-nos aqui
o propósito de contribuir ao debate acerca do presente e do futuro da
integração “neo-platina”, cuja evolução e aperfeiçoamento não
podem prescindir da participação (a mais ampla possível) de atores
oficiais e não-oficiais, porquanto só será significativa enquanto
entendida como uma construção coletiva, sempre na elevada perspectiva de
que o MERCOSUL não seja apenas mais um esforço retórico de integração
econômica na América Latina, mas se valha do instrumental necessário e
decisivo, no qual não pode faltar o suporte jurídico adequado, para
fazer e ficar na história – como alavanca indispensável ao
desenvolvimento com justiça social da comunidade que deverá brotar da
“união cada vez mais estreita entre os povos” dos Estados-Partes,
conforme o direciona o Tratado de Assunção.
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